Acordei doido para acordar, sair de um sonho noir. Andava por rua interminável. Quanto mais caminhava, mais à frente via o asfalto molhado e esburacado, casas fechadas dos dois lados, silêncio e solidão. Dos postes escorria luz amarelada e frouxa, que se espalhava pelo chão. Talvez se avizinhasse a madrugada. Ou aquilo fosse um mundo em ruínas, abandonado pela vida. Deslizavam ratos, em correria pelos cantos, à busca de esconderijos. Ao redor das lâmpadas, voejavam milhões de mosquitos. Eu queria fugir de lá, chegar a um refúgio, meu lar, quem sabe. Mas, cansado, não conseguia apressar o passo. E a avenida mais se estendia. Súbito, os buracos se multiplicaram e se expandiram. Pulava, saltitava, buscava o meio da via, voltava à calçada. Desiludia-me: nunca chegaria à claridade, ao fim da caminhada, ao sossego. Espreguicei-me, espichei-me todo, abri os olhos, sentei-me à beira da cama. Precisava logo de alegria. Lavei a cara, olhei-me com misericórdia e alcancei a copa. Abri a porta da geladeira, agarrei um copinho de iogurte e me pus a perambular pela casa. Fui abrindo portas e janelas, para ver o sol, o vento e a liberdade. Entanto, a tristeza noturna não me deixava. E assim vivi até a hora do almoço. Sentei-me na velha cadeira, prato à mão. Liguei a televisão para me aproximar da realidade do mundo e me afastar de mim: ateavam fogo a carros no Rio de Janeiro, fanáticos muçulmanos espedaçavam crianças com bombas, oradores fleumáticos incitavam os pobres a exterminar o Diabo. Tive nojo de tudo e vontade de reduzir a pó aquele aparelho daninho. Levei o prato à pia. Formigas passeavam famintas. Lembrei-me do quarto de hóspedes, onde há anos cochilam velhos poetas. Por acaso, dei de frente com secular grego: “As mulheres me dizem: – Anacreonte, / Toma um espelho e olha-te! / Velho! Nem tens cabelos nessa fronte!... / vês? O tempo desfolha-te”. Da Grécia rumei para Roma. Alcancei um Quinto Horácio Flaco a dormitar e me pus a soletrar: “Ibam forte via Sacra, sicut meus est mos, / Nescio quid meditans nugarum, totus in illis”. No meio da jornada, fui despertado por um chamamento metálico: acionaram a campainha do portão. Larguei a Selecta Latina e rumei na direção do átrio e, de lá, à entrada. Eis que toda a minha tristeza desmoronou. Diante de mim, a mais bela figura humana surgida aos meus olhos nos últimos sessentanos: Mirna Rosa. Nem me lembrava mais dela. Isto é, da visita que me solicitara dias atrás. Quem lhe falou de mim? Raymundo Netto. Que disse ele? Sua biblioteca é muito rica. E empresto livros a amigos? E dá. Isso não chega a ser verdade. Sabe o que quero? Não. As odes de Anacreonte. Para... Minha dissertação. Anacreonte? Como ponto de partida. E de chegada? Francisco Carvalho. Título. Talvez “De ode em ode: de Anacreonte a Carvalho”. Excelente. Posso ir visitá-lo? Sim, pode. Quando? Bem quiser.
Conduzi-a ao quarto dos hóspedes ilustres. Ela se estarreceu diante das estantes. Passeou os olhos pelas lombadas vetustas e foi de A a Z, num ziguezague estonteante. Senti tontura e me recostei em Machado de Assis, que recuou. Sinto a boca seca. Então beba água. Venha comigo. Fomos à fonte. Nunca decorei nada, a não ser um verso aqui, outro ali. Naquela tarde, porém, lembrei-me de uns versos do Camões: “Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura; / Vai fermosa, e não segura!” São seus? Quem me dera ver-te fermosa, e descalça pelo mato. Regressamos à sala, eu a cambalear, atônito, febril e trêmulo. Ela, esvoaçante, cheia de sorrisos e curiosidades. Carvalho escreveu odes, mas também canções, cantatas, cânticos, elegias, epigramas, minuetos, noturnos, pavanas, provérbios, réquiens, salmos. Você conhece a “Ode Itabirana”? É longa e traz o refrão “Fica torto no teu canto, Carlos”. E “Ode circular”? Começa assim: “No maxilar do rei há restos de ouro / restos de prata, restos de marfim / e de palavras, pêssegos da ira”. A menina se extasiava e eu lia: “Deusa vegetal / de corpo límpido”. Estes versos são de “Ode à Árvore”. Linda é também a “Ode ao Sol”. Leio? Leia. Li: “Ó sol dos deuses olímpicos / me arrebata para os vales / do amor. Ali Eros passeia / em seus dourados cavalos”. Eu não cansava; Mirna descansava. Escute esta “Mínima Ode para um Grande Mamífero”: “O rumor de tua sombra / sacode os espíritos / da floresta”. Você não poderá esquecer a “Ode ao pastor das estações”. Longa, dividida em onze pequenos poemas e dedicada a Octavio Paz: “De verde desenhas o corpo / da mulher amada. O papiro do / ventre, os prados da lascívia”. Genial esse Carvalho. E a “Ode triunfal”? É poesia em alta rotatividade: de Homero, a Camões, a Pessoa. Veja o primeiro terceto: “Estavas, linda Inês, quase em sossego / à sombra dos arbustos da colina / cuidando dos rebanhos do argonauta”.
Invadia-me, pouco a pouco, a volúpia dos faunos. Busquei “Mosaicos eróticos”: “Tudo é breve e límpido no amor. / Tudo se ilumina quando / a ceia da carne celebra o instinto”. Mirna se derretia de paixão pelo verbo de Francisco Carvalho. Li, por fim, “Cântico da nudez”: “Toco tua nudez / de taça que ardesse / ao fogo do vinho”.
Convidei-a para conhecer meu quarto de dormir. Poeta dorme? Não sendo poeta, durmo até demais. E sonha? Com ruas desertas, casarões assombrosos, caminhos esburaquentos. Pelo menos isso serve para escrever. Ou me apavorar. E caí na cama feito um pacote bêbado, atrapalhando o sábado. Chico Buarque? Um pouco.
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