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1º de junho de 2010 – 8h p.M.
Dá-se a noite. Um projétil disparado adianta-se pela janela desgradilhada de meu apartamento. Corro na esperança de ver ainda, mesmo em fuga, o vândalo. Antes, o guincho de pneus e mais nada. Ninguém. Nem sinal. Calçadas vazias, portões cerrados, tristes iluminantes empalidecem a avenida movimentada de expedições.
Volto à mesa e encontro o petrecho sob a cadeira: uma pedra envolvida por uma folha de papel. Mais clichê que isso, só mesmo a “passione” de um autor global. Em diligência, examinei a pedra, uma vagabundinha dessas que nem para fins de peso de papel serve... Desfiz as amassaduras revelando uma mensagem curta silabada em recortes de revistas: “PREC i Só FalAR com vC imediA tAmente! Não FALE nada SOB Re isso com NINGUÉM nEM PENSE
Logo mais um endereço, um horário, uma ameaça recidiva: “NE m PENSE!”
Engano?, brincadeira?, trote?, armadilha? Poderia ser tudo ou um pouco de qualquer coisa. Poderia ser somente nada, mas fiquei curioso, coisa normal: “Droga”, pensei, “fosse e-mail, eu deletava!”
Provavelmente o arremessante previa isso, o que intrigava mais ainda.
O dia veio e eu não dormi.
2 de junho de 2010 – 10h a.M.
No trabalho, desatentava-me. Meus olhos, de quando em quando, fixavam-se no papel amarrotado em cima da mesa. Não conseguia parar de pensar no que fazer e no que poderia haver por trás daquilo.
Procurei na textura do papel, nas letras cuidadosamente recortadas à tesoura, nos traços à régua
2 de junho de 2010 – 3h p.M.
Nem precisava, mas ainda recebi um e-mail do tal estranho, cujo endereço me parecia criado com a função de conservar seu anonimato: mensagemdepedra@gmail.com.
Pedia que, para facilitar meu reconhecimento, tivesse à mão um exemplar de “Memória do Espantalho”, do Francisco Carvalho. Bem, agora eu tinha a certeza de não se tratar de brincadeira de amigos. O sujeito nem me conhecia. Por outro lado, tinha meu endereço eletrônico. Como?
2 de junho de 2010 – 9h p.M.
No caminho, ouvia as dolentes “Bachiannas nº.
O encontro seria na Ponte dos Ingleses. Por que na Ponte? Por que o Carvalho? Por que eu?
****
A Ponte, como sempre, às escuras melancolias. Apenas o mar, a não balançá-la, ainda, cuspia-lhe, no encontro das vagas, o sal do pedregal da Iracema ex-boêmia. Sentado, ao frio ventanejar, lembrei as vesperais de sábado na mocidade, auscultadas as poesias, músicas e sonhos reduzidos ao pó das areias cobertas por duros mosaicos. Por instantes, olhei para trás, como há muito me proíbo, e a vi, cabeça deitada em meu colo, cabelos a tingir o velho jeans que apertava, olhos fechados para este mundo — mesmo mundo condenado e aprisionante —, a cantar que se ia embora, que amor não chorasse, que se voltasse era para ficar. Voltou nunca. “Nunca” é uma das palavras mais desesperadoras do dicionário.
****
De repente, aconteceu e ele chegou-me pela voz doutro: “Um dia as reminiscências do morto/ recomeçarão a longa travessia pelas salas desertas/ onde a memória sangra”.
Olhei-o espantado. Tinha cerca de vinte oito anos — não mais —, pele clara, cabelos volumosos e os aros plásticos dos óculos coloridos. Não apresentou-se, apenas afirmou enquanto sentava, bem desconfiado, ao meu lado e por trás de um poste: “o Carvalho é o melhor. Dos poetas, sem dúvida.”
Fui direto ao ponto: o que, quando, como, onde e por quê?
O rapaz não me olhava nos olhos e falava, embora com segurança, quase a murmurar. Perguntou-me se eu era escritor de aluguel. “Escritor de aluguel, o que é isso?”, perguntei. Ele riu, provavelmente por achar que se tratava de falsa inocência. Olhou-me e brincou: “Ghost-writer, Gasparzinho...”
Neguei ser “ghost-writer”, escritor de aluguel ou qualquer coisa do tipo e perguntei o porquê da dúvida. Contou-me que havia lido, apenas por gostar de futebol, as duas crônicas que escrevi sobre a Copa, e estranhou: “escrever duas vezes sobre o mesmo tema é coisa de escritor de aluguel...”
E se fosse, por que o interesse?
Revelou ser “também” escritor de aluguel, negócio rentável, “frila”, não paga impostos, trabalha em casa, faz seu horário, é seu próprio patrão. Com a “efervescência” cultural dos dias atuais, não dá mais conta sozinho, pensa em terceirizar para satisfazer a demanda e não perder clientela. Precisava de “colaboradores”, sabedores do ofício, além do quê, cansara de deletar de seu e-mail meus convites eletrônicos de eventos literários. Aliás, como havia o conseguido? “Ah, meu amigo, eu também tinha os meus segredos...”
Pôs-se, então, em digressões surpreendentes: Não entendia o interesse de tais “escritores” em divulgar literatura. Seria bem mais lucrativo escrever auto-ajuda, guias de sobrevivência e de turismo, livros para adolescentes... “Ô, povim burro!”.
Interrompendo, disse-lhe nunca o ter encontrado no meio literário, em canto nenhum, ao que me respondeu que não vai a lançamentos de livros, primeiro por ser muito chato, e, segundo, para não constranger os clientes “Que diabos de ‘fantasma’ eu seria?” Ademais, não via menor graça em literatura cearense: “Parece que não entendem que existe uma grande diferença entre ser escritor e ser alfabetizado.”
Curioso, perguntei se havia mesmo tanta procura assim. Não acreditava nisso, juro!
Perguntou-me se eu conhecia o livro [...]. Sim, o conhecia. É do [...]. Foi muito comentado nos jornais e em resenhas de revistas, na época do seu lançamento. Riu-se: “Você conhece algum livro dele antes desse? E depois, ele lançou mais algum? Não? Pois bem: cliente!”
Tinha também, segundo ele, outro “cliente” que ficara deprimido após contratá-lo em duas ocasiões, mas que, imprimindo seus livros em gráfica para reduzir custos e não contratando editora especializada, não alcançou boa vendagem e mesmo indo, por um bom tempo, a todos os lançamentos da OBOÉ (sempre ia com um paletó risca de giz azul marinho e na gravata cor vinho trazia um broche com uma pedra vermelha em forma de flor) nunca fora seu trabalho reconhecido. Tentou aconselhá-lo a procurar uma editora e coisa e tal, mas com assessoria administrativo-financeira era mais caro...
Continuou revelando que outros mais, a princípio, contrafeitos, o procuravam pedindo “revisão” ou “estabelecimento de texto”. Na verdade, subentendia-se “reescreva essa porcaria e a faça parecer literatura decente!” Alguns, continuava, ligavam a pedir sugestões, argumentos, ideias ou soluções para desenvolvimento de romances (a maioria dos clientes é romancista ou cineasta). Rindo, confessou-me que bastava dar uma olhadela nos jornais locais e a ideia estava lá: à caneta do jornalista mal remunerado e não reconhecido, a trama passional de um romance de sucesso! Começo, meio e fim. “Esses escritores não leem — ou melhor, apenas SE leem — e dá nisso. Temos que assessorá-los para garantir que, no futuro, os doutos das letras possam ter matéria para produzir seus ensaios”.
Melhor: após a tal “revisão” o próprio autor se surpreendia, e na cegueira da sua vaidade acusava: “E não é que ficou muito bem escrito? Pensando bem, essa é uma obra-prima. ESTOU melhorando a cada dia...” Não ligava: se pagassem, e pagam muito bem — menos pelo serviço; mais pela discrição — para o “fantasma” está certo. O “autor de fachada” prefere até não colocá-lo nos créditos, pois sentiria um “insegurançazinha”... Aliás, percebera com a rotina comercial que a diferença entre o “Ghost-Writer” e o “Live-Writer” é apenas a vaidade. “O escritor, o que não escreve, mas o que simula, é um boneco nas garras da editora gananciosa.”
Não entendia também por que algumas pessoas com carreiras tão bem sucedidas em áreas, para ele mais respeitosas, como médicos, advogados, empresários e políticos insistiam em se apresentar ao público como escritores se isso é o que eles, de fato, não eram. “Afinal, ‘mã’, que graça tem em ser escritor? Auahauauahaua” — pausa para a sinistra risada do jovem “fantasma” — “Ao escritor, coitado, vítima de suas próprias ficções, só os louros, verdura que murcha depressa”.
3 de junho de 2010 – 10h a.M.
Na noite anterior nos despedimos, com alguma aflição, sem promessas de reencontro. O rapaz, cujo nome não me foi permitido, deixou-me um cartão com um ex-libris medieval impresso e o número de caixa postal, e só! No verso do cartão, porém, um endereço curiosamente datilografado de um pretenso cliente anônimo. Movido novamente pela curiosidade — tenho que acabar com isso... —, dirigi-me ao local e fiquei de tocaia, quase envergonhado, por trás de uma castanholeira na calçada. Do portão, pude vê-lo (a) surgir e passar coçando o queixo nervoso, como de costume, e não acreditei que ele (a) também era mais uma vítima do “fantasma”, habitante sombrio dos porões trevosos do submundo da literatura!
O Rei continua nu e mandei colocar cortinas na janela.
Juro que não sei se esse texto é ficção ou realidade ou os dois ou um só...Só sei que você seria um excelente “Ghost-Writer”. rsrs Parabéns, a cada dia você me surpreende mais.
ResponderExcluir"O Rei continua nu e mandei colocar cortinas na janela."
“Ao escritor, coitado, vítima de suas próprias ficções, só os louros, verdura que murcha depressa”.
Matou a pau, cabra velho!
ResponderExcluirCaro Raymundo Netto,
ResponderExcluirParabéns pela crônica.
Também fui um "ghost-writer" no passado.
Entre as minhas atribuições, nos anos oitenta, na Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, como médico-sanitarista, figurava a de redigir discursos oficiais de autoridades.
Na década de 1990, elaborei mais de uma dúzia de memoriais para colegas que prestaram concursos para o magistério superior: tarefa não assinada, fora do meu CV, e não remunerada, mas valendo pela satisfação de ajudar e de ser útil; adicionalmente, essa experiência foi enriquecedora por permitir publicar o livro "Elaboração de Memeorial", obra esgotada.
Atenciosamente,
Marcelo Gurgel
E essa figura passante, coçando o queixo...? Sei não! Mas tive uma visão.
ResponderExcluirMuito boa, Raymundo. Principalmente por deixar o leitor no cruzamento REALIDADE / FICÇÃO. Mandou bem.
hahaha
ResponderExcluirQue visão foi essa, Carlos? Não se iluda...
Obrigado pelo comentário.
Obrigado também à Rô (e suas citações bem escolhidas), ao Pedro (que visitou, finalmente, o AlmanaCULTURA) e ao Marcelo (com CV de writer).
Abraços a todos.