"O sexo, dissociado da procriação, subsiste menos como princípio do prazer do que como princípio de diferenciação narcísica; o mesmo vale para o desejo de riqueza.”
Michel Houellebecq (Partículas Elementares)
Uma das coisas de que mais me orgulho foi ter influenciado a decisão da minha filha de jamais pôr cigarro e gota de álcool na boca (até o antisséptico bucal que ela usa não contém etanol). Não, não sou abstêmio e antitabagista, muito pelo contrário. Sua escolha, ela a tomou em razão do meu pigarro atroz e do meu ronco domingueiro de capotado, cacofonias que atrapalhavam seu soninho de princesa. Ah! Outras atitudes minhas também foram determinantes em sua sábia resolução de se formar em Medicina… e se especializar em Psiquiatria. (Conforta-me moralmente saber que estou desempenhando bem minha função paterna: dar exemplos. Aqueles que não devem ser seguidos, eu aviso e, com a linguagem do meu corpo desmazelado, demonstro o porquê.)
Como, nesta crônica, pretendo criticar a monomania, atualmente pandêmica, por saúde e beleza perfeitas, achei por bem – para ser honesto – introduzi-la com um breve autorretrato. Sim, não sou uma pessoa comedidamente ocupada com a própria saúde e a boa aparência para, com o moral dos justos, chutar o pau da barraca daqueles que, de forma desarrazoada, preocupam-se com tais motivos.
Ou não? Será que, pelo fato mesmo de ser exagerado ao ponto da displicência com o próprio corpo, não tenho legitimidade para falar, “de igual para igual”, com esses tarados por cooper e halteres? (Excluo do rol os profissionais, sejam atletas, atores, modelos e os que fazem do sexo um ofício, dado que seu ganha-pão depende da melhor forma física possível.) — Se, tanto em meu comportamento como no de muitos desses maníacos, há fortes traços de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), uma afecção mental, não posso sentenciar com propriedade: “você é minha imagem ‘invertida’ no espelho.”? Quanto às “carolas” de academia de ginástica que olham com desdém minha barriga grande – carinhosamente alcunhada por uma ex-namorada de “nossa” ilusão de óptica –, por que não devo dizer-lhes que são criaturas pasteurizadas, amargas pela carência de açúcar na dieta, deformadas pela supermalhação diária, embonecadas pelo silicone?
Essa preocupação “mórbida” com a saúde e a beleza, assim como o alcoolismo e o tabagismo, é uma doença mental degenerativa amplamente disseminada na sociedade de consumo. Três são as causas da pandemia: a) O merchandisingmidiático das grandes empresas, que, valendo-se de artifícios psicológicos, “erotiza” as mercadorias, associando até inseticidas com belas mulheres seminuas; b) O fato de que, nas economias afluentes, a riqueza material já não basta como meio de distinção social. Conforme constatou Michel Houellebecq, observando as pessoas em um shopping center, não dá para saber quem é filha de operário ou de capitalista. Em razão disso, o que melhor atende, hoje, ao impulso natural de competição narcísica é o sex appeal; c) A tecnocracia da previdência pública e privada, que, objetivando minimizar as despesas com doenças associadas a certas escolhas, desenvolve campanha agressiva contra o gordo e o fumante.
Criou-se, assim, um ideal de beleza inacessível à maioria das pessoas. Demais, a revolução new age, ao transformar o sexo em meio de diferenciação narcísica, trouxe muita miséria afetiva. Sim, enquanto um punhado de estátuas gregas faz amor com vários parceiros todos os dias, a massa dos quasímodos gasta a maior parte do tempo só treinando.
Enfim, essa luta obsessiva contra o envelhecimento e a morte (por juventude eterna) está fadada ao fracasso. A antecipação do fiasco e o desconforto das dietas geram frustração, que, por sua vez, é fonte de agressividade. Ora, tal agressividade pode voltar-se contra o próprio indivíduo, seja na forma de moléstias autoimunes ou como vontade inconsciente de morrer jovem — ou então se concentrar num bode expiatório: o “outro” que não compartilha seu modus vivendi.
Por isso que, como afirmei, tem essa doença um caráter mentalmente degenerativo.
Concluo esta crônica com um poema que escrevi para as mulheres possíveis (para a maravilhosa “comida caseira”, no sentido figurado da expressão), intitulado “Pequenas Imperfeições”:
Beijo tuas estrias,Lambo-te as celulites,Aperto teus culotes,Mordo teu sinal de carneE também os joanetes.Não me teria apaixonadoSe não tivesses esse estrabismo leveE os caninos saltados.Ah, essas pequenasImperfeiçõesQue apimentam tua beleza…Extraído do sítio/blogue As Esquisitices do Óbvio de Manuel Soares Bulcão
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