domingo, 10 de abril de 2022

"Um Filho de Ouro", de Raymundo Netto para O POVO


Júnior era cria de um renomado desembargador.

Chegou a este mundo montado numa realidade mais surreal do que a de Aladim, cuja lâmpada mágica lhe concedia apenas três desejos, enquanto que, para ele, um hedonista de berço, não haveria limites. Para o pai, a causa era tão justa quanto original: “Terá tudo o que eu não tive. E muito mais!” Supomos assim ter a palavra “dificuldade” caído em desuso no seu curso de vida, ao contrário de “tédio”. Morria de tédio, sofria de tédio, num marasmo ansioso, repleto de vazios existenciais e terrenos, como se fosse um Pequeno Príncipe sem a sua rosa.

Frequentou, não digo estudou, nos melhores colégios, usou e logo abusou das melhores grifes, se empanturrou em fast-foods, teve o melhor atendimento médico, não precisou de ônibus – não confio no caráter de quem nunca chacoalhou dentro de um –, não encontrou um único motivo para sofrimento e aflição, e se o encontrasse, certamente seu pai o contornaria: “Tenho direitos, usarei todos!”, bradava ele com a dignidade exacerbada de cidadão com foro e furico privilegiado.

O Júnior crescia. Não falava em profissão, trabalho, entre outras coisas desagradáveis. Restringia-se a comer, jogar videogames, passear, beber e dormir. Mas o pai queria o filho doutor. Médico? Por que não? Tentou. Todavia, Júnior não passava nos vestibulares. O pai, sempre assessorado de qualificados puxa-sacos, optou em fazê-lo prestar concurso em faculdade particular no interior, cuja primeira prova é a da mensalidade. Depois, daria um jeito. E deu: tornou-se o maior benfeitor da instituição, quase um sócio. Tivesse ali um busto, seria o dele. Contudo, durante o curso, com pouca aptidão às aulas e aos estudos, Júnior ligava sempre ao pai, contando de “pequenos” entraves jurídicos daqueles professores mais exigentes, de maneira que o pai, na ânsia da aprovação do rebento, não descansava enquanto não resolvesse todos eles.

Nos períodos de plantões hospitalares, Júnior descobriu a sala dos médicos e percebeu que ali estava seguro, longe dos apelos dos pacientes e mais próximo dos jogos de futebol na TV. Na mesma sala, uma fila de médicos concursados, “medalhões”, que não botavam os pés nos corredores, sempre se justificando: “Estou pagando para trabalhar!”

Ao concluir a faculdade, uma nada surpresa: “Pai, não gosto de ser médico. Detesto falar com aquela gente... Reclama demais, só fala em doença!” O pai, visivelmente emocionado, compreendeu a angústia do filho e até o abraçou: “Você puxou a mim... é um humanista!” No entanto, se não Medicina, faria o quê? Era de uma incompetência diluviana. Não sabia fazer nada, não tinha opinião própria sobre assunto nenhum e bater ponto, então, seria como dar de cara todos os dias com a esfinge tebana.

Os assessores do magistrado cavaram um fosso no piso de tanto andar em círculos na busca de uma opção, até que um deles iluminou-se: “Política! Esse rapaz tem de sobra todas as qualidades necessárias para se dar bem na política”.

O desembargador não perdeu tempo. Exigiu que o filho utilizasse ali o seu nome pomposo e extenso, antecedido pelo “doutor” que ele não era: “Médico dá voto, parece humano...” E não se preocupasse: assessoria cara e perfeita. Falaria e faria apenas o recomendado. Fora isso, acenasse, sorrisse e pegasse em algumas mãos e bebês: “E não têm germes, não?”, retrucava.  Respondiam, esfregando rápido as suas mãos: “Álcoolgel! Álcoolgel”.

Daí, com tudo isso e uns 5 milhões, é eleito. Na sua posse, o pai chorava a cântaros: “Filho, você é um político, um legislador!” Júnior, inquieto em seu outro mundo, refletia: “Pai, os colegas tavam dizendo que fazer ‘rachadinha’ é uma boa. Isso é legal?” O pai assombrou-se: “Filho... se ninguém souber... é legal!”

Depois, num abraço que justifica a própria existência, prenunciou: “Ainda hei de te ver, meu adorado filho, no Planalto, presidente deste país... Ora, qualquer idio... indivíduo pode ser presidente. Você será, meu filho, um presidente de verde e amarelo!”

Não convencido, o jovem deputado encostou-se numa poltrona tão preguiçosa quanto um Macunaíma: “Mas, pai, presidente tem que trabalhar?”






 

22 comentários:

  1. Raymundo, Deus meu, que estrago... parece ficção kkkkk. um abraço grande, cada dia melhor

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    1. Parece mesmo, né? Que pena que não é, nenão? rsrs Obrigado, Lucirene.

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  3. furico privilegiado? soltei a gargalhada, por aqui! haahah

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  5. Não é ficção? Sendo ou não, levarei para uma aula de Economia Política. Bravo, cumpadi véi

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    1. Sempre é. Nunca é. Ó dor... rsrs Obrigado pela leitura e entusiasmo, prof. Macário.

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  6. Adorei, bom demais um choque de realidade na segunda de manhã rsrs

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  7. Você não confia no caráter de quem nunca chacoalhou dentro de um busão? Kkkkk Em mim você pode confiar.

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    1. Pois é, Zélia, desses eu desconfio... Empatia pode ser fruto de treino e vivência. Bom que não fosse assim...

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  8. Nem sempre presidente trabalha. Sei de um que atrapalha. Mas ser deputado, até no atrapalho é menos ativo. Ele tem razão

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  9. Presidente trabalha, mas conheço um que atrapalha. Já deputado, até no atrapalho é menos ativo. Ele tem razão

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    1. Hahaha Conhecemos, então, vários, amigo Oswald. Grande abraço, meu xará e amigo.

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  10. Amei esse texto. Como escreve e descreve bem as "situações dos que nascem, digamos privilegiados". Excelente mesmo. E a expressão "furico privilegiado"? Kkkkk

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    1. Agradeço demais a sua leitura, caro(a) desconhecido(a). E feliz pela reação humorada. rsrs

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  11. Gostei demais. Realidade X Ficção. Você como sempre, nos empolga com suas histórias. E o final “Mas, pai, presidente tem que trabalhar?” é um questionamento que nos faz rir de nervoso e indignação.


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    1. Sim, Malvinier, mas que pena que esse nervoso é por conta da realidade da coisa, né? Grande abraço e obrigado pelo retorno.

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  12. Lembrei de Machado e sua "teoria do medalhão". Excelente!

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    1. Olá, Carmem, prazer em "vê-la" por aqui. Há tanto tempo... Olha, a lembrança é ótima, viu? rsrsr Grande abraço.

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