Corria a primeira metade dos anos 1970, e uma terrível ditadura militar
varria o país, mas nós – reles meninos de Tamboril no interior do Ceará –
ignorávamos tudo isso, sequer desconfiávamos que bem ali de lado, em Crateús, o
heroico paraibano-cearense-brasileiro Dom Fragoso resistia bravamente junto com
seus padres e religiosos das Comunidades Eclesiais de Base. Queríamos mesmo era
correr estradas, varrer caminhos, se esconder em quintais, tomar banho de açude
nos raros invernos, e caçar passarinhos...
Sabendo das traquinagens, meu pai insistia vigilante, às manhãs no
colégio, às tarefas de cuidar da vaca, limpar o quintal, aguar plantas e, sem
folga, às horas das lições de casa, sagradas e severamente vigiadas por minha
mãe. Mas tínhamos as possibilidades das fugas, que se renovavam em mil
artimanhas e criatividades: mentíamos muito para lograr êxitos.
E dessas fugas estão quase todas as nossas lembrança de infância, raras
são as memórias guardadas das “horas oficiais” de bons meninos, porém os
momentos forjados a fórceps ficaram grudados na mente e mesmo depois de 40 anos
escorrem vivas nas noites de insônia, pelas frestas do tédio.
Só uma obrigação nos dava interesseiro prazer, nos dias de feira do sábado
meu pai nos levava, a mim e ao meu irmão, para vigiar as bicicletas no quintal
da sua pequena sapataria, que era dividido ao meio entre os ganhos de algumas
moedas já no meio da tarde: meu irmão, sempre muito zeloso, guardava cada
centavo; eu, mais desastrado, corria para comprar o que desse o apurado: fosse
bola, calção de jogador, canivete... Mas um dia descobri uma banca que vendia
pequenos espelhos redondos, com fundos que me causava êxtase: escudos dos
clubes de futebol e mulheres peladas.
Passei a andar sempre com um desses espelhinhos mágicos no bolso do
calção, de dia me deslumbrava o mundo através de seus muitos reflexos e ângulos
invertidos, pela primeira vez na vida conhecia o outro lado das coisas comuns,
usava mais a imaginação que o real das figuras – que deixava para as horas
noturnas, destas vezes usando o inverso do vidro, viajava frenético nas imagens
de times e garotas.
Entretanto logo passei a fugir dos espelhos: num começo de tarde uma leva
de meninos corria em direção à cadeia pública no bairro dos Pereiros, ligeiro
atalhei a dianteira que já passava no velho hospital abandonado na entrada das
Pedrinhas: cheguei ao pelotão de curiosos que formava fila na frente do
presídio – uns entravam com olhos arregalados de curiosidades e outros saíam com
os olhos arregalados de medos: chegou minha vez de pegar o pequeno espelho
quebrado e tentar, nervoso, localizar o preso que se enforcara com o punho da
rede no canto mais escondido à esquerda das grossas grades da cela.
O que vi ou o que imaginei ter visto na imagem partida e embaçada daquele
espelho trêmulo ainda hoje nem desconfio – mais tarde passei temeroso, e só
olhei da janela, no velório na casa de dona Sé, parenta distante do caçador
injustamente acusado de roubo, que não suportou o peso da vergonha e se jogou
de joelho naquele abismo no canto mais escuro do desespero.
Sei que nunca mais possuí espelhos, enterrei todos (mas antes os quebrei,
até esqueci-me de salvar o papel plastificado das figuras de trás) debaixo do
mulungu no fundo do quintal: ainda hoje tenho medo de espelhos quebrados... E
do que possa ver de estranho em seus fundos partidos!
Bom demais! E essa construção frasal "se jogou de joelhos naquele abismo no canto mais escuro do desespero"?? Magnífico.
ResponderExcluirGracias mestres Salgueiro e Netto
Excelente resgate do seu passado.
ResponderExcluirMagnifica crônica, como toddas do mestre Salgueiro. Essa me fez lembrar do conto "O preso", de outro mestre, Moreira Campos.
ResponderExcluirBelíssima crônica, primo. Não canso de elogiar sua sensibilidade com as letras e com as memórias.
ResponderExcluirA memória do amigo escritor é perfeita, magnífica, me fez lembrar que os presos também faziam uso de espelhos na insistência de ver uma ou outra pessoa passando no seu cavalo em dia de feira, na bicicleta ou mesmo a pé.
ResponderExcluirMeu amigo Pedro Salgueiro, crônica simplesmente magnífica!!! Parabéns, camarada!
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