Bonança era uma
pacata e acolhedora cidade interiorana,
arrostada a uma sempre verde serra, quase uma janela mitológica,
costumeiramente fonte das histórias ancestrais do local. Não fossem alguns
poucos representantes comerciais a abastecer-lhe mercearias, farmácias,
oficinas e papelaria, não haveria comunicação nenhuma entre Bonança e o mundo.
Um dia, chegou
por lá, rompendo a serena rotina da Câmara Municipal, um homem grande, todo em preto,
de cara amarrada e de poucas palavras, dizendo-se ser a LEI, e que iria arranchar-se
por ali. Um dos vereadores estranhou: “Mas lei para quê? A cidade é quase uma
família, há anos não sabe nem o que é crime!” O homem, puxando o edil pela
gola, vociferou: “Onde não há lei, imperam os criminosos!”.
Largando o
homenzinho contra a parede, perguntou onde ficava a Delegacia. Amedrontados, todos
se entreolharam: não havia nenhuma. Perplexo e impaciente, a LEI dirigiu-se à
praça da matriz, sede social de Bonança, e lá encontrou gente dormindo em
bancos, soltando arraias, jogando futebol de meia, damas, gamão, baralho... Apresentando,
à cintura, a sua arma – a chamava de “bacamarte” –, espalhou no ar a sua voz
estrondosa: “Teje tudo preso, cambada de vagabundos!” Eles não estavam fazendo
nada demais, todavia, de tão pacíficos, quase choraram com aquele anúncio: “Vadiagem
e jogo de azar são intoleráveis... Prisão em flagrante!” Um deles, o mais velho, ousou: “Mas presos
onde, doutor, se não existe Cadeia na cidade?” De imediato, a LEI respondeu:
“Não tem hoje, e por isso vocês construirão uma. Trabalhando, pode ser que
consigam remição de pena. Pode ser... Vamos logo, seus preguiçosos!”
Daí, durante
dias e noites de trabalho interminável, com pausas apenas para refeições, o
clima da cidade era de completo desassossego e terror. Ouvia-se aqui e acolá
que todos os dias aumentava, a olhos vistos, o número de condenados na cidade. Eles
não entendiam, mas segundo a LEI, todos eles eram de alguma forma criminosos.
Logo de
início, o mais antigo jornalzinho da cidade, que denunciou a arbitrariedade da
LEI, foi empastelado sob a acusação de crime de imprensa e contra a honra. O prefeito
já suava na obra, acusado de cobrança indevida de impostos e corrupção passiva.
Os fumantes, assim como aqueles que tivessem um papagaio ou bicho do mato em
casa ou colhessem flor do jardim da praça para dar a namoradinha, eram “presos”
por crime ambiental. Caso tirassem essa mesma flor ou colhessem frutas do
jardim alheio, pedissem qualquer coisa emprestada e não devolvessem, corressem
nas calçadas sem motivo que justificasse, eram enquadrados em crime contra o
patrimônio: furto, receptação, dano etc. Quem se deixasse ficar em
espreguiçadeiras ou cadeiras nas mesmas calçadas após às 21h era recolhido, acusado
de crime contra o respeito aos mortos – na cidade havia um cemiteriozinho tão
mixuruca que não dava gosto ficar por ali nem alma penada. Namorassem na
calçada ou na pracinha, e dependendo de como tomassem sorvete em público, poderiam
ser enquadrados sob a acusação de crime contra a dignidade sexual. Deixassem um
menor em casa, mesmo que por pouco tempo, ou fizessem parte de pequenas
discussões, eram vistos como crime contra a pessoa: abandono de incapaz, lesão
corporal, constrangimento. Até fofoca era motivo de prisão, considerada ameaça
e inviolabilidade de segredo. Assim, com o crescente número de operários dedicados
à obra, com muito pouco Bonança ganharia a sua primeira Delegacia e Cadeia.
A LEI, arrogante
e orgulhosa, não pouparia esforços e conseguiria que a imprensa, também a
título de remição, divulgasse ao mundo a inauguração da nova sede da justiça no
município.
No dia
acertado, porém, uma desconhecida van aportou-se na praça e homens em jalecos
brancos logo identificaram e pularam com uma camisa de força em cima da LEI.
Ele, surpreso, tirou seu “bacamarte” do cós das calças e começou a tirar sons
com a boca: “Bang! Bang! Você tá morto...Você também...” Mas aquela gritaria
não impediu que eles “envelopassem” a LEI. Sim, meus amigos, a LEI era uma lunática,
louca, pirada, mentecapta...
Devido a
uma série de explicações, depoimentos e protocolos, os paramédicos decidiram recolher
naquelas celas, provisoriamente, o paciente fugido do Asilo, conhecido como
Casa Verde de Itaguaí, enquanto resolviam a sua transferência, inaugurando assim
a Cadeia de Bonança.
Ao final da
tarde, a van se foi da cidade, levando com ela a inconformada LEI a esmurrar o
vidro traseiro.
Todos os
moradores estavam presentes à pracinha, assistindo à confusão. Caía o
avermelhecer do horizonte e já pintavam algumas estrelas no céu, e eles, como
tomados por detestáveis constrangimento e vergonha, permaneceram imóveis ali, olhando
uns para os outros, até que o prefeito, do nada, pegou uma picareta e pôs-se a
enfiá-la freneticamente nas paredes recém-caiadas daquela Delegacia. Então, um
a um dos moradores pegaram outras picaretas e marretas e deitavam a sua ira
naquelas paredes até não restar nenhuma em pé.
Era tarde
demais: a LEI acabara de vez com a ingenuidade, a segurança e a paz, tudo em
ruínas, da hoje paranoica e sombria Bonança.
você e suas maravilhosas idéias. sim, a desconfiança gera mil e uma miragens. a descoberta do mal. causa impactos negativos para todo o sempre. parabéns!! que se multipliquem as segundas.
ResponderExcluirLucirene, muito obrigado pela leitura e pelo retorno. De fato esse conto nos abre vários pontos de reflexão. Alguns deles podem ser assustadores.
ExcluirLi essa crônica com o coração se apertando após a chegada da Lei.
ResponderExcluirRaymundo, você nos oferece mais uma história com desenrolar e final inesperados e cativantes
Uau! Que legal. Bom saber. Funcionou? rsrs Grande abraço.
ExcluirGenial metáfora do que se deu, após as invasões dos impérios da lei sobre os povos "atrasados", só que seu desenlace é bem otimista.
ResponderExcluirSim, um pouco de otimismo é necessário, amigo. rsrs Grato pela sua leitura.
ExcluirSensacional!
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