domingo, 24 de abril de 2022

"Bonança", de Raymundo Netto para O POVO (na íntegra)


Bonança era uma pacata e acolhedora cidade interiorana, arrostada a uma sempre verde serra, quase uma janela mitológica, costumeiramente fonte das histórias ancestrais do local. Não fossem alguns poucos representantes comerciais a abastecer-lhe mercearias, farmácias, oficinas e papelaria, não haveria comunicação nenhuma entre Bonança e o mundo.

Um dia, chegou por lá, rompendo a serena rotina da Câmara Municipal, um homem grande, todo em preto, de cara amarrada e de poucas palavras, dizendo-se ser a LEI, e que iria arranchar-se por ali. Um dos vereadores estranhou: “Mas lei para quê? A cidade é quase uma família, há anos não sabe nem o que é crime!” O homem, puxando o edil pela gola, vociferou: “Onde não há lei, imperam os criminosos!”.

Largando o homenzinho contra a parede, perguntou onde ficava a Delegacia. Amedrontados, todos se entreolharam: não havia nenhuma. Perplexo e impaciente, a LEI dirigiu-se à praça da matriz, sede social de Bonança, e lá encontrou gente dormindo em bancos, soltando arraias, jogando futebol de meia, damas, gamão, baralho... Apresentando, à cintura, a sua arma – a chamava de “bacamarte” –, espalhou no ar a sua voz estrondosa: “Teje tudo preso, cambada de vagabundos!” Eles não estavam fazendo nada demais, todavia, de tão pacíficos, quase choraram com aquele anúncio: “Vadiagem e jogo de azar são intoleráveis... Prisão em flagrante!”  Um deles, o mais velho, ousou: “Mas presos onde, doutor, se não existe Cadeia na cidade?” De imediato, a LEI respondeu: “Não tem hoje, e por isso vocês construirão uma. Trabalhando, pode ser que consigam remição de pena. Pode ser... Vamos logo, seus preguiçosos!”

Daí, durante dias e noites de trabalho interminável, com pausas apenas para refeições, o clima da cidade era de completo desassossego e terror. Ouvia-se aqui e acolá que todos os dias aumentava, a olhos vistos, o número de condenados na cidade. Eles não entendiam, mas segundo a LEI, todos eles eram de alguma forma criminosos.

Logo de início, o mais antigo jornalzinho da cidade, que denunciou a arbitrariedade da LEI, foi empastelado sob a acusação de crime de imprensa e contra a honra. O prefeito já suava na obra, acusado de cobrança indevida de impostos e corrupção passiva. Os fumantes, assim como aqueles que tivessem um papagaio ou bicho do mato em casa ou colhessem flor do jardim da praça para dar a namoradinha, eram “presos” por crime ambiental. Caso tirassem essa mesma flor ou colhessem frutas do jardim alheio, pedissem qualquer coisa emprestada e não devolvessem, corressem nas calçadas sem motivo que justificasse, eram enquadrados em crime contra o patrimônio: furto, receptação, dano etc. Quem se deixasse ficar em espreguiçadeiras ou cadeiras nas mesmas calçadas após às 21h era recolhido, acusado de crime contra o respeito aos mortos – na cidade havia um cemiteriozinho tão mixuruca que não dava gosto ficar por ali nem alma penada. Namorassem na calçada ou na pracinha, e dependendo de como tomassem sorvete em público, poderiam ser enquadrados sob a acusação de crime contra a dignidade sexual. Deixassem um menor em casa, mesmo que por pouco tempo, ou fizessem parte de pequenas discussões, eram vistos como crime contra a pessoa: abandono de incapaz, lesão corporal, constrangimento. Até fofoca era motivo de prisão, considerada ameaça e inviolabilidade de segredo. Assim, com o crescente número de operários dedicados à obra, com muito pouco Bonança ganharia a sua primeira Delegacia e Cadeia.

A LEI, arrogante e orgulhosa, não pouparia esforços e conseguiria que a imprensa, também a título de remição, divulgasse ao mundo a inauguração da nova sede da justiça no município.

No dia acertado, porém, uma desconhecida van aportou-se na praça e homens em jalecos brancos logo identificaram e pularam com uma camisa de força em cima da LEI. Ele, surpreso, tirou seu “bacamarte” do cós das calças e começou a tirar sons com a boca: “Bang! Bang! Você tá morto...Você também...” Mas aquela gritaria não impediu que eles “envelopassem” a LEI. Sim, meus amigos, a LEI era uma lunática, louca, pirada, mentecapta...

Devido a uma série de explicações, depoimentos e protocolos, os paramédicos decidiram recolher naquelas celas, provisoriamente, o paciente fugido do Asilo, conhecido como Casa Verde de Itaguaí, enquanto resolviam a sua transferência, inaugurando assim a Cadeia de Bonança.

Ao final da tarde, a van se foi da cidade, levando com ela a inconformada LEI a esmurrar o vidro traseiro.

Todos os moradores estavam presentes à pracinha, assistindo à confusão. Caía o avermelhecer do horizonte e já pintavam algumas estrelas no céu, e eles, como tomados por detestáveis constrangimento e vergonha, permaneceram imóveis ali, olhando uns para os outros, até que o prefeito, do nada, pegou uma picareta e pôs-se a enfiá-la freneticamente nas paredes recém-caiadas daquela Delegacia. Então, um a um dos moradores pegaram outras picaretas e marretas e deitavam a sua ira naquelas paredes até não restar nenhuma em pé.

Era tarde demais: a LEI acabara de vez com a ingenuidade, a segurança e a paz, tudo em ruínas, da hoje paranoica e sombria Bonança.




 

7 comentários:

  1. você e suas maravilhosas idéias. sim, a desconfiança gera mil e uma miragens. a descoberta do mal. causa impactos negativos para todo o sempre. parabéns!! que se multipliquem as segundas.

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    1. Lucirene, muito obrigado pela leitura e pelo retorno. De fato esse conto nos abre vários pontos de reflexão. Alguns deles podem ser assustadores.

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  2. Li essa crônica com o coração se apertando após a chegada da Lei.
    Raymundo, você nos oferece mais uma história com desenrolar e final inesperados e cativantes

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    1. Uau! Que legal. Bom saber. Funcionou? rsrs Grande abraço.

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  3. Genial metáfora do que se deu, após as invasões dos impérios da lei sobre os povos "atrasados", só que seu desenlace é bem otimista.

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    1. Sim, um pouco de otimismo é necessário, amigo. rsrs Grato pela sua leitura.

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