domingo, 2 de novembro de 2014

"Nordestinos: preconceitos cruzados", de Plínio Bortolotti para O POVO


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Certa vez, conversando com um grande empresário cearense do ramo de alimentos, ouvi dele uma história exemplar. Quando começou a mandar seus produtos para o sul, ele retirou da embalagem qualquer marca que pudesse identificar a fabricação nordestina, inclusive omitindo o endereço completo da empresa. Como na época era permitido, ele omitia os dados completos da localização da fábrica, anotando o seguinte endereço na embalagem: “BR 116, km tal”, sem enunciar o nome da cidade.
Como poucos sabem o modo como uma rodovia é demarcada, ficava mascarado o exato local da sede da empresa. Foi a forma encontrada para driblar o preconceito contra produtos fabricados no Nordeste. O mais irônico, contou, acontecia em recepções das quais participava: era comum ouvir elogios de “madames” ao produto, considerando-o “delicioso”, em comparação com a “má qualidade” do que era fabricado no Ceará. O empresário, silenciosamente, divertia-se: “Mal sabiam elas que comiam o que era feito aqui bem pertinho”.
Lembrei da história devido à onda de preconceito que assomou com mais vigor depois da reeleição de Dilma Rousseff (PT) à presidência. “Burro” foi a mais gentil ofensa com a qual os nordestinos foram brindados – a escala passava por xingamentos diversos, chegando ao ponto de preconizar um holocausto contra a “raça”. Observem: há uma cerca simbólica (se pudessem muitos a fariam real) de Minas Gerais para cima em que tudo se torna indistinto e abominável. Para esse tipo de gente todos os nordestinos são “burros”; vagabundos, que preferem uma rede ao trabalho; e vivem dolentemente às expensas da riqueza gerada por São Paulo: “Non ducor duco” (não sou conduzido, conduzo) está inscrito brasão da capital paulista.
São Paulo é apenas, digamos assim, um símbolo, dessa má ideia, que encontra adeptos nos demais estados do Sul e Sudeste. Não é por acaso que todo migrante nordestino, chegando a São Paulo, não importa a origem, vira imediatamente “Ceará”; se cair no Rio de Janeiro, é “Paraíba”.
Desditosamente, como podemos observar pela história do empresário, esse preconceito encontra guarida entre os próprios nordestinos, não sei se campeia entre as outras classes, ou apenas entre a “elite”. Assim, o preconceito tem uma espécie de efeito dominó: o Sul/Sudeste tem preconceito contra o nordestinos de modo geral e, estes (normalmente os privilegiados) têm seus próprios “nordestinos”: os pobres, aqueles que vivem nos interiores, no “sertão”.

O que é, senão isso, o ódio contra o Bolsa Família que desaguou em uma “leva de preguiçosas” que não aceita mais trabalhar na casa da madame a troco de um quartinho insalubre e um salário miserável? O que é senão a revolta do sinhozinho contra o trabalhador rural que não se deixa mais escravizar? O que isso senão a ironia contra o pedreiro que fica “botando banca”, sem aceitar uma diária que mal dá para pagar a quentinha e a passagem do ônibus?

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