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Certa vez,
conversando com um grande empresário cearense do ramo de alimentos, ouvi dele
uma história exemplar. Quando começou a mandar seus produtos para o sul, ele
retirou da embalagem qualquer marca que pudesse identificar a fabricação
nordestina, inclusive omitindo o endereço completo da empresa. Como na época
era permitido, ele omitia os dados completos da localização da fábrica,
anotando o seguinte endereço na embalagem: “BR 116, km tal”, sem enunciar o
nome da cidade.
Como poucos sabem o modo como uma rodovia é demarcada, ficava
mascarado o exato local da sede da empresa. Foi a forma encontrada para driblar
o preconceito contra produtos fabricados no Nordeste. O mais irônico, contou,
acontecia em recepções das quais participava: era comum ouvir elogios de
“madames” ao produto, considerando-o “delicioso”, em comparação com a “má
qualidade” do que era fabricado no Ceará. O empresário, silenciosamente,
divertia-se: “Mal sabiam elas que comiam o que era feito aqui bem pertinho”.
Lembrei da história devido à onda de preconceito que assomou
com mais vigor depois da reeleição de Dilma Rousseff (PT) à presidência.
“Burro” foi a mais gentil ofensa com a qual os nordestinos foram brindados – a
escala passava por xingamentos diversos, chegando ao ponto de preconizar um
holocausto contra a “raça”. Observem: há uma cerca simbólica (se pudessem
muitos a fariam real) de Minas Gerais para cima em que tudo se torna indistinto
e abominável. Para esse tipo de gente todos os nordestinos são “burros”;
vagabundos, que preferem uma rede ao trabalho; e vivem dolentemente às expensas
da riqueza gerada por São Paulo: “Non ducor duco” (não sou conduzido, conduzo)
está inscrito brasão da capital paulista.
São Paulo é apenas, digamos assim, um símbolo, dessa má
ideia, que encontra adeptos nos demais estados do Sul e Sudeste. Não é por
acaso que todo migrante nordestino, chegando a São Paulo, não importa a origem,
vira imediatamente “Ceará”; se cair no Rio de Janeiro, é “Paraíba”.
Desditosamente, como podemos observar pela história do empresário,
esse preconceito encontra guarida entre os próprios nordestinos, não sei se
campeia entre as outras classes, ou apenas entre a “elite”. Assim, o
preconceito tem uma espécie de efeito dominó: o Sul/Sudeste tem preconceito
contra o nordestinos de modo geral e, estes (normalmente os privilegiados) têm
seus próprios “nordestinos”: os pobres, aqueles que vivem nos interiores, no
“sertão”.
O que é, senão isso, o ódio contra o Bolsa Família que
desaguou em uma “leva de preguiçosas” que não aceita mais trabalhar na casa da
madame a troco de um quartinho insalubre e um salário miserável? O que é senão
a revolta do sinhozinho contra o trabalhador rural que não se deixa mais
escravizar? O que isso senão a ironia contra o pedreiro que fica “botando
banca”, sem aceitar uma diária que mal dá para pagar a quentinha e a passagem
do ônibus?
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