Toda
noite quando deito
Um pesadelo me abraça
Meu cabelo que era preto
Meu cabelo que era preto
Está da cor de fumaça
Ficou
branco após os trinta
Eu não quis gastar com tinta
O tempo pintou de graça.
O tempo pintou de graça.
Os versos do repentista João
Paraibano já mostram a verdade: pouca gente se conforma com os cabelos brancos.
Mas eu, eu amo cabelos brancos. Sejam muitos, sejam todos, seja uma mecha
saindo à raiz da testa, um discreto aglomerado nas têmporas, fios que se espalham
pelos cabelos escuros ou claros, grisalhos suaves, fios que vão aparecendo,
pouco a pouco, ou surgem num raiar do dia. Uns chegam antes do esperado, outros
bem tarde na vida. Mas sempre vêm.
Sei que as opiniões são
contrárias, algumas pessoas gostam, usam, tecem loas, rebelam-se contra a vaga
e inconstante leviandade de uma falsa juventude, recusam-se a se tornar
escravas da tinta e da amônia, das conversas tolas nos cabeleireiros, e não se
conformam com as horas perdidas a esperar; outros alegam que algumas profissões
– como de escritores, juízes, filósofos – requerem uma imagem de madureza, e
quanto mais velha a pessoa, mais venerável. Que o ar é de coragem, segurança,
plenitude e luz. O ar da experiência. Cabelos naturais. Saudáveis. Calmos. Mostram
a doçura de bem envelhecer. Por que irmos contra a natureza?
Outras abominam, fazem a pregação
da jovialidade, acham que os cabelos brancos dão um aspecto abatido, frágil,
que não combinam com uma pessoa jovem, uma pele lisa se tornará indefinida, emoldurada
por cabelos enevoados. Que são intrusos, parecem uma névoa fria. Que os fios
brancos são ressecados e quebradiços. Para esses, os cabelos lavados em neve
parecem descuido. Desistência. Dizem que não devemos nos impressionar com essa
alvura, ela nada significa, pois os maus, os vis, também envelhecem. E nem
sempre as cãs mostram uma pessoa que soube aproveitar as experiências da vida.
Inventaram até um remédio que elimina os fios brancos com sessenta cápsulas.
Ainda assim, senhoras e senhores elegantes, e mesmo jovens, em cidades deste
vasto mundo, em sertões, campos, aldeias, usam a cor natural de seus cabelos, e
muitas pessoas ostentam a brancura com orgulho, sentindo-se belas.
Não é comovente reencontrar
alguém que não vemos há anos, e ali estão nas têmporas os primeiros fios
brancos, onde dormem lembranças? Poetisas nos encantam com seus versos e com
sua figura envolta por uma névoa também poética – os cabelos de Adélia Prado
cobrem sua imagem com a virtude dos lírios. Comovente ver passar um homem
comum, concentrado em seus pensamentos, os cabelos alvos brilhando ao sol. Ou
na foto uma senhora que trança suas cãs em torno da cabeça; tão forte nos
parece essa mulher.
Claros fios de prata em minha fronte
que tanto me abreviais a vida
breve,
e os dias, que me leva o tempo leve
e que eu não quis contar, mandais
que conte.
Como dizem os versos de Guilherme
de Almeida, os cabelos brancos contam histórias que não quisemos contar, ou que
nem precisamos contar. Fazem lembrar como a vida é breve, e que devemos
aproveitar cada instante. Nos avisam de que já temos uma longa história a ser
honrada. São resinas de lembranças.
Um dia vi, na rua, uma mocinha
com os cabelos quase completamente brancos. Era tão linda! Tão diferente de
tudo, tão chamativa a sua figura! Ninguém ficava sem olhá-la; uns se
espantavam, outros a admiravam com ternura. Acompanhei com os olhos o seu
passo, até que ela se foi, com sua grinalda de menina, com seu véu de noiva, um
natural véu que celebrava o casamento dela consigo mesma.
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