segunda-feira, 17 de novembro de 2014

"Cabelos Brancos", de Ana Miranda para O POVO


Toda noite quando deito
Um pesadelo me abraça
Meu cabelo que era preto
Está da cor de fumaça

Ficou branco após os trinta
Eu não quis gastar com tinta
O tempo pintou de graça.

Os versos do repentista João Paraibano já mostram a verdade: pouca gente se conforma com os cabelos brancos. Mas eu, eu amo cabelos brancos. Sejam muitos, sejam todos, seja uma mecha saindo à raiz da testa, um discreto aglomerado nas têmporas, fios que se espalham pelos cabelos escuros ou claros, grisalhos suaves, fios que vão aparecendo, pouco a pouco, ou surgem num raiar do dia. Uns chegam antes do esperado, outros bem tarde na vida. Mas sempre vêm.
Sei que as opiniões são contrárias, algumas pessoas gostam, usam, tecem loas, rebelam-se contra a vaga e inconstante leviandade de uma falsa juventude, recusam-se a se tornar escravas da tinta e da amônia, das conversas tolas nos cabeleireiros, e não se conformam com as horas perdidas a esperar; outros alegam que algumas profissões – como de escritores, juízes, filósofos – requerem uma imagem de madureza, e quanto mais velha a pessoa, mais venerável. Que o ar é de coragem, segurança, plenitude e luz. O ar da experiência. Cabelos naturais. Saudáveis. Calmos. Mostram a doçura de bem envelhecer. Por que irmos contra a natureza?
Outras abominam, fazem a pregação da jovialidade, acham que os cabelos brancos dão um aspecto abatido, frágil, que não combinam com uma pessoa jovem, uma pele lisa se tornará indefinida, emoldurada por cabelos enevoados. Que são intrusos, parecem uma névoa fria. Que os fios brancos são ressecados e quebradiços. Para esses, os cabelos lavados em neve parecem descuido. Desistência. Dizem que não devemos nos impressionar com essa alvura, ela nada significa, pois os maus, os vis, também envelhecem. E nem sempre as cãs mostram uma pessoa que soube aproveitar as experiências da vida. Inventaram até um remédio que elimina os fios brancos com sessenta cápsulas. Ainda assim, senhoras e senhores elegantes, e mesmo jovens, em cidades deste vasto mundo, em sertões, campos, aldeias, usam a cor natural de seus cabelos, e muitas pessoas ostentam a brancura com orgulho, sentindo-se belas.
Não é comovente reencontrar alguém que não vemos há anos, e ali estão nas têmporas os primeiros fios brancos, onde dormem lembranças? Poetisas nos encantam com seus versos e com sua figura envolta por uma névoa também poética – os cabelos de Adélia Prado cobrem sua imagem com a virtude dos lírios. Comovente ver passar um homem comum, concentrado em seus pensamentos, os cabelos alvos brilhando ao sol. Ou na foto uma senhora que trança suas cãs em torno da cabeça; tão forte nos parece essa mulher.
Claros fios de prata em minha fronte
que tanto me abreviais a vida breve,
e os dias, que me leva o tempo leve
e que eu não quis contar, mandais que conte.

Como dizem os versos de Guilherme de Almeida, os cabelos brancos contam histórias que não quisemos contar, ou que nem precisamos contar. Fazem lembrar como a vida é breve, e que devemos aproveitar cada instante. Nos avisam de que já temos uma longa história a ser honrada. São resinas de lembranças.

Um dia vi, na rua, uma mocinha com os cabelos quase completamente brancos. Era tão linda! Tão diferente de tudo, tão chamativa a sua figura! Ninguém ficava sem olhá-la; uns se espantavam, outros a admiravam com ternura. Acompanhei com os olhos o seu passo, até que ela se foi, com sua grinalda de menina, com seu véu de noiva, um natural véu que celebrava o casamento dela consigo mesma.

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