sábado, 8 de novembro de 2014

"VIXIT!", de Raymundo Netto para O POVO


Depois do entardecer lunar, ante o mexerico das estrelas e de um solcris, solavancava, como um galope à beira-mar, o suspiro derradeiro.
O pensamento a distante se perdia e roto banhava-me da luz que chegava daquele olhar perdido na fleuma do passado presente.
Como se manifesto de miasmas, sentia o corpo a se aquebrantar no exalado aroma incandescente a excrescer no escuro lembramento, como um corredor frio e senzalavrador de medos.
Senti febre de me roubar o ar. Na garganta, a palavra feria purulenta, amara e frouxa como sangue, a correr venosa na pele, a se desmanchar em escamas, a me pedir: "Desista!"
Contudo, não sabia a voz, que o mar cedo já me batia às paredes do coração encruecido, ensurdecendo a cada dia, conforme a indecisão infantil das marés e dos ocorridos, dos conflitos, dos aflitos, da insânia assoleirada em minha porta.
Inapto ao mundo e à vida, lancei a pedra na Lua, saltei por casas de angústias que não se calam. Devastei pessoas que traziam flores nas palmas das mãos e sorrisos nos dedos, mas que não suportaram viver por trás de paredes brancas que construí na esperança de pouso e de ninho. Na verdade, aquele ar deletério a que tanto me acostumei, embora saiba que me consuma aos poucos até não mais possível vingar-lhe a chama, como garras, as estrangulava.
Um dia, entre nuvens dos olhos e do céu, recolhi um desejo azul, tingindo de firmamento o rosto por debaixo da máscara de sorriso contraído e arranquei a pele e os espelhos para nunca mais encontrar-me outra vez. E a perdi. Me perdi. Só. Completamente.
Durante anos, sem sabê-lo, percorri o (meu) mundo à procura daquela imagem que cuidei destruir, mas nos sonhos, muitas vezes recortados e infrequentes, via com assombro aquele rosto que não o meu, e ainda tão mais eu.
Às noites, cansado de esperar a queda de meteoros, promovia deicídios, feria os rituais, deitava no teto, desenhava caricaturas por sobre espelhos, tentava ignorar aquele "ninguém", que estava sempre ao lado, a acenar com a cabeça: "Agora!"
"Agora, ainda não!"
Tinha que escolher. Havia tempos, escolhi por não escolher. Não podia fechar portas, nem janelas. "Quem tem depressão não pode fechá-las nunca." Não gostava de multidões. Vozes demais entonteciam. Detestava a mentira. Não suportava posses, nem manias, nem soberba, muito menos ciúmes, certezas ou prisões. Queria ser livre de tudo. Ria e me condoía da hipocrisia do mundo. Não queria crescer, suportar a vida ou a morte. Não queria sonhar e fundei o meu país no reino da ideia, vizinho ao da loucura, onde escrever foi a única forma que encontrei para gritar em silêncio.

3 comentários:

  1. A palavra em sua luta eterna contra a morte (principalmente aquela que se dá ainda em vida). Belo texto. Parabéns.

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  2. Amigo e poeta Stélio, obrigado pela sua gentil leitura.

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  3. "...entre nuvens dos olhos e do céu, recolhi um desejo azul, tingindo de firmamento o rosto por debaixo da máscara de sorriso contraído e arranquei a pele e os espelhos para nunca mais encontrar-me outra vez. E a perdi. Me perdi."
    "... gritar em silêncio." O escritor e poeta desvenda uma parte importante da mente humana. Decifra o que pensa, sente e aquelas coisas secretas que guardamos para nós mesmos, na maioria das vezes. Belíssimo texto poético!

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