segunda-feira, 1 de maio de 2017

"Fotografia 3 x 4", de Raymundo Netto em "Para Belchior com Amor", org. Ricardo Kelmer, ed. Miragem


Publicado originalmente em Para Belchior com Amor, organizado por Ricardo Kelmer.

Quanto amei ou deixei de amar,
é a mesma saudade em mim.
Fernando Pessoa

“Sobral?”, riu-se. “E existe isso?”
“Existe, seu guarda. E não é só no Norte, não, viu? Na Europa também. O senhor já deve ter estado por lá, claro.”
O policial que, tirando a farda e a arrogância, não era muito diferente daquele moço encantado, de cabelos ventaneados, basto bigode e surrado pela cidade grande, percebeu a mangação, lhe devolveu o documento e advertiu:
“Tome juízo, rapaz. Assim como você, tem muitos aqui no xilindró.”
Não era mentira. Sozinho, tarde da noite, numa esquina deserta da Lapa, sem dinheiro no bolso e com perversa juventude sobrando no peito, caminhava no descompromisso do tempo para a praça Mauá, ou na direção de onde nasce o Sol, esperando a noite passar – aprendera com a noite fria a amar mais o seu dia, assim como pela dor o poder da alegria – ao encontro de um camarada, como ele, a morar na filosofia (leia-se “na rua”), sustentando-se da venda de cachorros-quentes e refrigerantes na av. Atlântica.
Levando o violão debaixo do braço, arranhando um acorde aqui e acolá, arrastava-se aquele moço de tantas tristezas pelo abismo e pelas vertigens de sombras do abandono de sobrados inda em sacadas de ferro, cruzando com taxistas nas calçadas a discutir o futebol, com amantes em bancos apertados e abraços espaçosos, com damas noturnas de mãos nos quartos, ilustradas apenas por tímidos lampiões em seu tempo negro: “É, sir Newton já sabia: o que pesa no Norte, pela lei da gravidade, desce para o Sul grande cidade...”
Sentou-se num degrau de escadaria e retirou a cansada alpercata, comprimindo calos de léguas tiranas, enquanto observava à frente o burburinho nos bares e inferninhos, revelando a cinzenta alegria da solidão carioca.
Ali, desapontado e desnorteado (sem o Norte), saudoso de casa, de afetos, dos quintais, da rede branca, da mulher que amou e que não pôde, ainda bem, lhe seguir, cantarolava num dedilhado baixinho: “Nam... na, na, na, na, na, na, nam... nam, nam...”
Enfadado e ferido às costas pelo peso das escolhas, tirou do bolso um livrinho, quase sua oração, onde se lia: “A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo.” Enchia os olhos de lágrimas, fortes como um segredo e verdes como o doce da cana, e, num poço qualquer de seu coração selvagem e repleto de dias de ironias, lhe saltava a certeza de que, como “a eterna novidade do mundo”, tinha coisas novas, coisas novas para dizer.
Levantou-se e meteu o pé na estrada de não poder parar mais – na cabeça canções de rádio e de discos –, a curtir o teimoso violão, aceso pelo cigarro, livre pelas palavras, sonhos e sons, sem regras nem reverências, lembrando-se de um tempo de cantoria em feira e o desejo de esquecer o que lhe era antigo, deixadas as suas mágoas todas naquelas águas fundas e distantes dos verdes-marinhos mucuripes: “Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar/ Que o homem é pra mulher e o coração pra gente dar”.
A madrugadinha já despertava os primeiros cantares de galos de sua memória sertaneja. Veio-lhe com ela um trecho de carta a um colega – “Veloso, o Sol não é tão bonito pra quem vem do Norte e vai viver na rua” –, quando deparou-se com o olhar desconfiado de outro policial na curva do caminho, cumprindo o seu duro dever: “Por gentileza, seus documentos.”
O poeta repetiu o mesmo gesto de todas as vezes e de todas as noites, retirando o registro do bolso traseiro de seu blue jeans e lhe entregando, enquanto trastejava um dedo de violão: “Eu sou como você, eu sou como você, eu sou como você...”
“Sobral?”, estranhou.
“Sim, senhor. Mas Sobral do Ceará. Soy latino-americano.”
“Carlos Gomes? O músico famoso, é?”, gargalhou, estalando o indicador na fotografia mal impressa.
“Sim, Carlos Gomes Belchior. Mas pode me chamar de Belchior, também músico, ainda não famoso. Mas vamos logo, seu guarda, que o Sol está nascendo e eu não tenho nada, nadinha, a não ser uma puta pressa de viver!”

“Amar e mudar as coisas”

Belchior finalmente voltou (1946-2017)


8 comentários:

  1. Que bonito! E viva Belchior! ��

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  2. Que viva, Juliane, e por muitos anos, mesmo apesar de.

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  3. Viva Belchior! Vida longa em nossos corações!

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  4. Belchior, um grande letrista, um grande compositor brasileiro,

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  5. Quando lembro Belchior sinto um enorme espaço que procuro entrar, mas não consigo largar os apoios.

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  6. Bela homenagem. Creio que: Os espaços vagos que ainda poderia ser preenchidos pelo cantor Belchior, caso estivesse vivo, agora pode ser preenchido por seus fãs, seguidores e familiares, talvez. Um texto belíssimo, como também em todo Brasil muita gente estão com boas crônicas a relevante morte do nosso poeta e cantor Belchior.

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