sexta-feira, 26 de maio de 2017

"Normal, Normal!", de Henrique Beltrão


Eu pensava que eu era normal. (Risos.) Normal, normal! Mas o papai, que é sabido, quero dizer, sabe muito mais que muitos lentes, me explicou que não existe isso de ser normal. E o meu filho, que é psicólogo, inteirou dizendo que, se existisse isso de normal... normal, normal ninguém seria. E minha amada, que também é psi, disse “psiu, vem cá”, fomos namorar na rede na varanda sob o luar e eu esqueci o assunto.
Porém, entre tantos, todas as vias, sabe como é a prosa na cabeça de poeta e o dia a dia da poesia: o tema voltou à baila numa mesa de bar em que eu me encontrava rezando um pai-nosso e tentando convencer o Pedro Salgueiro, o Jorge Pieiro e o Carlos Nóbrega a não bebermos naquela noite, assumindo uma postura de “voyeurs” da embriaguez alheia enquanto o Raymundo Netto e o Poeta de Meia-Tigela enchiam a lata (e meia), rompendo ambos todo prosa com a poesia da sua abstemia. Besteira minha! O Carlos Vazconcelos veio chegando e foi logo falando dum livro novo e o povo ergueu um brinde, me engabelaram e pediram em minha homenagem um tira-gosto beleza, da maior leveza, que tinha palmito, alface e eu adorei, mas não comi pra deixar pra eles enquanto saía a costelinha de porco na brasa, mora?
Foi nessa hora que um de nós caiu na besteira (vixe, eu já empreguei essa palavra no parágrafo anterior) de dizer por algum motivo etílico, “pardon”, idílico (do ponto de vista grego): “isso é normal”. Raymundo a todo o mundo (pra rimar) perguntou o que era normal, mas eu acho que ele sabia o que era. E o Pieiro piolhou, digo, piorou as coisas dizendo que as coisas e a maioria dos animais podem ser normais, mas não os seres humanos – que até desumanos conseguem ser. Faz sentido.
Vocês sabem: uma mesa com uma ruma de escritores ensina / sempre alguma divagação traz / e do primeiro que se retira jaz / a ilibada conduta posta à prova das línguas ferinas. A noite estica, o tempo faz curva, a gente pede outra e, enquanto espera partir o incauto primeiro, fala mal do garçom.
Pior que se pelo menos a Tércia Montenegro tivesse vindo... Mas não, eu fiquei ali sem saber o que calar, no meio daquele macharal feio (à exceção de mim, normalmente bonito, digo, simplesmente bonito), falando mel da vida.
Insistiram no assunto! Pra mim, até discussão tem de ser de coração. (Sou um romântico mesmo.)
Então... disse eu: como ser “conforme a norma” conforme (acho que já usei essa palavra também, mas a memória recente anda indecente) a primeira definição do dicionário? O Carlos pediu o sal e o Pedro Sal achou que era uma onda com ele e respondeu: Vaz, vais te lascar! O Poeta DMT colocou DDT na discussão e o outro Carlos nobregamente ergueu outro brinde enquanto o Netto que se chama Raymundo neste vasto mundo pedia mais duas cocas para ele e o Poeta. Eu estava ficando sóbrio.
Foi quando o dito DMT lembrou do cabra da história do compadre Jessiê Quirino que fumou maconha e disse que estava normal, normal, normal... Vendo uma ruma de jacaré e achando que um deles estava comendo o pé dele, a mulher perguntando qual e ele dizendo que não sabia, já que jaca e jacaré é tudo igual.
A essa altura eu recordei aos comparsas, digo, aos companheiros que justamente a injustiçada maconha, por exemplo, é “natural”, portanto “usual e comum”, de acordo com a segunda definição de “normal”. Eles riram, mangando de mim, eu fiquei emburrado, que eu não sou burro, e só não enrolei unzinho porque estava sem seda e sem erva, eras! Também, muito embora agora quase não role da solta, o conversa, esta rolava solta até o Poeta de Meia-Tigela e o Carlos Nóbrega lembrarem e falarem ao mesmo tempo a mesma coisa que nem no livro deles “acidade” em que eles escrevem juntinhos e nós outros aproveitamos pra fazer “humrum” e dizer em coro “já entendi”...
 Certo é que a primeira página se foi, a segunda está acabando e eu com medo de perder as poucas leitoras e leitores que normalmente não têm paciência pra ler coisa comprida, saquei a definição 3: “sem defeitos ou problemas físicos ou mentais”. Eles responderam: “Iiiiiirrrriiiii!” Eu não entendi, mas o Vaz me esclareceu com aquele tom cavalheiresco e didático dele que, como eu faço o programa Todos os Sentidos na Rádio Universitária FM 107,9 ao vivo às quartas às 14 horas levando ao ar a voz das pessoas com deficiência, não fazia sentido nenhum citar essa definição. Mas divulgar o programa pode!
Eu me defendi dizendo que só citara, se aquela gente se excitara, era por conta da garçonete e pedimos a primeira saideira. O Poeta DMT... deu mais tempo...  Escutou calado. Foi a vez do Vaz erguer um brinde. Eu já estava ficando bonzinho, bonzinho. Não normal. Fazia um 4 e um 44. Tigela resolveu de novo meter a colher no caldeirão da conversa falando de filosofia. Todos se olharam em silêncio e fizemos uma reverência ao final. Ele se encabulou tanto que se enganou e bebeu meu copo de cerveja. Todo. Eu não achei aquilo aceitável e comum.
“É isso!” – disse o Sal apimentando o colóquio colocando textualmente: “normal: cujo comportamento é considerado aceitável e comum”. E acrescentou solene e pausadamente: “(diz-se de pessoa)”. Jorge riu à beça, ninguém entendeu direito por quê. Salvo a leitora, o leitor que normalmente, ops, comumente, não, frequentemente espera um final decente. Que nada! A gente pediu a conta, foi saindo de fininho e deu um xexo no Pedro que ficou falando com a garçonete sobre os valores do inimigo – e dos amigos.
Sabe como é nosso lema, ou melhor, um deles: Somos absolutamente a favor de tudo que for contra. E mais! Somos absurdamente contra tudo que for só de favor. “Quem conta um conto aumenta um ponto” e não acerta as contas. De minha parte, fiz Letras pra não ver mais números e assumi minha discalculia. Não sei fazer contas, mas sei fazer poesia.

Henrique Sérgio Beltrão de Castro

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