quinta-feira, 23 de abril de 2015

"Um Dândi Pós-Moderno", posfácio de Pedro Salgueiro para "Crônicas Absurdas de Segunda"


Difícil alguém não ter ainda avistado pelas ruas de nossa loirinha desmiolada pelo sol esse sujeito branquelo, alto e desengonçado, com esvoaçante cabeleira branca, calças quase sempre de cores pouco convencionais, camisetas igualmente com estampas aberrantes, oclinhos de John Lennon a dar realce ao rosto estranho de nariz longo e olhos esbugalhados. Não raro alguém o confunde com um excêntrico estrangeiro, um desses predadores que invadem nossa Fortaleza Voadora durante o ano inteiro atrás de nossos sol, sal e putas. Impunemente, o indiscreto caminhante palmilha rua a rua de nossa provinciana metrópole, bairro após bairro, distribuindo sorrisos e conversando com todos, de singelas donas de casas que varrem calçadas a belas e incautas moças namoradeiras; nosso don juan de subúrbio parece estar em mil lugares ao mesmo tempo.
Eu mesmo conheci esse singular personagem faz 10 anos, quando ia com meu amigo Sânzio de Azevedo para uma festa do livro em Aracati: mal nos sentamos no apertado transporte, quando apareceu – com seu sorriso cativante e a inseparável máquina fotográfica a tiracolo, já se apresentando como escritor recém-publicado – aquele que se tornaria um de meus melhores amigos dos últimos tempos: em poucos minutos o cabeludo resumiu sua vida inteirinha, falou do seu passado de aluno do Colégio Militar de Fortaleza, fisioterapeuta com clínica montada, quadrinista premiado, militante ecológico, também contou dos seus projetos presentes e futuros, deu opinião abalizada sobre dúzia e meia de assuntos, de música popular brasileira a culinária, de política a futebol, isso tudo sem parar um instante sequer, levantar-se, tirar fotos, perguntar alguma coisa ao motorista e, pasmem, até fazer amizade com o restante dos passageiros do lotação.
Daquele dia em diante nos tornamos amigos de convivência quase diária, além de dividirmos há 8 anos uma coluna alternada e quinzenal no jornal O POVO: aprendemos o novo ofício de cronistas na marra, eu – um casmurro ermitão que mal fala e que quase não sai de casa – tive (e tenho ainda) sérias dificuldades; já ele – conversador nato e andarilho de primeira linha, desses que ficam a vontade em qualquer local e com variadas classes sociais dialoga sem assombros – se sentiu em casa. Um dândi a flanar pela cidade, a colher assuntos com sua sensibilidade fina, sua simpatia ambulante, seu sorriso cativante e seus gestos largos. Em pouco tempo estava senhor da situação, zanzando de ônibus com José de Alencar, batendo papo com Milton Dias e, acreditem, sentado na praça dos Leões com Rachel de Queiroz; enfim: costurando o presente e o passado de maneira leve e criativa – mas não se enganem com a espontaneidade do andarilho de óculos redondos e calças listradas, por trás dele se encontra um leitor voraz, um pesquisador cuidadoso e dedicado, amante dos nossos clássicos alencarinos – deles sabe quase tudo, e o que ainda não aprendeu descobre em demoradas ligações para o grande Sânzio de Azevedo, sempre tão disponível a todos que o procuram.
Ao talento literário soma-se uma vocação danada para editar livros, trabalho que faz com um amor só comparável ao que tem pelas duas filhas gêmeas, pelas quais demonstra um comovente amor paternal, orgulhoso e dedicado, desses que lhe marejam os olhos e lhe tremem a fala só de recordá-las.
Todos os que convivem com Raymundo Netto são unânimes em exigir dele uma maior dedicação à literatura: que escreva logo a esperada continuação da sua novela Cadeiras na calçada (que faz agora mesmo dez anos de publicação), que lance uma segunda edição do seu inquietante (e premiado) livro de contos Os Acangapebas, que, enfim, deixe um tempinho em sua apertada agenda de trabalho para burilar seus novos textos. E quando cobramos, quase exigimos, ele apenas ri, mas como ele ri de quase tudo e de todos, ficamos na esperança de que não massacre com trabalhos vãos o seu excepcional talento literário.
Felizes já ficamos ao sabermos que, para comemorar os 10 anos de sua estreia em livro e os 8 anos de escritas jornalísticas, ele organizou uma coletânea de suas crônicas d’O POVO – especificamente aquelas que tratam de temas literários –, a que deu o sugestivo (e ambíguo) título de Crônicas absurdas de segunda.
A esse amigo raro, incansável editor, pai amoroso, escritor com talentos vários, desejamos que lhe venham mais décadas e décadas de crônicas, novelas, contos, quadrinhos, filhos e amores – mas que não deixe nunca de flanar por aí, chafurdando ruas, criando caminhos pelas nossas irregulares calçadas, que não deixe jamais de colocar suas velhas cadeiras nelas, que continue povoando brancas páginas com seus insólitos (e tão nossos) personagens e, principalmente, não deixe de nos brindar a todos – os muitos amigos e até os raríssimos inimigos – com sua presença marcante, criativa, amorosa e terna.

Pedro Salgueiro

(para o posfácio de Crônicas Absurdas de Segunda)


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