Difícil alguém não ter ainda avistado
pelas ruas de nossa loirinha desmiolada pelo sol esse sujeito branquelo, alto e
desengonçado, com esvoaçante cabeleira branca, calças quase sempre de cores
pouco convencionais, camisetas igualmente com estampas aberrantes, oclinhos
de John Lennon a dar realce ao rosto estranho de nariz longo e olhos
esbugalhados. Não raro alguém o confunde com um excêntrico estrangeiro, um
desses predadores que invadem nossa Fortaleza Voadora durante o ano inteiro
atrás de nossos sol, sal e putas. Impunemente, o indiscreto caminhante palmilha
rua a rua de nossa provinciana metrópole, bairro após bairro, distribuindo
sorrisos e conversando com todos, de singelas donas de casas que varrem
calçadas a belas e incautas moças namoradeiras; nosso don juan de subúrbio
parece estar em mil lugares ao mesmo tempo.
Eu mesmo conheci esse singular personagem faz 10 anos,
quando ia com meu amigo Sânzio de Azevedo para uma festa do livro em Aracati:
mal nos sentamos no apertado transporte, quando apareceu – com seu sorriso
cativante e a inseparável máquina fotográfica a tiracolo, já se apresentando
como escritor recém-publicado – aquele que se tornaria um de meus melhores
amigos dos últimos tempos: em poucos minutos o cabeludo resumiu sua vida
inteirinha, falou do seu passado de aluno do Colégio Militar de Fortaleza,
fisioterapeuta com clínica montada, quadrinista premiado, militante ecológico,
também contou dos seus projetos presentes e futuros, deu opinião abalizada
sobre dúzia e meia de assuntos, de música popular brasileira a culinária, de
política a futebol, isso tudo sem parar um instante sequer, levantar-se, tirar
fotos, perguntar alguma coisa ao motorista e, pasmem, até fazer amizade com o
restante dos passageiros do lotação.
Daquele dia em diante nos tornamos amigos de
convivência quase diária, além de dividirmos há 8 anos uma coluna alternada e
quinzenal no jornal O POVO: aprendemos o novo ofício de cronistas
na marra, eu – um casmurro ermitão que mal fala e que quase não sai de casa –
tive (e tenho ainda) sérias dificuldades; já ele – conversador nato e andarilho
de primeira linha, desses que ficam a vontade em qualquer local e com variadas
classes sociais dialoga sem assombros – se sentiu em casa. Um dândi a flanar
pela cidade, a colher assuntos com sua sensibilidade fina, sua simpatia
ambulante, seu sorriso cativante e seus gestos largos. Em pouco tempo estava
senhor da situação, zanzando de ônibus com José de Alencar, batendo papo com
Milton Dias e, acreditem, sentado na praça dos Leões com Rachel de Queiroz; enfim:
costurando o presente e o passado de maneira leve e criativa – mas não se
enganem com a espontaneidade do andarilho de óculos redondos e calças
listradas, por trás dele se encontra um leitor voraz, um pesquisador cuidadoso
e dedicado, amante dos nossos clássicos alencarinos – deles sabe quase tudo, e
o que ainda não aprendeu descobre em demoradas ligações para o grande Sânzio de
Azevedo, sempre tão disponível a todos que o procuram.
Ao talento literário soma-se uma
vocação danada para editar livros, trabalho que faz com um amor só comparável
ao que tem pelas duas filhas gêmeas, pelas quais demonstra um comovente amor
paternal, orgulhoso e dedicado, desses que lhe marejam os olhos e lhe tremem a
fala só de recordá-las.
Todos os que convivem com Raymundo Netto são unânimes
em exigir dele uma maior dedicação à literatura: que escreva logo a esperada
continuação da sua novela Cadeiras na calçada (que faz agora mesmo
dez anos de publicação), que lance uma segunda edição do seu inquietante (e
premiado) livro de contos Os Acangapebas, que, enfim, deixe
um tempinho em sua apertada agenda de trabalho para burilar seus novos textos.
E quando cobramos, quase exigimos, ele apenas ri, mas como ele ri de quase tudo
e de todos, ficamos na esperança de que não massacre com trabalhos vãos o seu
excepcional talento literário.
Felizes já ficamos ao sabermos que, para comemorar os
10 anos de sua estreia em livro e os 8 anos de escritas jornalísticas, ele
organizou uma coletânea de suas crônicas d’O POVO – especificamente aquelas
que tratam de temas literários –, a que deu o sugestivo (e ambíguo) título
de Crônicas absurdas de segunda.
A esse amigo raro, incansável editor, pai amoroso,
escritor com talentos vários, desejamos que lhe venham mais décadas e décadas
de crônicas, novelas, contos, quadrinhos, filhos e amores – mas que não deixe
nunca de flanar por aí, chafurdando ruas, criando caminhos pelas nossas
irregulares calçadas, que não deixe jamais de colocar suas velhas cadeiras
nelas, que continue povoando brancas páginas com seus insólitos (e tão nossos)
personagens e, principalmente, não deixe de nos brindar a todos – os muitos
amigos e até os raríssimos inimigos – com sua presença marcante, criativa,
amorosa e terna.
Pedro
Salgueiro
(para o posfácio de Crônicas Absurdas de Segunda)
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