sábado, 4 de abril de 2015

Ana Miranda, sobre "Crônicas Absurdas de Segunda" de Raymundo Netto


Clique na imagem para ampliar!

Raymundo Netto me lembra Alencar. Gosta da linguagem adornada, aqui e ali usa uma palavra surpreendente, aprecia o belo, as entrelinhas. De seu texto emana aquele mesmo aroma derramado pela brisa que perpassou não apenas “os espatos da carnaúba e a ramagem das aroeiras em flor”, mas as ruas, histórias e segredos de uma metrópole toda feita de sertões interiores.
Como o de Alencar, seu texto é cearense, inspirado na limpidez de nosso céu. Tem uma pureza de berço. Deve ser lido na varanda de casa, ao embalo de uma rede, aos “murmúrios do vento que crepita na areia, ou farfalha nas palmas dos coqueiros”, como recomendou Alencar aos leitores de Iracema. O texto de Netto é descansado, sonhador, ambulante e dialogado, nunca em silêncio. Nunca solitário. Não se importa com o realismo e mesmo quando é realista carrega a fantasia da memória. Mas, se Alencar estendeu a sua literatura ao imenso Brasil, Raymundo Netto elegeu apenas o Ceará, principalmente a “rapariga civilizada” que é Fortaleza, mas dando umas escapadas pelas cidades que ficam à beira de praias, rios, nas serras, ou caatingas.
O seu narrador me faz lembrar um senhor de chapéu coco e fraque, muito elegante, cortês. Entusiasmado e fervoroso, vaga pelas ruas a olhar tudo e conversar com quem aparece ali. Gosta de conversa. Um narrador carregado de sentimentos, uma afetividade à flor da pele, e um pouquinho de malícia. Fala num tom de certo gracejo inocente, aproveitando todos os momentos para chistes e improvisos. É quase o mesmo narrador do primeiro livro de Netto, Um conto do passado: cadeiras na calçada, romance preciso e admirável, com jeito de crônica, no qual, enquanto se passa uma história de amor, a cidade vai se mostrando e se transformando.
A série de crônicas que Netto aqui apresenta tem uma linha mestra: é uma agenda de encontros com fantasmas. De repente o cronista se depara com algum autor de livros que ele mesmo leu, e não esqueceu. Os seus fantasmas literários tomam corpo e vida, conversam, zombam, tresvariam, surpreendem e nos fazem rir, mas às vezes de olhos marejados.
São escritores antigos ou atuais, uns célebres e outros desconhecidos do leitor, mas todos, gente da terra cearense. Essas visagens não aparecem para discutir literatura nem falar de livros, mas para olhar a cidade e seus costumes, seus personagens pitorescos, suas comidas, músicas, seus maracatus, becos, bares, bibliotecas, as casas demolidas, as preservadas, e mais detalhes. Para se lembrar de lugares e de gente. Travam conversas arrastadas dentro de um ônibus, debaixo de uma castanholeira, num banco de praça, em locais inesperados, sempre cheias de “saudades enluaradas”.
Conversas que vão montando um novo conto de amor: pela literatura, pelo lugar onde vivemos, pelos escribas e seus livros, pela lembrança, e acima de tudo, amor pela liberdade do devaneio. Como ele mesmo diz, “a linguagem está além da razão humana”. Nestas Crônicas Absurdas de Segunda a imaginação nos diz mais do que a própria história.


Ana Miranda (na apresentação da obra)

Nenhum comentário:

Postar um comentário