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Raymundo Netto me lembra Alencar. Gosta da linguagem adornada, aqui e ali usa uma palavra surpreendente, aprecia o belo, as entrelinhas. De seu texto emana aquele mesmo aroma derramado pela brisa que perpassou não apenas “os espatos da carnaúba e a ramagem das aroeiras em flor”, mas as ruas, histórias e segredos de uma metrópole toda feita de sertões interiores.
Como o de Alencar, seu texto é cearense, inspirado na
limpidez de nosso céu. Tem uma pureza de berço. Deve ser lido na varanda de
casa, ao embalo de uma rede, aos “murmúrios do vento que crepita na areia, ou
farfalha nas palmas dos coqueiros”, como recomendou Alencar aos leitores de Iracema. O texto de Netto é descansado,
sonhador, ambulante e dialogado, nunca em silêncio. Nunca solitário. Não se importa
com o realismo e mesmo quando é realista carrega a fantasia da memória. Mas, se
Alencar estendeu a sua literatura ao imenso Brasil, Raymundo Netto elegeu
apenas o Ceará, principalmente a “rapariga civilizada” que é Fortaleza, mas
dando umas escapadas pelas cidades que ficam à beira de praias, rios, nas
serras, ou caatingas.
O seu narrador me faz lembrar um senhor de chapéu coco
e fraque, muito elegante, cortês. Entusiasmado e fervoroso, vaga pelas ruas a
olhar tudo e conversar com quem aparece ali. Gosta de conversa. Um narrador
carregado de sentimentos, uma afetividade à flor da pele, e um pouquinho de
malícia. Fala num tom de certo gracejo inocente, aproveitando todos os momentos
para chistes e improvisos. É quase o mesmo narrador do primeiro livro de Netto,
Um conto do passado: cadeiras na calçada,
romance preciso e admirável, com jeito de crônica, no qual, enquanto se passa
uma história de amor, a cidade vai se mostrando e se transformando.
A série de crônicas que Netto aqui apresenta tem uma
linha mestra: é uma agenda de encontros com fantasmas. De repente o cronista se
depara com algum autor de livros que ele mesmo leu, e não esqueceu. Os seus
fantasmas literários tomam corpo e vida, conversam, zombam, tresvariam,
surpreendem e nos fazem rir, mas às vezes de olhos marejados.
São escritores antigos ou atuais, uns célebres e
outros desconhecidos do leitor, mas todos, gente da terra cearense. Essas
visagens não aparecem para discutir literatura nem falar de livros, mas para
olhar a cidade e seus costumes, seus personagens pitorescos, suas comidas,
músicas, seus maracatus, becos, bares, bibliotecas, as casas demolidas, as
preservadas, e mais detalhes. Para se lembrar de lugares e de gente. Travam
conversas arrastadas dentro de um ônibus, debaixo de uma castanholeira, num
banco de praça, em locais inesperados, sempre cheias de “saudades enluaradas”.
Conversas que vão montando um novo conto de amor: pela
literatura, pelo lugar onde vivemos, pelos escribas e seus livros, pela
lembrança, e acima de tudo, amor pela liberdade do devaneio. Como ele mesmo
diz, “a linguagem está além da razão humana”. Nestas Crônicas Absurdas de Segunda a imaginação nos diz mais do que a
própria história.
Ana Miranda (na apresentação da obra)
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