quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

"Quando o Amor é de Graça XII: Boi de Piranha”, crônica de Raymundo Netto para O POVO (29.2)




É preciso muita coragem para se entrar numa guerra. Mas é preciso de muito mais para sair dela.
O povo do mundo é uníssono, todo parecidinho, nem sei por que de tanta inveja. Entre nós cresce a globalização, sinal de desindividualização, da descriatividade, de privilégio à produção (pensamento e ação) em massa, em detrimento à inteligência. As pessoas “griffadas” ouvem, vêem, falam e gostam das mesmas coisas, aquilo que vende muito, não por coincidência, o que os jornais, rádios, revistas, outdoors e televisão insistem ser fenômeno, ser bonito, ser o melhor. Para se viver, adotamos patrocinadores. Enquanto consumimos, somos consumidos. É o sistema que abraçamos, enquanto ele nos crava as unhas nas costas.
O dinheiro, grande olho da providência — deus maior da (des) humanidade a se render ao seu credo (ou crédito) — convencido de controlar a todos e a tudo, a destruir vidas, sentimentos, laços familiares, a corromper até os grandes sacerdotes e pôr abaixo os ideais aguerridos, cada vez mais concentrado — se existem mais ricos é porque nós estamos cada dia mais pobres —, aumenta a selvageria entre os iguais numa sociedade desigual onde o custo de vida e a desesperança se tornam cada vez maiores.
A escola pública, possível no passado, foi desmoralizada, juntamente com seus agentes, para que a escola privada — tabletizada e ipadizada — nos provasse todos os dias que a sua irmã pobre é uma perdedora, destinada a não chegar à universidade, não fosse escada proúnica levantada, por favor, pelo governo. A Saúde pública, com o tempo, adoeceu, e nos convenceram de que a vida não seria possível sem ter o tal Plano de Saúde — plano este que, basta precisar dele para se adoecer gravemente... de raiva! — e, agora, a medrosa segurança pública que não existe, claro, nem nunca vai existir, pois não precisamos de mais leis, mais cadeias, nem de mais policiais, além do quê, quanto mais se criam leis, constroem cadeias e se contratam policiais, mais teremos confirmada a inferioridade de nosso povo e a incompetência de nosso governo. Para se ter segurança, precisamos investir é em Educação (não apenas de mais escolas ou de mais professores, mas de formação continuada, de qualidade e de recursos bem geridos), Cultura (reconhecimento de nossos artistas, de nosso patrimônio, de nossa identidade e aprender a olhar de frente para a nossa gente), Saúde (menos tecnologia, mais humanidade, saneamento básico, maior salário e condições de moradia digna), Justiça (menos juízes, menos advogados, menos privilégios, mais rigor e honestidade) e Lazer (precisamos formar e investir nos talentos locais, pois dá para fazer um bocado de coisa com os cachês astronômicos pagos a artistas “de fora” ou aos “artistas” que servem unicamente ao poder da ora).
Temos que aprender a olhar para baixo. De ônibus, pelas janelas, a cidade feia como nunca, e, pior, tomada pela miséria (estética e funcionalmente). Famílias inteiras morando nas ruas, crackando nas calçadas e até roubando à luz do dia. Percebe-se: o cerco está se fechando. A miséria — não os pobres — e a violência estão chegando à nossa porta. Nosso egoísmo, ignorância e covardia, nossa ruminante inutilidade de gado, alimentam o monstro que um dia emergirá da lagoa, tão horroroso e cruel, penso, que não poderemos suportar.
Nesse mundo, quem acredita, quem ainda sofre de indignação pela injustiça alheia, quem de fato se solidariza com a dor do outro — e não apenas repete lamentos vazios de “gente boazinha e religiosa” ou discursos naftalínicos de ideologias de palanque — esse é como “boi de piranha”, escolhido ao sacrifício para que a manada toque em frente. A guerra, para ele, sem “pasta”, púlpito nem paletó, será a sua ruína. Cansado, com “a leve impressão de que já vai tarde”, encaixota a voz e o coração, e tira sabe Deus de onde a coragem para dizer que “chega!”

Raymundo Netto. Contato: raymundo.netto@uol.com.br 

2 comentários:

  1. A consciência João ,"João o Batista",por Raymundo Netto..." boi de piranha ".
    Avante ilustre guerreiro!

    A princípio,um punhado de folhas de figueira,essa barreira veio a torna-se um poderoso baluarte.Desde o momento em que abandonou a inocência do Éden,o homem tem estado ocupadíssimo em reunir cada vez mais folhas de figueira e a costurar um sem números de aventais.
    Os indolentes satisfazem-se em remendar os rasgões de seus aventais com trapos abandonados por seus próximos mais trabalhadores;e cada remendo na indumentária do pecado é pecado,pois tende perpetuar a vergonha,que foi o primeiro e pungente sentimento que o homem teve após separar-se de Deus.
    Eis que está o homem fazendo algo para livrar-se desta vergonha?
    Ah!Todo o seu esforço é vergonha sobre vergonha,aventais sobre aventais.
    Que são as artes e a instrução do homem,senão folhas de figueira?
    Seus impérios,nações,segregações raciais e religiões ,na vereda da guerra,não são cultos de adoração à folha de figueira?
    Seus códigos de certo e errado,de honra e desonra,de justiça e injustiça;seus incontáveis credos sociais e suas convenções.Que são,senão aventais de folha de figueira?
    Seu avaliar o inavaliável,e medir o imensurável,e padronizar o que estar além do padronizável.Não é tudo isso remendar a já ultra-remendada tanga?
    Sua avidez pelos prazeres que estão pejados de sofrimento;sua ambição pelas riquezas que empobrecem;sua sede pela mestria que subjuga;sua cobiça pela grandeza que achincalha.Não são todas essas coisas aventais de folha de figueira?
    Nesta corrida patética para cobrir sua nudez,o homem vestiu um grande número de aventais que,no correr dos séculos,agarram-se –lhe tão fortemente à pele que ele já não distingue os aventais da pele.E o homem sente-se sufocado,e clama por quem o liberte de tantas peles.No entanto,em seu delírio,o homem tudo faz para ser libertado de sua carga,menos a única coisa que em verdade pode alivia-lo de sua carga,que seria atirar fora essa carga.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É a crônica sobre a crônica, Fábio Amaro? rsrsr Legal. Bom vê-lo por aqui. Obrigado.

      Excluir