Conheci primeiro Moreira Campos de livros, na
primeira metade dos anos 80 do século XX; quase uma década depois é que fui ter
o primeiro contato pessoal com ele. Eu ainda fazia Agronomia na Universidade
Federal do Ceará e morava na Residência Estudantil ali na Pracinha da
Gentilândia; com o tempo fui fazendo amizade com estudantes de Letras e
aumentando meu gosto pela literatura (apesar de adorar livros desde pequeno). E
foi numa das minhas andanças pelos sebos atrás de Gabriel Márquez, Júlio
Cortazar e Juan Rulfo (um livro novo na época era um sonho impossível, lia-se
muito emprestado de amigos e bibliotecas, vivíamos roubando exemplares das
livrarias) que me deparei com seu “A Grande Mosca no Copo de Leite” e só o
larguei quando uma semana depois encontrei “Os Doze Parafusos” numa calçada da
Rua Pedro I, entre revistas e best sellers. Dali em diante passei a ser seu
leitor fiel, e lembro que tremi quando folheei o belo volume d’”O Puxador de
Terço” (ainda hoje o meu preferido entre seus poucos livros editados).
Cruzávamos sempre o Bosque de Letras indo para o
Restaurante Universitário: um belo dia um colega me apontou um senhor muito
magro que conversava com vários estudantes debaixo de uma mangueira.
Perguntou-me: — Sabe quem é aquele? Respondi que não, ele riu e disse que era o
grande contista Moreira Campos. Senti um frio na barriga, mas seguimos adiante,
sem coragem de parar ou ficar olhando por mais tempo, assim como continuei a
fazer por quase dez anos. Sempre o avistava conversando com estudantes, passando
a pé ou no seu conhecido fusca verde (na época ainda morava quase na esquina da
avenida Carapinima, numa casa vistosa que tempos depois foi criminosamente
derrubada para abrigar um estacionamento). Nunca tive coragem de puxar uma
conversa, éramos tímidos demais para isso. E mesmo já tendo lido grande parte
de seus livros e de o admira-lo bastante como escritor jamais me aproximei do
homem.
Tempos depois, já rabiscando meus primeiros
contos e tendo até vencido alguns prêmios literários é que conheci a filha
dele, também ótima escritora, Natércia Campos. Da amizade com ela me veio a
coragem tardia de confessar que queria conhecer o agora já mestre e inspirador
escritor.
Dois dias depois estava eu, nervoso, suado,
descendo do ônibus quase na esquina de seu apartamento da rua Beni de Carvalho.
Anuncie-me pelo interfone e subi com uma vontade danada de voltar dali mesmo.
Em pouco tempo eu estava sendo recebido à porta pela simpática esposa do
professor agora aposentado, Dona Zezé, que, sem ligar para o meu acanhamento
foi me mandando entrar, sentar, esperar um pouco que o “Zé Maria já vem, acabou
de sair do banho”, e enquanto eu esperava fui me deliciando com aquela sala
bonita, bem cuidada, cheia de livros e quadros de bom gosto, podia-se dizer
sofisticada, muito sofisticada para os meus padrões de estudante pobre vindo do
interior. Lembro bem que fiquei olhando para a coleção de miniatura de corujas
em cima da estante. Lembranças que os muitos amigos, alunos e familiares
traziam de viagem, homenageando o escritor pelo seu belo conto “As Corujas”.
Pouco depois ele entrou na sala, magrinho, um
pouco curvado, a fala baixa, mas muito simpática, sintoma já do enfisema
pulmonar que o maltratava. Conversamos mais de uma hora, intercalados por
visitas ao seu escritório (onde me mostrou os muitos clássicos portugueses) e a
um baú no canto da sala, de onde Dona Zezé foi tirando um a um os seus livros
mais antigos, edições impecáveis que hoje trago em lugar especial de minha
estante, com seu autógrafo já trêmulo. Daí a pouco ele começou a tossir e fui
me apressando em ir embora, mas não sem antes prometer voltar qualquer dia
desses.
Voltei ainda duas vezes, numa das quais criei
coragem e trouxe a cópia ampliada de meu primeiro livro, “O Peso do Morto”, e
na maior cara de pau pedi que ele “desse uma olhadinha, se pudesse”. Juro que
só tive coragem de tal gesto devido à simpatia com que já era tratado por ele e
Dona Zezé naquele agradável encontro.
Tempos depois, num domingo bem cedo, recebi um
telefonema de Dona Zezé me dizendo que o “Zé Maria está escrevendo uma crônica
sobre seu livro para a Porta de Academia” (coluna que o escritor mantinha neste
mesmo O POVO). Agradeci a atenção e passei o resto do dia, da semana
embevecido, sem pisar no chão. Esperei uma semana, duas, três, achando estranho
não ter mais saído as crônicas dele no referido jornal. Dias depois um amigo me
disse que o escritor estava internado. Procurei Natércia que me confirmou muito
abatida. Coragem alguma de ligar para Dona Zezé.
Pouco tempo depois soube da notícia de seu
falecimento. Não fui ao sepultamento, preferi ficar com as agradáveis
lembranças dele vivo.
Fiquei triste por algum tempo, de vez em quando
releio seus contos, olho suas últimas fotos tiradas por mim nas poucas, mas
agradáveis visitas ao seu apartamento, vejo nos livros sua bela assinatura
trêmula e lembro com carinho sua figura gentil, atenciosa e ética. Um dos raros
escritores que a valiosa obra ombreia com a personalidade, com o caráter.
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