"Apago o incêndio do olho
com um simples gesto da mão.
Ando com minha bengala:
a perna esquerda mecânica.
Sou o fantasma de minha rua.
O aleijado mais trágico do meu país.
Ninguém me ama
mas sou amigo do Anjo.
Não negocio a paz do morto
nem o silêncio do meio-dia.
Caminho à sombra de Deus.
O sol me ilumina.
Durmo todo o inverno, à beira dos rios.
Acordo no estio com o canto das cigarras.”
(J.A.P)
Ele, que nunca foi íntegro nem inviolável (a provar isso suas mil e duas contradições, seu corpo magro e vulnerável, que sofreu horrores até tombar triste e bestamente no asfalto ainda molhado das últimas chuvas de julho de 2008), nunca pensou em reconhecimento póstumo, dizia a qualquer um que a cota dele queria em vida.
Com sua costumeira lucidez sabia, mais que todos, que morrendo o corpo dificilmente sobreviveria por muito tempo a obra, mesmo a sua, que também sabia mais que outros de seu perene valor.
Mas desconfiava de nossa memória urgente, curta.
Dia três de julho próximo completaremos três anos sem seu corpo magro, sem seu riso simples, sincero, escandaloso e triste.
Mesmo sabendo que sua sombra incorpórea (e sem faltar um só de seus gestos físicos) continua transitando pelas ruas desertas do Benfica.
Continua todo domingo, impreterivelmente, indo à missa na igreja de São Benedito, acompanhado de seus queridos Antonin, Jamaica e Alessandra.
Ele continuará sendo o velho fantasma de preto escanchado no arame farpado dos quintais de nosso conformismo. Misteriosamente colhendo o silêncio com suas mãos invisíveis e tecendo uma mortalha com o nó dos dedos para vestir o próprio corpo magro.
Mesmo sendo ser hoje apenas um retrato destituído de cor e dependurado nas paredes da velha casinha amarela da Vila Cordeiro, o sabemos vivo, vestido e nu, louco e poeta. Acima de tudo um poeta, lúcido e louco, refletido nas mil luas, nos abismos bem fundos dos poços. Continuará como aqueles místicos intocáveis e impossíveis, que viveram sem jamais se conhecerem.
Por isso santos.
E que jamais conhecerão a morte.
* Singela homenagem aos três anos de ausência física de José Alcides Pinto, usando frases de seu poema “Eu”.
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