Já percebi que quanto maior a suavidade do tema, mais difícil capturá-lo por escrito. Assim, faz algum tempo que penso numa crônica específica, mas evito o instante de criá-la, como se a tentativa adiada instalasse um tipo de prazer, uma delícia de saber que a paisagem está lá, com todas as suas belezas e tentações, mas ainda não é o momento de encará-la. Ou talvez parte do sentimento seja receio de não corresponder ao assunto, não achar estratégia para dizê-lo. A delicadeza escapa das palavras, recusa-se à matéria gráfica – é algo que vive no etéreo, como a música, as nuvens ou os sonhos.
Ora, o tema em questão é justamente sonoro e inefável. Mas não se concentra num artista ou obra particular. Ao contrário, espalha-se por muitos cantos, muitas aves dispostas num rodízio mágico. Estou falando de um relógio, presente que ganhei em Brasília, do Silvestre Gorgulho – amigo que conheci através da querida Ana Miranda. É um objeto circular, com desenhos de pássaros correspondendo aos números. A cada hora, ouve-se por alguns segundos um canto típico, seja do uirapuru, do galo-de-campina, do curió ou de tantos outros bichos que jamais entrariam por minha janela e agora, milagrosamente, povoam minha rotina.
Lembro quando voltei da viagem e achei o lugar ideal para o relógio. Fiquei como criança, contemplando os desenhos curiosos – o penacho do quero-quero, a plumagem da juruva – enquanto esperava que os ponteiros se aproximassem. Em minutos, o corrupião cantou, marcando o meio-dia, e a cozinha se encheu com o trinado do Hino Nacional. Meus gatos correram por todos os lados, procurando a presa invisível por debaixo das cadeiras ou em cima dos móveis. Demorou até que eles percebessem que os pássaros moravam dentro do relógio. Os piados, assovios e gorjeios eram tão vivos que de fato os animais pareciam estar ali. Houve até uma vez em que o relógio ficou mudo, “saltando” o registro de um dos pássaros e, antes que eu trocasse as pilhas, cheguei a pensar se de fato um dos bichos não tinha sumido, ou fora engolido por um dos gatos – hipótese absurda... mas nem tanto, se pensamos que se tratava de um sabiá, dentro de uma casa em que reina a ficção.
Hoje, depois de meses de convívio com o relógio cantante, posso dizer que fiz as pazes com esta categoria de objetos. Já não penso nos relógios como algemas torturantes ou antipáticos lembretes de obrigação e pressa. Os pássaros recordam que o tempo existe na natureza muito antes de ser distorcido pela vida urbana; é por isso que o meu relógio silencia, à noite. Deve ter um sensor que desliga, quando não há luz – mas prefiro pensar que as aves se aninham num abrigo imaginário, dentro das engrenagens. Em algum lugar do país, elas de fato dormem, naquele momento; e apesar de que no dia seguinte eu as ouvirei novamente, de hora em hora, o melhor de tudo é saber que nenhuma delas está de fato ali, presa por uma gaiola.
Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)
Tércia, a cada leitura de um texto seu mais se confirma sua firmeza com as palavras. Tudo cabe direitinho dentro dos significados que deseja levar ao leitor, para que ele possa partilhar com você o universo da literatura tecida em suas criações. É prazeroso ler um texto seu. Mesmo que aparentemente fale de algo "insignificante" - nessa crônica você revela não se ater muito à questões temporais definidas pelos compassos dos relógios - a magia do seu mundo de ficção recria e realça os acontecimentos, inaugurando significação tocante e encantadora.
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