domingo, 27 de março de 2011

"Réquiem para um Bosque", crônica de Ana Miranda para O POVO (26.3)

Foto: O POVO


Meu Deus, quanta tristeza, quanta perplexidade diante do desaparecimento desse nosso bosque, em pleno coração da Cidade. Quantas lágrimas e revolta pela derrubada das árvores, mangueiras frondosas, cajueiros... oitis? cumarus? aroeiras? paus-d’arco? onde está a lista? tantos desses seres mansos, que viviam ali enclausurados e sem reclamar, a só nos fazer o bem. As árvores parecem indefesas, mas a sua ausência é o nosso castigo, o seu desaparecimento é o pior dos venenos. Somos nós que penamos essas mortes, em cada gota de suor que poreja nossa fronte, em cada carbono que respiramos, em cada tumor de pele ou pulmão, em cada muralha árida que resta e com que nos obrigamos a conviver, como prisioneiros do cimento, em cada praga, erosão, alagamento, e somos nós que não descansamos em paz.


Já não há mais o frescor do bosque, a sombra, a brisa, nem mais a beleza de seu porte, a candura de seu dossel onde habitavam tantos soins, passarinhos, gaviões, cassacos, borboletas, besouros, formigas, não há mais troncos nem galhos nem folhas nem flores nem frutos nem ninhos, tudo está morto, transformado numa terra desolada, onde pretendem erguer edifícios. O local comporta três torres com todos os seus desdobramentos? Quem terá coragem de morar naquele cemitério, naquele ermo devastado radicalmente e com crueldade enquanto a cidade estava em festa, na calada do domingo de Carnaval? Não podiam deixar ao menos as árvores que ficavam nas bordas do terreno, e na suposta área de lazer? Não deviam ter levado os animais para outra mata? Ninguém soube evitar ou antecipar uma perda que se anunciava? Não há uma cota de percentual de devastação? Não há órgão responsável? Não há punição? Não há pulso?


Não sejamos ingênuos, todos aqueles edifícios que cercam o antigo bosque, todos os edifícios da Cidade extinguiram bosques ou mangueiras centenárias ou acácias imperiais ou umbuzeiros ou coqueirais ou casas graciosas ou históricas, ou praias ou praças ou mangues ou dunas, todo crescimento urbano significa destruição. Mas há quem se preocupe em amenizar esse aniquilamento, há quem, apesar da incúria dos poderes, tenha um cintilar de agudeza e gaste um pouquinho do deus-dinheiro a fim de manter vivas algumas árvores de que dependemos para viver melhor, ou melhor, para continuarmos vivos. E valorizar suas obras dentro de conceitos inteligentes. Benditos sejam. Um dos lugares mais valorizados da Cidade fica em torno de uma pracinha no Papicu, cheia de árvores e cuidada pelos moradores.


Todos nós cometemos erros, mas sempre há como repará-los, que façam um mea-culpa, tendo em vista também a própria biografia, todos temos a obrigação de respeitar a dignidade de nossos antepassados, nossas árvores genealógicas, e preservar o mundo para nossos descendentes. Que os nossos netos não tenham vergonha de nós. Não é reparação do erro a reforma de praças que logo depois serão abandonadas, nem replantar árvores onde há árvores, ou a adoção de praças. Isso deve ser feito como prática do comportamento cotidiano dos poderosos, dos empresários, dos governantes, e da população. O justo seria que esse precioso bosque que a Cidade acaba de perder fosse replantado e o lugar transformado em praça pública, pois esse caso, pela crueldade com que foi perpetrado, tornou-se um símbolo e precisa ser tratado como símbolo. Todos os dias o nosso Estado assiste a esta devastação: a obra de abertura de estrada para a praia de Porto das Dunas vem derrubando inúmeras árvores frondosas; prefeituras cortam árvores e calçam de pedras o local, “para não ajuntar povo na sombra”; uma senhora quer cortar duas árvores em frente a sua casa porque “os carros estacionam”; uma família mandou cortar um jambeiro, pois estava “desequilibrando o muro e juntando menino”; uma casa com seu quintal arborizado deu lugar a um estacionamento sob o sol. Caminhões com despojos são vistos pelas ruas e estradas a despejar os restos de bosques e árvores e jardins sabe-se lá onde. Árvores e árvores e árvores são mutiladas, sob o nome de “poda”.


Passei por ali, e senti as emanações ruins do local. Imaginei as famílias de soins que a moça viu, sobre o muro, aterrorizadas, a fugir e morrer entre os carros. Os pássaros debandando sem seus filhotes. As joaninhas e crisálidas esmagadas. Não é crime ambiental matar animais silvestres? Dona Teresa quase foi presa porque tinha em casa um papagaio de estimação.


Vi que ao lado há outro bosque, esperando também o seu destino. Que não seja mais um réquiem.

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