sábado, 3 de abril de 2010

"Os Jumentinhos de Jesus", crônica de Ana Miranda para O POVO


Ao amanhecer, ou ao entardecer nesta aldeia onde moro, escuto o zurrar dos jumentinhos que vagam por aí, singelos, graciosos, mansos, de pelo claro e olhar dócil. Parece uma cantiga, um pouco triste, um pouco lamentosa, vinda do fundo de seu sentimento. Vejo-os soltos pelas ruas, alimentando-se de uma relva muito rude, bebendo água no maceió, caminhando a esmo nas areias...

Na ladeira da rua do Sol, algum impiedoso dono costuma amarrar um jumentinho a um toco, o pobre animal permanece ali o dia todo, sozinho, debaixo do sol causticante, cena de cortar o coração.
Na minha santa ignorância, achava que jumentos, burros, asnos, mulas, jericos, jegues, seriam o mesmo animal. Não são. Asnos, jumentos e jegues são os asininos, parentes dos cavalos, onagros antiquíssimos que já cruzavam as ruas abissínias carregando tâmaras, vinho, trigo, ou as páginas do Velho Testamento, onde recebem quase uma centena de menções, ora como animais de carga, de tração, ora como montaria daqueles personagens bíblicos. Os mais antigos textos do Brasil colonial já mencionam a presença dos nossos jegues trazidos nas caravelas para uma escravidão jamais abolida. Os burros são híbridos de cavalo e jumenta, e as mulas, de égua e jumento. Dizem os conhecedores que os jumentos são de natureza viva, ágil, dócil, mas diante de tanto trabalho sob maus tratos, ou tanto abandono, tornam-se lânguidos, tímidos e teimosos; quando bem cuidados, como é costume no Oriente, desenvolvem as suas melhores qualidades.
Toda lembrança que esses bichos trazem é suave, é lírica: no casamento na roça levam a noivinha matuta, noutro dia arrastam o arado nas lavouras arcaicas dos interiores... Fazem muito boa figura na nossa literatura. O primeiro conto de Guimarães Rosa em seu primeiro livro, Sagarana, é a história de um burrinho pedrês miúdo e resignado, chamado Sete-de-Ouros, que depois de tanto trabalhar na mocidade estava encardido, sonolento, pisado, quase cego e aposentado. Sua redenção se passa num dia em que é arreado para montaria do vaqueiro João Manico, a fim de tocarem boiada. Em meio ao trabalho, o Major manda Manico trocar de remonta com seu camarada de confiança, o Francolim. Ninguém quer o burrinho, que acaba servindo mesmo é ao bêbado Badu, vaqueiro novo na fazenda e metido em tramas de amor e morte. Zombam de Badu: "Uê, Badu, vai vender leite?" Na travessia do riacho, debaixo de um aguaceiro, o burrico envereda e os vaqueiros se arrogam, vão atrás. Sete-de-Ouros desvia dos galhos, dos troncos, dos poços, dos remoinhos, toma a outra margem e sai trotando. Morrem oito vaqueiros e seus cavalos. Sete-de-Ouros salva Badu e, de quebra, Francolim, tomando pé "por onde os burrinhos sabem ir, qual a qual, sem conversa, sem perguntas, cada um no seu lugar, por todos os séculos e seculórios, mansamente amém".
Machado de Assis também tem seus burricos. "Vejam o burro. Que mansidão! Que filantropia!", começa, num leve tom de sarcasmo. Seus burros dialogam, filosofam, têm consciência da saudade e da humilhação. Primeiro arrastam os bondes ladeira acima e abaixo; depois, trocados pela eletricidade, são abandonados nas ruas do Rio. Depara-se Machado, então, com um burro caído na rua, os ossos a furar-lhe a pele, olhos meio mortos, cabeceando, próximo do fim. O pobre animal faz um exame de consciência, recompõe suas adversidades e a ingratidão humana. E vem o réquiem do desprezado, inofensivo animal que nos ensina "a gravidade do porte e a quietação dos sentidos". Requiescat in pace.
Os jumentos são animais os mais cristãos, marcam o nascimento e a morte de Jesus. É um deles que José puxa pelo arreio, levando em fuga a sua esposa, Maria, prestes a dar à luz, e é numa estrebaria, lugar de abrigo desses pacíficos bichos, ao lado de um boi, uma ovelha, um jumentinho, que Jesus nasce. Seu berço é uma manjedoura. A paixão de Cristo, nossa Semana Santa, começa com sua entrada triunfal pelas ruas de Jerusalém, forradas de folhas de palmeiras bem verdes, sob hosanas e salvas dos habitantes que o aclamam "filho de Davi", herdeiro dos dons desse lendário rei que realizava milagres e curas. Fez Nosso Senhor questão de ir montado num jumento, e não sobre um altivo cavalo do império de Herodes, para mostrar que reinava sobre os simples, que preferia os humildes e os trabalhadores. Talvez essa escolha da simplicidade tenha colaborado para que os mesmos moradores da Cidade Santa, que o festejavam, em seguida o condenassem, absolvendo um ladrão. Coisas de humanos.
Ana Miranda, para O POVO, em Semana Santa.

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