segunda-feira, 12 de abril de 2010

"O Mundo Através das Bibliotecas", Affonso Romano de Sant'Anna para o Caderno 3 do DN

Affonso Romano de Sant'Anna (foto: Carol Domingues/DN)


O escritor e jornalista Affonso Romano de Sant´Anna participa da IX Bienal Internacional do Livro do Ceará. Ex-presidente da Fundação Biblioteca Nacional, ele antecipa em entrevista ao Caderno 3 um pouco de sua fala na mesa "O meu encontro com a biblioteca", dentro do V Encontro do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas


Como foi o seu “encontro com a biblioteca”?


Tentarei falar dos múltiplos encontros, desde a biblioteca da igreja que eu frequentava e a do meu pai, até as grandes bibliotecas do mundo que acabei conhecendo por ter sido secretário geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Iberoamericanas ou por ter estado na India, Moscou, China, França, Irlanda, etc. Claro que vou me deter no panorama brasileiro que, felizmente, está se modificando e não é mais o mesmo de quando em 1990 lancei a campanha "Uma Biblioteca em Cada Município".


No texto "Por que escrevo", o senhor recorda seu pai, frequentemente com um livro na mão. Considera a presença constante de livros em casa fundamental para o despertar literário em jovens?

Ter livros na paisagem doméstica é importante, mas há aqueles que, nascendo num mundo adverso, despovoado de letras, chegaram aos livros. É que o livro, a cultura, as bibliotecas exercem um fascínio único para certas pessoas. É através das letras que elas se encontram com o mundo. Como dizia sempre Jorge Borges, o mundo pode ser visto como uma grande biblioteca de Babel, que a gente e tenta ordenar.


O senhor dirigiu por seis anos a Fundação Biblioteca Nacional e criou o Sistema Nacional de Bibliotecas. Como foi essa mudança de papeis, de frequentador a administrador?

Foi um desses acontecimentos que mudam a vida da gente. E felizmente conseguimos mudar a vida de outras pessoas também. Pois nenhuma mudança é efetiva se não ocorrer nos dois sentidos. A partir do Sistema Nacional de Bibliotecas tentamos romper o isolamento em que viviam as instituições. Fazíamos reuniões distritais, estaduais e nacionais. De repente, uma bibliotecária de Manaus já não se sentia tão ilhada, pois compartilhava experiências com as colegas de Joinville ou Salvador. Sobretudo, recriamos o espaço imaginário. E enraizamos a ideia de biblioteca na realidade social do país. A biblioteca costumava ser a principal ou única fonte para realizar pesquisas, por exemplo. Hoje, com o acesso facilitado a informações de todo tipo, com a crescente popularização da internet, muitos jovens e adultos deixaram de frequentá-la.


Nesse contexto, qual a importância hoje da biblioteca? Como chamar de volta seu público?

Está acontecendo uma coisa formidável, assombrosa. É como se estivéssemos em pleno Renascimento, de novo. Estamos vendo o surgimento de um novo Gutenberg, um novo conceito de livro. O livro virtual é uma realidade (não apenas virtual). E o será cada vez mais. Ingressamos no mundo de "Matrix". E o Brasil que estava muito atrasado nessa área, pois sempre foi carente de livros e bibliotecas, pode agora dar um salto qualitativa. Podemos queimar etapas. Qualquer pessoa, na selva ou na cidade pode ter uma biblioteca nas mãos, um I-Pad com mais de dois mil volumes. É uma revolução cultural. Algumas prefeituras e governos estaduais estão entendendo isto. O atual Ministério da Cultura está entendendo isto. E isto nos dá esperanças.


Transformar a biblioteca em espaço privilegiado de encontro entre leitores, de discussão, é uma boa estratégia para revitalizá-la?

Biblioteca deve ser o lugar de encontro, reencontro e de invenção. Não é um arquivo morto. Ali está a memória da comunidade e o modo da comunidade construir o seu futuro. Hoje, mais que nunca, existir é saber comunicar-se. Até as antas do Big Brother sabem disto. Quanto aos bibliotecários, tenho repetido isto há décadas, devem ser os servidores da comunicação no século XXI.


Além de escritor, o senhor exerce ou exerceu em algum momento as funções de teórico, cronista, professor, administrador cultural e jornalista. Combinar a atividades é um caminho natural de escritores no Brasil, tendo em vista a dificuldade de sobreviver exclusivamente de literatura no Brasil?

É uma questão de temperamento. Nem todo intelectual é assim ou pensa assim. Mas se fôssemos menos passivos, se fôssemos menos ilhados, menos tímidos, o Brasil seria outro. Tenho muita simpatia por Mário de Andrade que saiu pelo Brasil afora, amassando barro e fez uma obra notável. Igualmente por Monteiro Lobato homem de livros e ações. Euclides da Cunha, idem. Não sou (apenas) um homem de gabinete. Vai ver que ficou em mim, algo do metodista John Wesley, que dizia: "o mundo é a minha paróquia"


Ainda nesse sentido da profissão, o aprimoramento do sistemas de bibliotecas contribuiria para a formação de leitores e, por conseguinte, para a formação de um mercado?

Para usar um provérbio antigo, cultura é uma coisa que se multiplica dividindo. Por isto, sempre insisti com a Câmara Brasileira do Livro para que investissem não apenas no livro, mas no leitor, que o leitor é que vai consumir o livro. Por isto, a leitura é o ponto crucial. Por isto criamos o Proler, que felizmente deu os frutos mais extraordinários sob novas formas, como ocorre atualmente no Ceará.


Durante a ditadura militar, o senhor decidiu voltar para o Brasil e, no trabalho, enfrentou a repressão e a censura. Hoje ainda acredita em arte engajada ou acha limitador?

Talvez a melhor resposta à sua provocação é revelar que este ano a editora Rocco vai comemorar os 30 anos do lançamento de "Que país é este?". E, para tanto, fez um blog, onde os leitores podem opinar sobre o tema, sempre atual. Por outro lado, relançarei o livro por todo o país, fazendo debates, pois num ano eleitoral a questão torna-se ainda mais crucial: que país é este?


Fique por dentro Conheça o escritorAffonso Romano de Sant´anna

Nasceu em Belo Horizonte (1937) e foi criado em Juiz de Fora. Desde o começo dos anos 60 participou dos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda. Nos anos 70, dirigindo o Departamento de Letras e Artes da PUC/RJ, estruturou a pós graduação em literatura brasileira, considerada uma das melhores do país. Trouxe conferencistas estrangeiros como Michel Foucault e, apesar das dificuldades impostas pela ditadura militar, realizou uma série de encontros nacionais de professores, escritores e críticos literários além de promover a "Expoesia" - evento que reuniu 600 poetas. Seu poema "Que país é este?" tornou-se símbolo da luta pela democracia. Foi Presidente da Fundação Biblioteca Nacional (1990 a 96), quando realizou a modernização tecnológica da instituição, informatizando-a e lançando programas.


Adriana Martins, para o DN

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