sábado, 29 de agosto de 2009

"Uma Cena Banal" crônica de Pedro Salgueiro para O POVO


Começo de mês, as mariposas todas na rua, apesar do sol alto. O magricela puxou o camisão sujo até o nariz. Com o pulmão em brasa cheirou toda a coragem do mundo, o olho duríssimo mirando a velhinha do outro lado da rua. As duas adolescentes distraíram a vítima fingindo uma briga. Por trás o ataque, o erro, o vacilo da mão trêmula. Segunda tentativa e o bote quase perfeito, não fosse o rasgo da unha no pescoço engelhado da senhorinha.
No descer da calçada alguém grita:
- Pega!...

O táxi barra a carreira, o motoqueiro tenta o atropelo, e as pernas do magrinho bambas demais para a fuga.
- Pega as duas que ele jogou o cordão pra elas, pega!

As primeiras tapas, a mãozona do senhor de gravata não dá trégua. O da moto tira o capacete pra acertar o coco do franzino, resvala mais do que tenta; parece cansar, de vez em quando desfere um chute certeiro no infeliz.
- Pegaram as meninas, lá vem...

O comerciante da esquina traz a maior pelos cabelos, de quando em vez sacode com um safanão a pequena, que, aturdida, não sabe se foge ou se ajuda a amiga. A cada pergunta de “onde jogou o cordão”, o magrote responde com um gemido: novos tapas e chutes. As meninas são levadas para um canto, e alguém, obedecendo as ordens do comerciante, baixa as roupas das meninas. Nada. Quando alguém, mais esperto, sugere:
— Ela botou na boca! Abre...

Um ambulante, que até então apenas ria, passou as bugigangas para uma só mão e com a outra tentou abrir a boca da maior, não conseguiu. Jogou os apetrechos no chão. Uma tapa e um aperto nos maxilares facilitaram: enfiou os dois dedos e saiu de lá com o cordão, que havia sido parcialmente engolido. Deixou a baba e um filete de sangue na camisa, antes de entregá-lo limpinho ao do comércio.

Mais alguns tapas nas meninas, mais alguns chutes no magrinho e parecem ter cansado de vez. Alguém sugere a polícia; o da moto desdenha que é tempo perdido. Divertem-se mais um pouco; a metade da bundinha seca da menor permanece fora da calcinha. A maior se resigna a chorar. O magro jaz sentado no beiço da calçada, cabeça entre os joelhos.

Uma senhora arrumada se compadece da situação e ameaça denunciar aos “direitos humanos”, mas logo percebe que não conseguiu o apoio de ninguém e se afasta falando ao celular. Nem escuta o que o da moto lhe diz:
- Vai-te embora, jabiraca, é porque não foi contigo...

Pelo sim, pelo não, arremessam mais uns safanões nas meninas, um empurrão no magrinho, que saem correndo de pernas bambas, ente a saraivada de gritos:
— Pega! Pega ladrão!...

No dia seguinte, no mesmo local, lá vem o mesmíssimo magrelo, o joelho descascado, a camisa ainda rasgada, e o olho direito, um pouco menos inchado, à procura do vacilo da senhora de verde, na outra calçada.

Acena para as meninas, dando o sinal; atravessa calmamente a rua por entre os carros.

PEDRO SALGUEIRO é escritor. Publicou o livro Fortaleza Voadora, de crônicas, além de cinco volumes de contos: O Peso do Morto, O Espantalho, Brincar com Armas, Dos Valores do Inimigo e Inimigos

2 comentários:

  1. Um conto real dentro do nosso mundo cão, que aparece sem conserto no cotidiano das cidades.

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  2. Demais, Pedrinho, e nossos corações vão endurecendo tanto...

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