sexta-feira, 7 de agosto de 2009

"Os Fantasmas de Aquidabã" crônica de Ana Miranda (07.08)


Mesmo tendo saído de Fortaleza bem menina, levei comigo memórias da primeira moradia de minha vida, na avenida Aquidabã. Talvez o tempo e a imaginação tenham modificado paisagens ou traços da casa, mas ela sempre existiu dentro de mim, como se fosse uma constelação, da qual vemos os pontos luminosos e formamos a figura por linhas imaginárias. Num instante volto a ser pequenina e estou em frente à casa. Ela faz parte de um conjunto de bangalôs com a mesma arquitetura, banhados em branco e separados por cercas vivas de fícus benjamim, podados em forma de muro. O sol se põe em seus telhados.
Vejo uma varanda, um arco de pedra, a porta principal, altíssima para a perspectiva de uma criança. A mágica furtiva desse jogo aprimora minhas lembranças. Estou na sala, com meus pezinhos piso no chão de madeira encerada. Em dois ambientes, janelas acortinadas, a sala é um pouco penumbrosa, como costume em Fortaleza, talvez pela ânsia de descansar da linda e extrema luz que banha a cidade, ou porque a luz traga uma sensação de calor...
Num canto ergue-se uma imponente escada de madeira que dá no segundo piso, onde ficam os quartos, e de cuja varanda avisto coqueirais, casas fronteiras, pedras negras, lua ou navios ao longe. Volto à sala. Percebo que os móveis são grandes para o espaço, coloniais.
Há cadeiras de braços em torno de uma eletrola onde minha mãe e suas visitas ouvem "Beijinho doce”, depois "Clair de lune" de Debussy, em silêncio, aos trabalhos de costura. Na sala contígua está a mesa longa e larga sob um lustre de cristal, onde ocorre um jantar de circunstância, talvez um aniversário, mas estão presentes apenas meu pai, familiares e amigos mais próximos.
Penetro mais fundo na casa. A copa e a cozinha são repletas de vultos de mulheres, encarregadas do serviço da casa, trabalham na cozinha, na limpeza, na lavagem da roupa, no engomar, no cuidado com as crianças... Há uma lavadeira apenas para as camisas de meu pai e os lençóis de linho. Andam pela casa as agregadas, moças vindas de Icó, de Lima Campos ou de Cajazeiras, moças prendadas, e as rendeiras, bordadeiras e costureiras que sentam ao redor de uma saia aberta formando uma roda composta de desenhos, gestos, cintilações, risadas...
Uma casa animada e feminina. Na copa há uma mesa em madeira, na qual faço algumas refeições, que poderia ser um lugar de martírio para a criança sem apetite que sempre fui, mas onde todas as atenções da babá querida, Odete, se voltam para mim, para meus olhos marejados, para meus cabelos trançados. “Coma, minha chiquitinha, coma!” Os doces de dona Zuila, exímia rendeira e bordadeira, são delícia para a boca e para os olhos.
Atrás da casa há um quintal longo, com árvores, plantas, parte cimentado, ladeado por canteiros com roseiras, flores favoritas de minha mãe, se a vejo tão jovem inda, tão simples, tão meiga e linda... Um jardineiro cuida dos verdes da casa. Há uma garagem para o jeep de meu pai, no qual Maria do Céu se exercita à direção, e o Oldsmobile hidramático de minha mãe.
Com toda essa imagem de esplendor e encanto, fui visitar a primeira casa de minha vida, levada por Valdir, meu primo memorialista, e sua mulher, a doce Aparecida. A rua mudou de nome, as casas quase nem existem mais, de tão mudadas, e são bem menores e modestas do que eu recordava. Fiquei no outro lado da calçada, procurando resquícios, indícios, aromas...
Valdir bateu palmas à frente da casa, e veio um senhor atender. Após uma breve apresentação e uns dedos de prosa, o assunto correu para a poesia, paixão daquele velho morador, que, sem saber exatamente quem eram as pessoas ali à sua porta, declamou Gonçalves Dias, um poema, outro, mais outro... E seguiu declamando Augusto dos Anjos, a última quimera, Versos íntimos, e outro, e ainda outro... Conhecia de cor a obra completa desses dois poetas brasileiros. Perguntei-lhe se havia decorado também a poesia de Gregório de Matos, mas o senhor nunca encontrara um livro desse nosso primeiro poeta, todavia apreciava-o pelo pouco que ouvira. Nem sei mais o que aconteceu...
Ia a lua pelos ares docemente equilibrada qual linda concha embalada pela corrente dos mares... Incertas sombras pelos ares voam... O vento estava forte e aquela matemática da morte com os seus números negros me assombrava... Dali partimos, levando a sensação de que havia mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia, frase de Hamlet que é a epígrafe do poema de Gonçalves Dias, intitulado "Fantasmas".
ANA MIRANDA é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias e Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras. Escreve quinzenalmente neste espaço. amliteratura@hotmail.com.

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