segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

"O Grito do Jangurussu", crônica de Ana Miranda para O POVO


Faz tempo que desejo escrever sobre o trabalho do pintor Descartes Gadelha, feito na rampa do Jangurussu, umas pinturas impressionantemente terríveis ao ponto de belas, pelo trágico, pelo tom de sonho, ou pesadelo, embora reais, pelo que dizem sobre a humanidade e cada um de nós. Olhava os fantásticos quadros reproduzidos, e lia, então, as anotações que Descartes fez quando um dia deparou-se com o mundo do lixo e ali viveu um tempo, conversando com as pessoas, observando-as, comendo de sua comida, respirando seus ares, pisando nos líquidos letais, dando sua alma às emoções, e, afinal, transformando toda aquela experiência em pinturas. As anotações mostram como seres humanos somos sempre os mesmos, com nossos amores, crenças, nossa luta pela sobrevivência, nosso desamparo, o sexo, a criação de filhos, os sentimentos, os momentos sublimes seja onde for... Somos nós todos que estamos ali, numa guerra cotidiana contra o mais premente dos sentidos, o que mais pode nos degradar: a fome. Porque há um sentido de degradação, mas também de dignidade, em toda luta humana pela sobrevivência, seja entre os produtores de lixo, seja entre seus consumidores. O lixo nos une. Somos todos nós que despejamos nossos resíduos de maneira caótica e desatenta. São nossas as bonecas quebradas, as latas enferrujadas, as cascas de laranja, são pedaços de nossas vidas que estão ali, com todas as lembranças e metáforas.


Difícil escrever algo que possa mostrar a força daquelas pinturas que comprovam o dito de Baudelaire, Olhar é amar, pois sinto o amor profundo de Descartes por aquelas pessoas, um amor que me contagia e eu agora as amo, também; a força das anotações, a não ser elas mesmas, quando, por exemplo, o menino sonha com seu futuro, em que não há alternativas: Ora, eu vou comprar um caminhão carreta para trazer lixo da Aldeota para cá. Ou a menina, em suas constatações: É não, macho, Papai Noel não gosta mesmo é de menino pobre. Mas nós gosta dele porque ele dá de presente pros meninos ricos e com uma semana depois, aqui na rampa, nós pega tudim no lixo pra nós de volta. Né? (risos)


Aprendi a amar dona Lindomar, asmática e tuberculosa, evangélica que será curada pelos apóstolos de sua igreja porque paga o dízimo sobre seu lixo; a amar o Zé Pastor, crente, sempre ao ouvido o rádio de pilha com a voz do pastor, e enquanto cata, canta hinos de louvação a Deus; amar Das Dores a predizer, Menino que cheira cola vai pretinho para o inferno e fica colado no espeto de satanás e menino que não ouve conselho o satanás lhe fura os ouvidos; e Manoel Carvoeiro, que aceita, Foi Deus quem quis assim; e a cega, dona Deolinda, sempre com o neto Pichel, que reza e benze e cura dores e faz chá de tratamento e garrafada; e a viúva do João Bebê, dona Carmosa, a catar no lixo para manter seus cinco filhos e fez um baião-de-dois para o pintor, seu Gadelho; ou a amar e admirar o fabuloso menino do buraco, nascido num bueiro em ruínas e ali morando, mudo, honesto e trabalhador, cuja mãe morreu de sífilis e ele sem nunca saber quem foi o pai... e amar o herói deles, o Chico Neném, que aparta brigas, impede crimes, ajuda nos partos e apoia quem está em situação nem sempre mais extrema que a sua, e entende os urubus, os ratos e outros bichos (humanos) e diz, Os bichos têm sua fala, é só a gente querer entender. Que escritor poderia criar personagens tão irreais e fascinantes? Lá estão eles, nas telas de Descartes e nas suas anotações preciosas, para onde sou transportada e com quem sou levada a conviver, imaginativamente.


A psicologia desses personagens é digna de um Dostoievski, e seus sentimentos, de um Knut Hamsun no angustiante romance, Fome. E foi Descartes Gadelha quem os traduziu e humanizou, lembrando-nos de nossas omissões e incompreensões e distrações. Pintou lábios com o sangue vermelho dos fetos e abortos, céus com o marrom nojento dos chorumes, mãos com o verde dos refugos de restaurante, panos com o cinzento das carnes podres... Isso foi o que fez Descartes Gadelha, em cada gesto, em cada cor, eternizando os nossos Chicos Cegos, Nonatos dos Anguzôs, nossas Franciscas dos Padeiros, Gretchens Marias e toda aquela malhada de ovelhas famintas. E o meu presente de ano-novo é poder escrever sobre essas pinturas, falar desse artista que pensa, sente e pinta obras amparadas pela força do grito de Munch*.


*O grito (1893), do norueguês Edvard Munch, uma das mais importantes pinturas do expressionismo, retratando o auge do desespero humano.


ANA MIRANDA é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras.

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