Nunca tive sonhos de doido. Não viajo ao Kilimanjaro nem me encontro com Jesus de Nazaré. Não enfrento leões nem me abraço com Salomé. Sou normal, tenho sonhos de funcionário público bem remunerado: passeio de carro novo, família numerosa e sadia, algum voo entre estrelas de quinta categoria, divertimento com beldades de Hollywood. Hoje, porém, sonhei com Pedro Salgueiro e Dimas Carvalho. Ora, dirão os leitores: Onde está a loucura? Todo escritor sonha com dois ou mais escritores. E ninguém vê nisso sandice. Muitos veem, isto sim, latente homossexualismo. A insânia está, meus amigos, no tempo e no espaço da história. Éramos romanos ou, se não tanto, cearenses em visita a Roma. Não a Roma de Silvio Berlusconi e Bento XVI, ou Benedictus XVI ou o alemão Joseph Ratzinger. Estávamos nos primeiros anos da era cristã. O Rex Iudaeorum tinham crucificado havia pouco tempo. Dominava o mundo o Big Brother Tibério. E Dimas dava explicações minuciosas: Não o chamem simplesmente de Tibério. O nome completo é Tibério Júlio César Augusto. A brincar, Pedro saiu a dar pulinhos e a gritar: “Morra, Tibério!” Um centurião, com cara de Benito Mussolini, seguido de 100 soldados, passava ao largo. Apavorado, Dimas balbuciou: Plínio, o Velho, o chamou de “tristissimus hominum”.
Súbito – e não sei explicar como isto se deu –, estávamos diante do Coliseu. Olhei para Dimas e perguntei: Se Tibério foi Imperador até 37 d. C., como podemos ver o anfiteatro, inaugurado em 81? Pedro, sério, benzeu-se: Caminhamos para o fim dos tempos. Pusemo-nos a caminhar e, de repente, chegamos a uma enorme praça. Exaustos, sentamo-nos num banco. Que lugar é este? Passavam por nós odaliscas, palhaços, papangus, índios, judeus, muçulmanos, tipos esquisitos. Dimas ria: Isto é a Praça do Ferreira no carnaval de 2011. Diante de nós parou um sujeito pançudo e, bêbado como os demais, acionou uma buzina e gritou: Vocês querem bacalhau? E jogou para o alto exemplares do meu Carnavalha, das Fábulas perversas e de O peso do morto. A multidão os pisoteou e rasgou com os pés. Irritados, saímos a voar. Circundamos o prédio do Cine São Luís e rumamos para o Monte Castelo. Num segundo, alcançamos minha casa. Fui à geladeira e apanhei latinhas de cerveja. Vamos comemorar nossas viagens, nossas aventuras. Deixemos a plebe nas praças.
Como se esquecidos das aventuras romanescas, pusemo-nos a falar da realidade, do Ceará, do Brasil, dos escritores. Esmagada a décima latinha, Pedro fez a primeira pergunta da noite: Sabem por que não somos famosos? Dimas deu resposta imediata: Porque não somos muito bons. Quem é muito bom? Citou José de Alencar, Oliveira Paiva e Rachel de Queiroz. Fui à copa à cata de mais bebida. Pedro quis incluir outros nomes à lista: Adolfo Caminha, Gustavo Barroso, Moreira Campos e Ana Miranda. Propus Caio Porfírio Carneiro, Gerardo Mello Mourão e Francisco Carvalho. Antes de eu mencionar mais três ou quatro, Dimas jogou lenha à fogueira: Além de não sermos muito bons, vivemos na província mais provinciana do Brasil. Pedro apresentou duas hipóteses para explicar a pobreza de nossos “literatos”: a de não sermos publicados por grandes editoras do Sudeste e a de não nos empenharmos a um só gênero literário. Refutei uma delas: Moreira Campos só se dedicou ao conto, Francisco Carvalho só se devota ao poema. Não nos entendíamos. Busquei mais líquidos e, também trôpego, anunciei a chegada de três bacantes. Dimas se entusiasmou. Há meses não via de perto mulher formosa. Eu quero desfilar em carro aberto pela Via Appia sob aplauso dos centuriões. Pedro esfregou as mãos e se pôs a sonhar: Eu quero levar ao circo as peripécias de Papaconha. Chegaram, sorridentes e sedutoras, as três divindades: Violeta Feitosa, Jéssica Morais e Nicole Masina. Servi-lhes suco de graviola. Pedro se aproximou delas e, tentáculos em movimento de posse, gritou: Eu quero rasgar a boca dos leões romanos. Elas riram, assustadas. Tentei ser polido: Estão brincando o carnaval. Dimas friccionou as patas dianteiras, como um semideus caprino, e se aproximou também delas, de joelhos: Eu quero ver os súditos de Tibério prostrados aos meus pés e eu a ler meus contos fantásticos no Coliseu lotado. Violeta me chamou ao quarto: Eles estão drogados ou são apenas personagens seus? Jéssica também se socorreu comigo: Eles querem me devorar. E a pobre Nicole? Talvez tenha sucumbido ao assédio dos sátiros. Fui à sala e raptei a terceira menina dos braços daqueles celerados. Fechei a porta do quarto e me deitei com as três. O resto não conto. Pulo para o fim da noite, o início da manhã.
Acordei fatigado e só, como se mil bacantes me tivessem possuído por toda aquela noite romana e cearense.
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