terça-feira, 5 de outubro de 2010

"As Normas da Nossa Língua", crônica de Ana Miranda para O POVO (1º de outubro)


Outro dia fui comprar um Aurélio novo, e minha amiga Aparecida se espantou quando eu disse que precisava saber as palavras estrangeiras constantes nessa nova edição. Por exemplo, a palavra country não constava na minha edição antiga, mas já consta na nova edição do dicionário. Portanto, country não é mais palavra estrangeira, pois está dicionarizada, e não leva mais o itálico, sempre usado para palavras estrangeiras (e para dar uma entonação, um realce quando queremos). No entanto, grifei acima a palavra country, e grifo-a agora, porque sempre que a palavra vem precedida de ‘a palavra’, ela é grifada. Sempre é prudente consultar o pai dos burros (e nesse sentido todos somos burros). Flat, flashback, float, floater, fluori, flush, flûte, flutter, flux, flyback, focaccia, fog, só para ficar em algumas páginas, fazem parte da nossa língua. E não são grifadas em itálico. Ficam, como se diz, em redondo.


Quando escrevia meu primeiro romance, e nisso se passaram dez anos, eu trabalhava preparando originais para serem editados em livros. Assim, aprendi algumas normas básicas, e também de ouvido, pelo hábito da leitura. Essas normas existem e devem ser seguidas. O livro mais usado pelos editores de texto é A construção do livro, de Emanuel Araújo. Por falar nisso, temos aqui uma nova questão: o acordo ortográfico de 1943 determinava inicial maiúscula em títulos de livros, com exceção das partículas monossilábicas. Mas, do ponto de vista da editoração, é um contrassenso. Busca-se o efeito de realce. Se o título aparece em grifo, ou seja, grifado em itálico, e também com as iniciais maiúsculas, é preciso escolher apenas um dos realces. Melhor mesmo o itálico, pois as iniciais maiúsculas podem sugerir nome próprio. Portanto, há muito se normatizou o título do livro desta forma: Grande sertão: veredas; História geral do Brasil (geral e regional); As culturas negras do Novo Mundo. Quando o título é em língua estrangeira, a coisa fica mais específica. Quando é nome de jornal ou revista, fica assim: O POVO, ou La Voix de Paris. Vale a consulta ao Emanuel. Acabo, aliás, de perceber que a minha edição é de 1986, e preciso comprar a mais nova, atualizada, para apaziguar meus pesadelos de normalização.


Claro, o autor literário tem liberdade e pode, por exemplo, suprimir todas as maiúsculas. Mas, para não caracterizar um erro, é preciso que seja padrão geral em todo o texto. Pode, como Saramago, quase não usar parágrafos, ou citar os diálogos depois de uma vírgula, ‘À vizinha, Qual vizinha, A do cântaro’, ou exigir que se use ‘de facto’ e não ‘de fato’ (em Portugal, fato é paletó), questão já ultrapassada após o novo acordo. No entanto, Saramago se espantava com o uso brasileiro da mistura de tu e você num mesmo texto, ou mesma frase. Isso não é vernacular, mas foi coloquialmente estabelecido, e expliquei-lhe que é problema de compreensão: ‘vamos a sua’ casa pode significar a casa de dois personagens. Mas ‘vamos a tua casa’ refere-se a apenas um. Ele não se convenceu.


Enfim, para que servem essas normas tão minuciosas e complexas? Servem aos horizontes da eficácia e da beleza. À universalização dos meios e métodos e soluções. Servem para que o livro se apresente como produto de alto rigor. Servem para a excelência do avanço cognitivo e cultural. Conforme palavras de Antonio Houaiss, autor do livro pioneiro no qual Emanuel se baseou para seus estabelecimentos normativos. Ah meu Deus! Normatização ou normalização? Minha prima Adriana, que é biblioteconomista (ou bibliotecária?) disse-me que normatizar é criar as normas; e normalizar é adequar às normas, Vamos ao Aurélio! Minha prima está certíssima!


Essas normas? Ou estas normas? Demonstrativos que localizam. A consulta, agora, é ao Napoleão, o seu Dicionário de questões vernáculas ajuda em alguns casos. Eu vi este homem (aqui perto). Eu vi esse homem (longe de mim, mas perto do interlocutor). Eu vi aquele homem (afastado de ambos). Também: este se refere ao enunciado que vem depois; esse, ao enunciado que já foi apresentado. Quando são dois termos, usamos este (o mais perto) e aquele (o mais distante). Quando há confronto entre duas coisas: Não foi este o livro que mandei comprar! E: este trecho (já exposto, mas colocado em último lugar). E escrevo cercada, também, de dicionários analógicos, dicionários de sinônimos, de regência de verbos, etimológicos, uma enciclopédia... Mas, na hora de escrever... Muitas vezes fico tão em dúvida que só me resta mudar a frase.

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