domingo, 6 de junho de 2021

"Sandra", conto de Raymundo Netto


Ernesto mal chegou à praça e foi acolhido por Pedro num entusiasmo delirante: “Cara, sabe quem marcou comigo aqui hoje? A Sandra! Acredita?”

Ernesto, numa aparente indiferença, estranhou: “Pedro, você está lembrado que a Sandra... morreu, né?”

Ernesto, Pedro e Sandra eram na faculdade um trio inseparável. Entre os colegas, sempre à margem daqueles afetos públicos, havia quem garantisse: os rapazes eram jurados de paixão pela moça, e que, em meio à doce e até invejada amizade, travava-se uma aguerrida disputa amorosa a resultar, a qualquer instante, em uma crise dramática. Para isso, bastasse a moça se decidir por um ou por outro.

Sabia-se que os três, além do grude na sala de aula, estudavam juntos, saíam para beber e se divertir, viajavam, compartilhavam quartos – e até camas – de pousadas e hotéis, numa obscenidade de querubins.

Na tão certa e temida noite de formatura, algo aconteceu. Pedro e Ernesto estavam intranquilos, reservados e separados. Criam: a partir de então a chave viraria e cada um seguiria o seu caminho profissional e a sua própria vida. Sandra, pelo contrário, estava exultante, distribuindo vigorosos sorrisos e olhares para o futuro que se anunciava, confraternizando com todos os colegas e misteriosamente dispensando a costumeira e exclusiva atenção à dupla.

Poucos meses depois, veio a bomba: uma doença incurável, repentina e dolorosa tomou conta de Sandra. A notícia se espalhou ligeira, os colegas a socorreram, chegaram junto, choraram juntos, e ela, mesmo morta e recolhida no derradeiro leito na lama, após uma noite quente e sem ar, esculturava a beleza risonha de um amor quase virginal.

Ernesto, logo à primeira notícia, abandonara tudo. Não saía de sua cabeceira por nada, envolvendo-a em carinhos e mentiras esperançosas. Muitas vezes ela perguntava: “E Pedro, onde está que não vem, aquele ingrato?” Nunca soube, mas Pedro sofria horrores. Trancara-se no seu quarto, inconformado, a beber e a chorar noite e dia. Na época, como fosse segredo, confessou a Ernesto o seu desmedido amor. Então, numa simulada surpresa, o amigo sugeriu esquecê-la.

Pedro e Ernesto se viram pela última vez no funeral de Sandra, e não se falaram nem ali nem nunca mais. Até aquele dia, anos depois, quando Pedro o chamou para se encontrarem naquela praça. Nela, Ernesto, muito delicadamente, o inquiria: “Pedro, ela falou mesmo com você? Quando? Como?” Pedro o respondia com uma certeza fulminante: “Ela me ligou, marcou aqui mesmo em nosso baobá. Lembra o baobá?”

No jardim da praça havia um baobá. Uma tarde, antes da formatura, embriagados, ensombravam-se no baobá, quando Sandra sentenciou a amizade tão duradoura quanto ele, estreitando em um abraço o choro doloroso de uma insuportável separação.

“Cadê o seu celular, quero ver essa ligação”, insistiu Ernesto. Pedro procurou nos bolsos, na mochila, não o encontrou. Colocou as mãos na cabeça, desesperado. Como atendera o telefone em casa, devia tê-lo esquecido por lá: “Cara, a gente pode até se desencontrar. Tenho que ir buscá-lo.” Ernesto, assistia com certa dor àquele nervosismo: “Pedro, olha, não tem telefone... Não adianta, ela...” Pedro não o escutava: “Faz assim, Ernesto: fica aqui, caso ela chegue. Não deixa ela ir embora. Vou em casa pegar o celular, vou provar para você. Fica aí, não deixa ela ir embora, volto já!”

De fato, não tardaria nada e Pedro retornava agarrado ao seu celular. Mas estacou ao ver um grande alarido em torno daquele baobá. Pessoas rodeavam o corpo ensanguentado de um homem. Era Ernesto. Esperava a volta do amigo. Distraído, no seu íntimo, queria crer nele. Daí surpreendido por um assaltante, reagiu, sendo brutalmente apunhalado e tombando sobre as robustas raízes.

Pedro quedou-se pasmo ao lado do amigo, quando ouviu o sinal de seu celular. Pegou o aparelho e olhou o visor. Era mensagem de Sandra: “Perdoe-me, querido, sempre amei Ernesto.” E ali, diante de todos, um homem choraria suas dores mais profundas a esmurrar o cadáver indefeso e realizado de um morto.




 

 

25 comentários:

  1. Que trama bem engendrada. Muito bom. Tanto o fio da estória como o final, com a mensagem de Sandra. Parabéns!

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    1. Muito grato pela leitura, Malvinier. Eu gostei de fazer isso também. rsrsrs Abração.

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  2. Fantástico conto fantástico! Irresistível essa intriga entre amigos-e-amantes.
    "Obscenidade de querubins" é coelho de cartola que só os magos da Literatura sabem tirar.

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  3. Muito obrigado, Tião. Gostei muito de contar essa história numa narrativa menos linear, de feedbacks. Li alguns contos assim e essas relações entre "amigos" é bem comum e sempre causam certa expectativa do público mais próximo.

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  4. Aprecio demasiadamente a maneira como você escreve garoto,a leitura sempre me espanta, me assombra e o final sempre me surpreende.
    Abraços de fã.

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    1. Muuuito obrigado pela gentileza das palavras e pela leitura. Queria saber o nome dessa fã. rsrs

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  5. Adorei esse triângulo trágico-amoroso. Muito bom mesmo!!!

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  6. Um enredo maravilhoso e único.. simples...num espaço curto do tempo..petfeito

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  7. você e essa esperteza do último ato, me passou tudo pela cabeça, mas brigar com o já defunto, foi tudo de inusitado. saudades que estava de suas crônicas. um abraço grande. parabéns!

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    1. Lucirene, eu também sinto falta de escrevê-las. Pode crer. Agradeço demais a sua leitura de sempre e o retorno por aqui. Abração

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  8. Pedro perde duplamente Sandra. Uma história de amor e traição.

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    1. Obrigado, Carlos (sei que é você, mas me aparece aqui como "desconhecido"). Grande abraço.

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  9. Muito bem, Raymundo Netto. Que venham outros...

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  10. Eita Neto, que conto porrêta! Um senhor nocaute como diria um velho argentino amigo nosso.
    Grande abraço.

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    1. Gratíssimo, amigo Saraiva. Fico muito feliz. Muy gracias... rsrs

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  11. Sempre surpreendente, meu amigo!
    Vc é show!

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    1. Obrigado, Nice. O show só é completo pelo incentivo dos amigos e amigas.

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  12. Ô,cabeça inteligente e criativa!Embarquei nas emoções do começo ao fim!Senti "sentimentos ".Que texto bem escrito!Parabéns, amigo!

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  13. Quisera, moço Raymundo de tão vasto mundo, encontrar um comentário à altura do seu texto... mas ainda estou pasmo... admirado com sua maestria...

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    1. Moço Quinho, grato pela sua leitura e gentil (como de costume) retorno. Grande abraço.

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