sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Entrevista, na íntegra, de Raymundo Netto para O POVO (15 anos de crônicas no Caderno Vida & Arte)


Entrevista de ANNA NÍVEA COSTA

Especial para O POVO

12.12.2022

Num diálogo vivo entre a memória, a cidade, a cultura e o fantástico, o escritor Raymundo Netto celebra quinze anos de crônicas publicadas no Vida&Arte.

Desde 2007, o autor se inspira no cotidiano da capital cearense para a criação de narrativas astuciosas. Autor de obras premiadas, como Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, vencedor do I Edital de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult), Raymundo atuou como jornalista, editor e produtor cultural. Atualmente, desenvolve trabalhos como gerente editorial e de projetos da Fundação Demócrito Rocha (FDR).

Para comemorar a duradoura colaboração, o cronista concedeu uma entrevista em que comenta, entre outros assuntos, sobre o papel da crônica na vida dos brasileiros, a história do gênero e os próximos lançamentos.

O POVO - VOCÊ JÁ SE AUTOCENSUROU EM ALGUM MOMENTO POR ACHAR QUE NÃO DEVERIA ABORDAR DETERMINADO TEMA EM SEUS TEXTOS?

RN: É possível até que em algum momento isso possa ter acontecido, sim, domando algum arroubo por um motivo diverso, mas geralmente não sou disso, pois acredito que essa liberdade que o próprio jornal me permite, deve ser explorada, e que o leitor gosta disso, dessa eloquência, mesmo quando ela chega para eles, no mínimo, trajado de sarcasmo ou ironia.

 

O POVO - AO LONGO DOS ÚLTIMOS QUINZE ANOS ESCREVENDO PARA O CADERNO "VIDA & ARTE", DO O POVO, QUAL TEXTO MAIS TE MARCOU E POR QUÊ?

RN: É uma pergunta extremamente difícil. Nem sei quantos textos escrevi até então nesses 15 anos. Entretanto, posso assegurar que desde a primeira crônica publicada eu tinha um projeto literário. Não é à toa que a maioria delas, após um descanso merecido, enveredaram para enfeixar livros, como é o caso do Crônicas Absurdas de Segunda (EDR, 2015) (ganhador do Edital de Incentivo às Artes da Secult 2015 e finalista do Prêmio Jabuti de Literatura em 2016) e o Quando o Amor é de Graça! (EDD, 2019) (ganhador do Edital de Incentivo às Artes da Secult 2017). E nesses 15 anos, mudei aqui e acolá de estratégia, de temática, de estilo, por necessidade própria de experimentar, de exercitar-me, de curtição mesmo, pois eu curto escrever, não me sentindo obrigado a nada. Não tenho pretensão nenhuma, nem carrego a ilusão cor de rosa de que escrever ou publicar é um sonho. Não, mesmo. A única ambição que tenho é ser lido pelo maior número de pessoas possível, desde que não tenha que ser outra pessoa para isso.

 

O POVO - NA SUA OPINIÃO, POR QUE A CRÔNICA CONTINUA SENDO CONSUMIDA MESMO APÓS O FECHAMENTO DE TANTOS VEÍCULOS IMPRESSOS?

RN: A crônica, apesar de ter surgido, pelo menos se popularizado, no veículo jornal, independe completamente dele. Muitos de nós, leitores de crônicas, as conhecemos já impressos em antologias famosas, por meio de vozes como Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Cecília Meireles, Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta, Rachel de Queiroz, Luís Fernando Veríssimo, Paulo Mendes Campos, entre tantos outros. Claro que muitos desses textos saíram de páginas de periódicos antes de pousar em livros. Sabemos disso. Mas é um gênero muito fácil de ser acolhido, mesmo pelos leitores menos proficientes, por isso muito utilizado em salas de aula, devido às suas características, como a de ser um texto curto, de construção simples, permitindo fluidez na leitura, com vocábulos comuns e termos coloquiais, e geralmente em torno de temas e situações corriqueiras do cotidiano. Além de, boa parte delas, se sustentarem no humor, coisa que o brasileiro gosta demais, e a crônica, como hoje a conhecemos, é mais brasileira do que qualquer outra coisa.

 

O POVO - VOCÊ TAMBÉM ABRAÇA O FANTÁSTICO EM SUAS OBRAS, COMO EM CRÔNICAS ABSURDAS DE SEGUNDA. DE QUE MODO A FABULAÇÃO DO REAL AJUDA NA CONSTRUÇÃO DE TEXTOS QUE ABORDAM O PRESENTE PALPÁVEL?

RN: O fantástico, o absurdo, o estranho, enfim, esses gêneros e subgêneros são muito atrativos e provocadores desde o século XIX. Quando fui convidado a escrever os textos que originaram o Crônicas..., tinha uma exigência editorial: o cenário de Fortaleza. O resto era por minha conta. Na primeira crônica, bati um papo com a estátua da Rachel de Queiroz sobre crônicas, depois nos chega um ET no Benfica quando o mundo acabou. Cruzei a cidade com um José de Alencar de tênis e mochila. Assisti à luta de José Alcides Pinto contra o Dragão de Sobral. Deparei-me com um espantalho que tinha a cara do Francisco Carvalho e com uma barata falante que era mesmo que ver o Airton Monte...  Daí continuaria a encontrar com cronistas vivos ou mortos do Ceará, nas ruas de Fortaleza, em situações absurdas, mas baseando-me sempre em algo que acontecia na cidade. A verdadeira cidade parecia ser essa aparentemente irreal.

 

O POVO - DIANTE DAS MUDANÇAS NO MERCADO JORNALÍSTICO, E DE UM GOVERNO QUE NEGLIGENCIOU A CULTURA NOS ÚLTIMOS ANOS, QUAL A IMPORTÂNCIA CRÍTICO-SOCIAL DAS CRÔNICAS?

RN: A literatura, assim como a arte e as baratas, sobreviverá. Como disse, independentemente do jornal ou mesmo do papel, do impresso, a crônica resistirá, continuará a ser escrita e lida. E devido à ausência de limites e hibridismos, ela há de sempre conquistar o mundo, incomodando-o, provocando-o, denunciando, fazendo pensar ou simplesmente trazendo de volta a cor a corações destintos.

 

O POVO - O QUE OS LEITORES PODEM ESPERAR DE FANTÁSTICOS E COISAS ENGRAÇADAS DE NÃO SE RIR?

Voltando ao que afirmei sobre escrever sempre pensando em um projeto literário, esses dois novos títulos, que espero serem lançados em 2023, me chegaram assim. Fantásticos é a reunião de contos no gênero, ou bem próximos a ele, com características diversas, empregando alguns dos elementos sobrenaturais, de horror, suspense ou mesmo de estranhamento ou fantasia, mas com um tempero nosso, por vezes fugindo do clássico. A literatura não abre mão de ser livre.

Coisas Engraçadas de não se rir é uma reunião de crônicas, também publicadas anteriormente no jornal O POVO, que levanta o tapete da sala de estar e revela o que escondemos por debaixo dele: o ridículo da humanidade. É uma obra mais humorada, às vezes até picante, despudorada, usando da comédia, da ironia e de muito exagero para interpretar o ser esquisitoide que somos.

E o que eu espero: que as leitoras e leitores se divirtam, que curtam, e que essas leituras acrescentem algo na forma como eles veem o seu entorno e como se comunicarão com ele depois de. A vida é curta, mas a arte transcende tudo isso.




 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

"Amante (PARTE II), de Raymundo Netto para O POVO


 

Vinte e cinco anos depois, não parecia ser o seu aniversário se Vitória não recebesse aqueles lírios azuis e os colocasse no vaso da mesa de centro da sala, bem ali, diante de Carlos, seu então marido, e da família que crescia.

Do nada, à noite, na hora da bem frequentada e animada comemoração, não seria estranho se nós a encontrássemos mergulhada no sofá, os pequenos pés na mesinha de centro, bebendo uma taça de vinho, sorrindo sozinha, com o pensamento distante e os olhos voltados para os lírios, alheia à zoada de Carlos, a trocar velhas e grosseiras piadas com seus amigos já alegremente bêbados, tirando troça com as suas esposas, boa parte delas, assim como de seus filhos, espalhada nos cômodos do apartamento ou em fuga nos celulares, videogames ou na TV.

Ao final da festa, no silêncio mais perigoso da noite, saía preguiçosamente a colher as taças e os pratos esquecidos na varanda e na sala. Ao cruzar pelos lírios, chegava-lhe, como um sussurro: “Ele ainda pensa em mim.”

No entanto, jamais ligou para Ramon. Não mandava e-mails nem mensagens de mais simples agradecimento. Se quisesse, ele procurasse por ela. Não se esquecia de seu aniversário, de enviar aqueles lírios, por que não ligava? Tanto tempo se passou desde a última vez que se falaram... não poderiam ser amigos? E assim, a vida tomava o seu rumo. Na verdade, ela, imersa nas atividades profissionais, nos cuidados com os filhos, com o marido e com a mãe viúva, nunca se lembrava de Ramon, até receber aqueles lírios azuis.

Nos frequentes encontros com as amigas da escola, em divertidos momentos de revelações constrangedoras e lembranças batidas do passado, vez ou outra alguém perguntava por ele e, espontaneamente, todas olhavam para ela, esperando alguma novidade que nunca veio.

Contudo, chegou mais um esperado dia de seu aniversário... e nada dos lírios! Vitória estranhou. Não podia ouvir tocar o interfone, que logo pensava: “São eles!” Mas não eram. Ligou à portaria. Perguntou se deixaram algo para ela, e avisou que não sairia de casa, caso chegassem.

Ansiosa, parou em frente ao espelho do banheiro. Incomodou-a as raízes brancas dos cabelos, as rugas em torno dos olhos tristes ao simular um sorriso desmotivado, a falta de um pulsar que embaraçasse o coração. Estava velha? Acabou, é isso? Nunca mais?

O marido, ao contrário, chegava entusiasmado, trazendo cerveja e carne para churrasco, fazendo algazarra com os filhos. Era também dia de jogo e havia chamado os amigos. Vitória respondeu com uma imediata dor de cabeça. Fechou as cortinas do quarto e colocou o lençol no rosto para esconder o sofrimento que lhe escorria na face.

Foi aquele o aniversário mais deprimente de sua vida. Os amigos estranharam: “Ela tá doente?” Carlos não notou: “Está? Não sei.”

No sofá, fingia a duras penas ouvir as amigas sobre a nova série daquele “homem liiindooo”. Evitava olhar para a mesinha de centro, desnuda e profundamente triste, a suportar no peito a dor do misterioso abandono.

No dia seguinte, dormira mal, ficou em casa. Inconformada, decidiu ligar para ele, mesmo faltando-lhe o ar e a coragem: “Alô, Ramon?” Porém, do outro lado da linha, uma mulher: “Pois não, aqui é Jandira.”

Que maçada! Claro, ele poderia ter outra pessoa, sabia lá, uma esposa, namorada... Jandira continuou: “Mas esse telefone é mesmo do Ramon. Quem deseja falar com ele?” “Uma amiga”, respondeu. A voz do outro lado da linha alteou: “Ah, você é a mulher dos lírios?”

Em pânico, Vitória desligou o telefone e caiu, quase desmaiada, no sofá: “Que burra!”.

O telefone tocou. Era Jandira. Mesmo assustada, Vitória segurou a respiração e o atendeu, afinal, não devia nada a ninguém. A mulher foi direta ao assunto: “Eu sou a irmã dele. Ramon está morto.”

 

(CONTINUA DAQUI A 15 DIAS)

 

domingo, 18 de dezembro de 2022

"As Crianças dos Olhos Brancos", Martin Mystère nº 28, por Raymundo Netto


 Sou grande fã dos personagens dos Fumetti (quadrinhos) italianos. Hoje, entre eles, um dos que mais acompanho com regularidade é Martin Mystère, o detetive do impossível.

Atualmente publicado pela Editora Mythos, Martin, um antropólogo, arqueólogo, perito em arte e cibernética e colecionador de objetos incomuns, criado pelo roteirista Alfredo Castelli (criador também de Allan Quatermain), gira o mundo – ao lado de seu assistente Java, um homem de neandertal, e de sua eterna noiva Diana Lombard – na busca de solucionar enigmas com origem em lendas, mitologias, magia, seitas, esoterismos e outras curiosas manifestações místicas que sobrevivem paralelamente, e muitas vezes à sombra, do progresso (ou não) da humanidade.

Em seu nº 28, cujo título é “As crianças dos olhos brancos”, após presenciar a curiosa ressurreição de um menino, o desaparecimento de sua noiva e insolúveis assassinatos, ao lado de Java se dirige à Ilha de Bali, província da Indonésia, na tentativa de resolver o mistério das “crianças de olhos brancos” (as 3 que ressuscitaram) e resgatar Diana.

Como sempre em suas aventuras, somos apresentados à fronteira do desconhecido, a civilizações, culturas, religiões, templos extintos ou em extinção, o que torna muito rico o roteiro e a leitura dessas histórias.

Desta vez, uma das obras literárias fundamentais da Índia, o Ramayana, famoso poema épico em sânscrito, com 24 mil versos, numa métrica de 32 sílabas, distribuídos em 7 cantos, cujo protagonista é o príncipe Rama, uma das divindades hindus mais populares, é o eixo da história, trazendo como tema a eterna luta entre o bem (Rama) – aliado aos macacos sagrados da Floresta dos Macacos de Bali (Bukit Sari) – e o mal (Rawana) – uma divindade que se alimenta dos sentimentos e pensamentos maus das pessoas, ou seja, o “demônio”.

Para quem gosta de quadrinhos, viajar (de verdade), história e cultura antiga, impossível não visitar algumas dessas inquietantes páginas do que há de melhor nas HQs contemporâneas (embora as suas aventuras se passem na década de 80).

PS: o formatinho atual está esteticamente melhor, além de ser mais duradouro (capa em papel cartão plastificado e miolo em papel off-set). E melhor: se você quiser, ainda pode adquirir toda a nova série que está, hoje, no número 31. Eu tenho todas.




segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

"Amante (PARTE I)", de Raymundo Netto para O POVO

 

Lírios Azuis são promessas de amor eterno”, disse Ramon, oferecendo-os com toda ingênua pompa de adolescente recém-aberto à possibilidade de morrer de amor, diante de sua amada Vitória, em seu primeiro aniversário juntos, assim como o faria nos demais, desde que iniciado aquele romance.

O casal se conhecera na escola, no ensino médio. Para Ramon, o primeiro encontro de olhares bastaria para que não mais a perdesse de vista. Diziam os colegas de sala serem feitos um para o outro, inseparáveis, como todos os grandes enamorados de novela, condenados a serem felizes para sempre.

Naqueles anos, além da companhia em carteiras de sala de aula, da saraivada de beijos incessantes e velados nos fundos da cantina durante o recreio, em pares nas atividades e festas escolares, enfrentaram muitas noites juntos, fossem debruçados em apostilas às vésperas de provas, em livros de poesia – pois se permitiam ouvir a voz de anjos – ou por vezes sobre seus corpos nus, em ebulição, quase virgens, em plena alfabetização sexual.

Ao final do curso, ela passou para a Psicologia e ele em Jornalismo. Comemoraram num contentamento de ganhadores de loteria, farto de planos de futuro: muitos filhos, uma casa no campo, escreveriam livros, viajariam, teriam uma música, cachorros, gatos, papagaios e uma velhice extraordinária. Porém, o amor se dá a distrações, e Vitória conheceria Carlos, um aluno do curso de Engenharia que, ao contrário do romântico Ramon, não elaborava projetos alucinados, sustentados em longarinas de sonhos, mas sobre metas, orçamentos e formulentas planilhas. Desde então, os encontros seriam inexplicavelmente adiados um a um, até quando Ramon soube pelo colega Nestor – parece que sempre há um em nossas vidas – sobre o suposto flerte entre Vitória e Carlos.

O seu mundo quedou-se ali mesmo. Ramon não poderia nem queria crer. Só de pensar, morria. Ligou para Vitória. Marcariam um encontro. Ela adiou o quanto pôde, lançando todas as desculpas, as mais esfarrapadas, mas, diante da insistência, cedeu.

Quando Vitória chegou à praça, Ramon não reconheceu o seu olhar, aquele que o conquistou. Sentiu-se, desde então, fracassado. Mesmo assim, criou coragem para exaltar o seu amor, o mais sincero e sem igual no mundo – como todos, aliás. Gesticulava, falava, falava, falava, com receio do inesperado e até então desconhecido silêncio que poderia abater-se entre os dois. As lágrimas desciam navalhando o seu rosto... Porém, percebia que ela, numa frieza beirando a crueldade, de braços cruzados, evitava olhar para ele. Enquanto tentava convencê-la, ela murmurava, impaciente, “que sabia de tudo aquilo, que sabia, mas que era outra coisa”. Ela se repetia, embaraçada, duas, três vezes, maquinalmente: “sabia de tudo aquilo, mas que era outra coisa”. Sentia-se péssima ali, pronta para correr se pudesse. 

Ramon calou-se. Assistindo àquele constrangimento e ciente de que dali não sairia mais nada, sentiu-se ridículo, de uma estupidez medonha. Ora, Vitória era uma manteiga derretida, chorava até em propaganda de fraldas de bebê, mas não derramara uma lágrima sequer diante do seu amargo e profundo sofrimento. Será que ele não merecia uma lagrimazinha de nada depois de tudo que viveram juntos? Não, aquela era a mais absoluta negação que poderia sofrer. “Pois era só isso”, disse e tomou o seu rumo sem olhar para trás, sendo-lhe insuportável assisti-la certamente aliviada e pronta para revelar ao mundo o seu novo amor. Daí, nunca mais a procuraria, mesmo quando indignado recebeu em uma sacola de papel a devolução de cartas, poemas, presentes e fotografias. Tudo acabado de uma vez por todas!

Curiosamente, a única coisa que nunca mudou foi o envio de buquês de lírios azuis sempre na data do aniversário dela. Com ele, um cartão oficioso, quase desinteressado: “Parabéns” e o endereço atualizado de e-mail e telefone. E só!

 

(CONTINUA DAQUI A 15 DIAS, NESSE MESMO CANAL)



domingo, 20 de novembro de 2022

"15 Anos de Crônicas no Jornal O POVO", de Raymundo Netto para o dito cujo


Na capa do Vida & Arte, em 04.02.2007 | Foto: Fco. Fontenele


Durante a última edição da Bienal Internacional do Livro do Ceará, a equipe do jornal O POVO elaborou uma programação na qual constou uma mesa de jornalistas que celebrava os 10 anos de Romeu Duarte como cronista no seu caderno de cultura. Merecida homenagem. Ótimo cronista, contador de boas histórias, Romeu reveza o espaço comigo, às segundas, e temos uma coletânea de algumas dessas crônicas a ser publicada, esperamos, no ano que vem, pelas edições Demócrito Rocha. Pensava nisso quando... epa!... Lembrei-me: em 2022, completei 15 anos no mesmo caderno.

       Daí, não sob holofotes, mas no meu silencioso e reservado eu comigo mesmo, na atitude – hoje quase clichê – de ouvir estrelas, rememorei: em 2007 fui convidado e passei a integrar um grupo composto por quatro cronistas do “Vida & Arte”: Pedro Salgueiro, Jorge Pieiro, Fabiano dos Santos e eu. Fabiano apenas estreou, não chegando a uma segunda participação. Pieiro ainda levou por alguns anos, mas pediu para sair. Restamos apenas eu e o Pedro, debutantes e ainda aprendizes, graças a Deus.

       De lá para cá, muita coisa mudou, seja na vida do mercado jornalístico (espaços menores nos impressos, quando impressos, e a inexistência dos suplementos literários), assim como na dos escritores (escravidão nas redes sociais e exigência de vida social não compatível com sua produção, além de não precisar ser escritor, mas, sim, personagem).

       A crônica, desde o século 19, tornou-se bastante popular por conta de seu maior veículo: o jornal. Na verdade, era um atrativo para que as pessoas comprassem mais jornais. Com o tempo, ao lado de palavras cruzadas, das tirinhas de quadrinhos, das receitas da vovó e mesmo de colunas sociais, a crônica continuaria o seu papel de lazer, de fruição. Esse bate-papo com o leitor, que conforme o autor ou autora teria suas características e estilos bem próprios e distintos – assim como o seu público –, fomentou uma série de publicações que, no meu tempo de estudante, se revestiriam da missão de encantar-nos e nos apresentar ao mundo literário, desenvolvendo o nosso gosto pela leitura. Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles, Inácio Loyola Brandão, Sérgio Porto, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes, Luís Fernando Veríssimo... Uma infinidade de gente muito boa. E, para mim, o mais importante: lia essa turma toda e me sentia feliz!

     Sempre muito solitário, apesar da família grande, a leitura me foi sempre uma grande companheira. Sua fala baixinha correndo pela minha imaginação adolescente fazia-me crer na possibilidade de quase tudo, alimentando-me nas horas vazias, me emocionando e me acolhendo naqueles instantes nos quais me perguntava qual o sentido de existir.

        Quando me dispus a escrever crônicas neste jornal, após o ponto final, eu as lia e as relia, na tentativa de imaginar se a minha leitora e/ou meu leitor teriam esse mesmo sentimento. Se isso não aconteceu ou acontece, FRACASSEI. Não existe outro motivo para continuar.

       Por conta dessas crônicas, publiquei dois livros: “Crônicas Absurdas de Segunda” (2015), ganhador do edital de artes da Secult-CE e finalista do Troféu Jabuti de Literatura, e “Quando o Amor é de Graça!” (2019), também contemplado no Edital de Artes da Secult-CE, e tenho mais dois para sair no ano que vem “Fantásticos!” e “Coisas Engraçadas de Não se Rir”. Elas, as crônicas, seja pelo jornal ou pelos livros, me apresentaram a maior parte das pessoas que hoje dividem comigo suas leituras e amizades. São responsáveis pelos encontros casuais com desconhecidos na cidade a se anunciarem também leitores e, muitas vezes, a compartilhar esses belos e necessários sentimentos.

       Concluo: a crônica é poderosa, mas assim como as estrelas de Bilac, é preciso amá-las para entendê-las.





 

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

"Ninguém Vive sem Amor", de Raymundo Netto para O POVO


Apolônio Eugênio de Mascarenhas Lobo, desde a primeva infância vulgarmente conhecido pela alcunha “Ninguém”, teria algumas qualidades que o distinguiam da maioria dos mortais: era boêmio, ateu, comunista e poeta. Havia outra, para ser sincero com o leitor ou a leitora, que distraídos deixaram cair os olhos nessas apenas sugeridas linhas: Ninguém nunca amara alguém! Sim, se dizia poeta e não vivera sequer a mais mísera história de amor. Porém, como a vida não é nada perfeita e dada a sua condição de reiterada improvisadora, deu-se que um dia Ninguém sentiu um aperto inédito no peito, que, de tão original, pensou ele ser o seu fim... mas, ao contrário, foi o começo!

Ao entrar numa loja de variedades, encontrou-a, tímida, na seção feminina. Belíssima, a mais linda mulher em que já pusera os olhos. Como encantado, aproximou-se dela, sussurrou algo em seu ouvido, e ela parece ter gostado, pois dali sairiam os dois agarradinhos direto para a casa daquele que, até então, ignorava esse estado de graça.

Durante semanas, Ninguém seria o homem mais feliz do mundo, descoberto como num sonho, a percorrer a pé os versos tortos sem eira nem beira dos desvairados amantes.

Quando nos passeios ao final da tarde, Ninguém percebia os olhares zombeteiros e curiosos do populacho para o casal. Ele, claro, sempre subestimado, supunha logo que estranhavam: “O que essa mulher tão linda viu nessa coisinha?” Neste momento, ele olhava para a companheira e, ela, altiva, não dava a mínima para eles. As lentes do coração violam a miopia do olhar humano. Que os maledicentes se lixassem, se roessem de invejas, fossem para o inferno: eles se amavam!

Às noites, vendo-a na cama, deslumbrante e completamente nua, pronta para incendiá-lo, chegava a se envergonhar por merecer tanto. Deitava com cuidado ao seu lado e diante das estrelas cadentes que regem amores assim, tomava-lhe os seios, as nádegas, beijava cada poro de seu corpo, chupava os dedos de seus pés. Daí flagrados pelo sol a espiar cedinho na janela, percebiam a noite não ser suficiente para caber tanta paixão.

Contudo, com o passar do tempo, inexplicavelmente, como injusta é a vida de quem ama, percebia a gélida presença de seu silêncio, uma inesperada e incômoda apatia. Teria se entediado com ele? Estava arrependida? Por vezes, enquanto ele inventava assuntos, contando causos, falando de poetas e poemas ou de seu modesto – e quase insignificante – trabalho de editor, a assistia sentada no sofá da sala, olhando distante pela janela, como a divisar uma despedida anunciada.

Enfim, não aguentando mais a tortura da indiferença e da desatenção, conversou com ela em prantos de morte. Podia partir! Levasse com ela o seu coração, o seu mundo, nada mais importava. Estava ferido, melhor não vê-la nunca mais. Ela, talvez surpresa com o inesperado desfecho, nada falou. E assim se deu o fim de mais uma, entre tantas, histórias de eterno amor.

Meses depois, Ninguém cruzava a calçada da mesma loja em que encontrara a sua amada. Difícil olhar para o prédio e não se recordar sofrido desse dia. Contudo, sobressaltou-se ao ver, expostos na vitrina da loja, ela ao lado de um outro homem. Estava resplandecente como sempre, agora vestida de branco, com véu e grinalda. O sorriso era o mesmo que ela o oferecia todas as manhãs, só que então ela o dividia com aquele outro, um novo amor, de cravo na lapela, também inerte, segurando levemente os dedos da mão enluvada. Parecia feliz, insuportavelmente feliz, como nunca, e isso bastava para ele, que aprendera da forma mais cruel: o verdadeiro amor pede renúncia e desesperança, mesmo que doa... e muito. Foi-se. E até hoje, maldito pelo amor, sangrando de saudades e ciúmes, Ninguém é triste.




 

domingo, 23 de outubro de 2022

"Falso Messias", de Raymundo Netto para O POVO

 


Há mais de 2 mil anos, uma sentença impactaria definitivamente no destino da humanidade. Ali, encontrávamos dois prisioneiros: Jesus de Nazaré e Barrabás.

Existia uma tradição, pelo menos é o que diz o Novo Testamento – e apenas lá –, de se libertar um detento durante a Páscoa judaica. Barrabás era bastante conhecido pelo povo judeu, e estava preso e condenado à morte por ter participado de um movimento rebelde que culminou na morte, talvez, de um ou mais soldados romanos.

O governador romano Pôncio Pilatos, ao que tudo indica, entre os dois, tencionava libertar o preso Jesus, pois não via motivos justos para a sua condenação, contudo, os eloquentes sacerdotes – que já o haviam espancado durante extenso interrogatório – se manifestaram a favor do outro, o Barrabás, convencendo a multidão, o “povo de Deus”, que optasse por ele, e mais: que assassinasse Jesus!

Influenciada pelos seus sacerdotes, a multidão, por aclamação, concedeu a liberdade a Barrabás e exigiu a morte do segundo. Pilatos, surpreso e receoso de uma revolta ali, lavou as mãos e o libertou, prendendo Jesus novamente, torturando-o, e, por fim, o crucificando, como assim os sacerdotes e o povo – de forma alguma comovidos com aquela tragédia e tomados por ódio e indignação – desejou.

Essa história nos é repetida, por diversos meios, desde o berço. Nos apresentam um Jesus lourinho, de olhos azulíssimos – um europeu em pleno Oriente Médio –, uma imagem construída para o símbolo do amor. Da mesma forma, outra imagem, na cruz, a coroa de espinhos encerrada em sua cabeça ensanguentada, o olhar piedoso voltado para cima, “Eles não sabem o que fazem”, ou incompreensivo: “Pai, por que me abandonaste?”

Eu, sinceramente, não tenho dúvidas de que, fosse hoje, a depender de muitos de seus milhares de seguidores, a história se repetiria, talvez em vez da cruz, executado a tiros e, sendo ele pobre, provavelmente negro, mais um caso sem solução, entre tantos.

É desolador assistir a hipocrisia em massa de um povo que se diz “do bem”, de Deus, a se vangloriar de sua família, de sua tradição e costumes, quando na realidade estimulam os preconceitos, os individualismos, o desprezo e a indiferença pelos direitos humanos e pelos diferentes (negros, índios, LGBTQIA+, religiosos de outras crenças e culturas, portadores de necessidades especiais, vulneráveis de forma geral), que exploram trabalhadores e pobres, imersos na ambição e ganância, propagando uma cultura do ódio e da mentira – aliás, não tem noção nem discernimento de reconhecer uma mentira ou delírio, o que justifica tantos e tantos crimes e genocídios historicamente efetivados em nome da fé e desse Deus.

Hoje, por exemplo, nos é possível entender como o Nazismo de Hitler, que resultou na morte de mais de cinco milhões de judeus, se propagou pela Alemanha com apoio de seu povo “adorador” de Deus e da Pátria. Parece-me que suas orações não são poderosas o suficiente para iluminar as suas mentes, libertá-los dos grilhões da ignorância, como alucinados, repetindo ritos vazios e maculando o nome do amor, restrito a suas naves e templos, sem capacidade de crítica e/ou reflexão, em um total analfabetismo político (e até funcional). Daí, em nome de Deus, massacram física e psicologicamente a muitos que, secretamente, odeiam em seus corações divinais, negando-lhes a chance de existência e de paz. A desatenção completa ao segundo maior mandamento (MATEUS, 22), “Ame o seu próximo como a si mesmo” – apenas ele valeria a Bíblia inteira –, é o maior fracasso de todo o Cristianismo.

Aliás, eu sempre tive uma certeza: se o Diabo de fato existir, o lugar mais estratégico para sua atuação seria dentro das igrejas. Aqueles que se assemelhariam a ele, reconheceriam a sua voz, e tomariam em vão o nome do Senhor, o seu Deus, para pregar o pior mal (aquele que se passa por bem) e ludibriar os mais ingênuos, os mais frágeis.

Fica a advertência: “[...] o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.” (ÊXODO 20). Tragicamente, assistimos a falsos messias que, por meio de falsos profetas, insuflam falsos cristãos, promotores das piores iniquidades.

Assim, verdadeiros cristãos, se atentem às ações e aos seus frutos – conforme os valores de Cristo – e não apenas às palavras superficiais ditas por línguas perversas de serpentes.





I Ceará em Quadrinhos (25.10, Auditório Central Unifor)

No dia 25 de outubro, terça-feira, das 13 às 20h30, no auditório da Biblioteca Central da Unifor, acontecerá o I Ceará em Quadrinhos, uma ação do Centro de Ciências Jurídicas da Unifor, em parceria com o grupo de pesquisa “Justiça em Quadrinhos” e a Gibiteca Municipal de Fortaleza.

O objetivo do evento é “apresentar os principais intelectuais, quadrinistas, roteiristas e professores que elaboram, pesquisam e desenvolvem metodologias de aprendizagens sobre a nona arte.”

A programação (a seguir), que é totalmente gratuita, traz palestras com profissionais que trabalham com o tema no estado.

A Fundação Demócrito Rocha estará presente na participação do seu gerente editorial e de projetos, Raymundo Netto, e também pela apresentação de encerramento do documentário A História das HQs no Ceará (FDR, 2017), cuja coordenação, roteiro e pesquisa também é dele.

O primeiro tema do encontro, trata da lei que define os quadrinhos cearenses, ou seja, a lei que cria o Dia Estadual dos Quadrinhos no Ceará, 28 de setembro, escolhida em homenagem ao cartunista e quadrinista cearense Luiz Sá, proposta esta defendida pelo deputado estadual Renato Roseno.

PROGRAMAÇÃO

·        13h: Abertura - Daniel Camurça e Max Krichanã | Palestra “A Lei que define os Quadrinhos cearenses” | Palestrante: Eduardo Pereira (Diretor da Gibiteca Municipal de Fortaleza)

·        14h: Palestra “Importância dos Quadrinhos para o Ceará” | Palestrante: Raymundo Netto (Fundação Demócrito Rocha)

·        15h: Palestra “A Oficina de Quadrinhos da Universidade Federal do Ceará (UFC)” | Palestrante Ricardo Jorge (Jornalismo UFC)

·        16h: Palestra “Narrativas da Padaria Espiritual” | Palestrante: Charles Ribeiro (Literatura UFC)

·        17h: Palestra “História em Quadrinhos vão à Universidade” | Palestrante: Daniel Camurça Correia (Direito Unifor)

·        18h: Palestra “Quadrinhos: da Persona à Personagem” | Palestrante: Blenda Furtado - Estúdio Daniel Brandão

·        19h: Audiovisual - A história das HQs no Ceará (documentário da FDR) | Encerramento 

SERVIÇO

I Ceará em Quadrinhos
Data: 25 de outubro de 2022
Horário: das 13h às 20h30
Local: Auditório da Biblioteca Central







 

sábado, 22 de outubro de 2022

"Fogoió", de Pedro Salgueiro para O POVO


Talvez o único país seguro, mesmo com seus percalços e incertezas, suas areias movediças e logros, seja o país da infância; lá estão os pilares expostos com suas fissuras e ferrugens, também as represas longamente solidificadas por mil camadas de areias e fungos: um dia dali sairá, não tenho dúvidas, a última resistência... E, quando os abismos forem aos poucos se abrindo à volta, é de lá que tentaremos retirar a pouca (ou muita, sabe-se lá) proteção que nos amortecerá dos medos.

Quando menino havia um amiguinho oculto, não desses imaginados por crianças solitárias (digo logo para que não acreditem em metáforas), que nos seguia bobo e solitário por todos os lugares: não ia pra escola, talvez para sua família não fosse urgente obrigá-lo, também não seguia pro roçado ajudar nas tarefas que sobravam pros miúdos; apenas sabíamos que não aceitava de ninguém ordens nem obrigações, só fazia o que lhe desse na cabeça.

Simplesmente sumia por aí, embora soubéssemos que ele estivesse sempre por perto, de espreita, muito mais próximos de nós do que imaginávamos: na hora do recreio se esforçava para pegar as bolas que escapavam por cima do muro, logo jogando de volta; quando dávamos fé lá estava sua cabeça alourada (dizíamos “fogoió” na época) num canto do muro, como quisesse participar de nossas brincadeiras, mas não tivesse coragem.

Aos sábados todas as famílias da vizinhança iam para a missa e feira na cidade, e como morávamos na roça arrumávamos quaisquer meios que nos pudessem levar, uns iam de animais, que eram amarrados num enorme benjamim ao lado da praça da igreja, raros de bicicletas, um carro de linha com carroceria e escadinha carregava principalmente os de idade avançada; já a leva de meninos do vilarejo corria estradas, descobrindo toda sorte de novidade e brincadeiras que nos entretecem da poeira e pedras da estrada.

Sabíamos que o “de ovelha” nos seguia por dentro dos matos, vezes o víamos feito aparição fosforescente: ele nos pregava sustos de um lado e logo nos jogava pedras do outro, parecia se divertir com seu anonimato, embora estivesse muito mais presente em nossas vidas do que imaginávamos: era um de nós, um qualquer como todos e parecia mesmo nosso irmão; só que um irmão de todos do vilarejo, porque bisbilhotava a todos com igual intensidade: se demorasse a aparecer era motivo logo, entre nós, de queixas.

Apenas os adultos o tinham como atrasado da cabeça, para a meninada era apenas um de nós, invisível, mas muito presente: corríamos com ele, nós pelas veredas e caminhos e ele por dentro dos matos, ria de nós e nós dele: trocávamos pedradas e carinhos e quantas vezes não me ajudou em tarefas pesadas, em meu desespero saia pra chorar um pouco atrás de casa, quando voltava estava tudo bem feito e eu fingia não ver suas pegadas que sumiam na beira do mato.

A maioria de nós veio estudar na cidade grande para nunca mais voltar pro sítio, nas poucas vezes que retornei já preferia os namoros, as festas, o futebol com os adultos: soube apenas que ele nunca deixou de ser criança, que mesmo já barbado e grandalhão continuou suas inocentes traquinagens – afirmam que recusou bebidas, cigarros e correu com medo de uma menina que lhe demonstrou simpatia.

Eu mesmo continuei a vê-lo em muitas páginas de Zé Lins, Graciliano, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa, mesmo nuns livros estrangeiros: eram ele puro, “imperialzinho” como se dizia na roça: até que ultimamente tenho notado em mim, já velho e alquebrado, muitos traços do fogoió: sua estranha mania de andar nas sombras, sempre anônimo, de percorrer caminhos que margeiam as vias principais – os quartos sempre escuros, as ruas sombrias têm me atraído, e até já atiro pedras nos contentes que seguem aos risos esquecidos de mim.




 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

"Consuelo", de Raymundo Netto para O POVO


Deoclécio se casara com Consuelo inda muito jovem. Tinham filhos e contavam mais de 45 anos em comum, o que sempre parecia impressioná-lo: “Quem diria...”

Na cozinha, por horas, detinha a atenção naquela mulher a varrer, passar o pano, catar feijão e cortar cebolas. Ansiava pela hora em que reencontraria nela a mocinha de olhar brilhante que vira pela primeira vez na pracinha a semear gargalhada inconfundível, a propor ingênuo futuro de amores e a beijá-lo demorosamente como se o mundo fosse acabar ali, naquele instante. Ao contrário, então, ela sorria quase nunca, pouco se expressava, chegava ao ponto de parecer não ter nenhum querer ou esperança na vida. Se o ouvia? Não sabia. O rosto, geralmente sisudo, era sulcado de rugas. O corpo, frio e flácido. Olhava para ela e via a sua mãe. Pensava: “Como tocar em minha mãe?”

Consuelo, também com o tempo, recusava apetites. Quando de muita insistência, se dava a qualquer coisa, muito pouca e tímida, quase ausente, numa friúra de má atuação. O desejo trocado por frustração e impotência. Uma desgraça seguida de boa noite.

A fome e a longa jornada de rejeição abriu portas para um inesperado caso. Deoclécio sabia: “A amante não era metade da Consuelo de sua lembrança, mas o fazia homem de novo, achamado em paixão e ardor.”

Naturalmente, os arranjos se avolumaram e foi difícil manter a discrição: a filha o encontrara ao telefone público diante do bar. A outra, no carro parado em quarteirão escuro. O filho ouviu da vizinha que “parecia” ter visto seu pai com outro alguém num calçadão de praia. As filhas nunca, mas o filho o abordou. Ambos envergonhados, sem jeito, se encaravam: “Você é muito novo para entender.” “Eu não quero entender nada. E a minha mãe, como fica?” Olhavam para Consuelo sentada na sala e alheia a tudo. Apenas duas coisas lhe pareciam fazer algum sentido: a missa e a novela.

Deoclécio continuou vendo a amante, entretanto, o conflito o corroía. Não permitia que ela falasse de Consuelo, uma santa! Nem de longe criticar aqueles filhos. Ela silenciava, mas se impacientava diante daquela imprevista insegurança.

Um dia, a notícia: Consuelo morreu! “Foi o câncer”. Em meio ao sofrimento e à culpa, ainda ouviu da caçula: “Pai, você conseguiu. Agora está livre para sem-vergonhice!” Os outros filhos silenciaram. Nada mais importava agora.

Deoclécio quedou-se em cacos. Chorava a soluçar, feito menino. Esforçava-se, mas não conseguia se lembrar da última vez que conversaram nem sobre o quê. Morria com Consuelo a sua melhor porção.

Deitaram os anos. O homem envelhecera tudo o que podia na vida. A amante desaparecera há tempo. Porém, um dia, no bar, a encontrou agarrada a outro, chamando pelo mesmo apelido de cama que outrora lhe pertencera. Fitava-a e pensava como pôde: “Tão sem graça aquela...”

Voltou para casa escura e vazia. Com a ponta dos dedos acompanhava o desfile de porta-retratos a relembrá-lo da irreparabilidade de uma vida, o desencontro, o desamor, a insuportável saudade daquilo que foram e tiveram.

Daí, um fulminante silêncio tomou conta de seu peito, ao ouvir uma alegre gargalhada lhe chegar daquela cozinha:

“Consuelo? É você, meu amor?”

 

Publicado originalmente em Quando o Amor é de Graça! (EDD, 2019). Se tiver interesse em adquirir, pode fazê-lo pelo WhatsApp (85) 99183.8515




 

domingo, 2 de outubro de 2022

"Laika: caroço de Sputnik", de Raymundo Netto para O POVO


Há mais de 60 anos, na onda de Guerra Fria, o satélite soviético Sputnik I marcaria o início da corrida espacial, deixando a potência estadunidense impotente diante da incalculada e atroz humilhação. Não bastasse, um mês depois, novamente a U.R.S.S. promoveria o cazaque lançamento ao espaço de um novo satélite, o Sputnik II. A novidade maior seria que a bordo deste estaria acomodado o primeiro ser vivo a orbitar a Terra. Para o orgulho feminino, e por um restritivo detalhe anatômico, o ser não seria “ele”, mas “ela”, a cadela Laika, de apenas 3 anos. Ou seja, ela não falava, porém, já latia.

Na época, dada como morta em circunstâncias que iriam além das divisas atmosféricas e, portanto, da jurisprudência mundial, o destino da heroína e mártir socialista se tornou motivo de diversas conjecturas e teorias. Eu, no entanto, não acredito em nenhuma delas e explico o porquê.

Há alguns anos, fotografando as ruínas ferruginosas do mercado da carne da Aerolândia – hoje completamente restaurado –, assisti a uma cena insólita: parecia um cão descendo de paraquedas. Seria possível? Seguindo meu instinto de jornalista diplomado em Ministério, corri até a base aérea para saber o que era aquilo.

No descampado, a vi sobre as patas, mangas arregaçadas, a recolher as longas linhas de náilon e o velame. Apresentou-se: era ela mesma, a Laika, em pessoa... ou melhor, em cachorro. Incrível. E todos pensando que ela, há tempos, teria virado “hot dog”!

Latindo fluentemente em português, não demorou a demonstrar a garganta seca e a perguntar, numa sinceridade quase gentílica, “onde poderia encontrar vodka”. Ofereci-me a levá-la ao Benfica. Não bebo. Então, quando me pedem por álcool, ou levo para a farmácia ou ao Benfica.

No caminho, por meio de fórmulas complicadas, que fingi entender para não parecer mais burro, a pequena vira-lata – insistia na tese de que pertencia a uma linhagem pouco convencional de husky siberiano, mas... – me explicava: devido ao tempo relativo, ela, que, teoricamente, deveria ter mais de 60 anos, gozava de uma jovialidade impressionante. Falou também existir uma Sociedade Sideral Protetora de Animais e que foram alguns de seus integrantes que a mantiveram viva quando a equipe russa a largou de mão... Ouvindo tudo aquilo, eu que desconfiava, agora tinha a absoluta certeza: “as vodcas do Benfica não prestam!”

Contou-me mais. Com tempo de sobra, além de encher o bucho com gelatina russa, leu de trás para frente obras de  Фёдор Миха́йлович Достое́вский e de Анто́н Па́влович Че́хов, “gênios”, sendo agora também uma contista: “Aliás, a nossa literatura é a melhor do mundo”. Pior é que é: Gogol, Tólstoi, Pushkin, Maiakoviski...       

Assim, escreveu também diversos livros. Alguns teriam feito bruto sucesso em Fobos, uma das luas de Marte, que, historicamente, vivia em conflito com o planeta vermelho.

Nostálgica, a cãosmonauta falava de seu exílio, da saudade das noites de lua em Moscou, da boêmia em São Petersburgo, até chegar às alucinações da experiência da proximidade com a morte e do seu encontro com Deus, num arrependimento legítimo de um Raskólnikov: Estive, praticamente, nos braços Dele, mais do que qualquer outro ser... mais até do que o Papa!”

Diante de outras divagações e da tediosa mansidão canina, que percebia ir mais longe do que se foi, arrisquei a obviedade: “Desculpe-me, Kaka, mas a pergunta é inevitável: a Terra é mesmo azul?”

Sorrindo com graça e humildade, lambeu o dorso de minha mão e perguntou: “Ora, Raymundo, você esquece que os cães enxergam em preto e branco?”

 

Publicado em Quando o Amor é de Graça! (EDD, 2019)