segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Entrevista COMPLETA de Miguel Araújo com Raymundo Netto sobre a Coleção NOVA Terra Bárbara


ENTREVISTA PARA MIGUEL ARAÚJO PARA

O CADERNO “VIDA& ARTE” DO JORNAL O POVO

EM VIRTUDE DO LANÇAMENTO DA COLEÇÃO NOVA TERRA BÁRBARA

(06.10.2024)

 

1. EM PRIMEIRO LUGAR, GOSTARIA DE SABER O CONTEXTO DO LANÇAMENTO DESSA NOVA TERRA BÁRBARA. COM QUE PROPÓSITO SURGIU ESSE PROJETO?

Em 2025, a Coleção Terra Bárbara completa 25 anos de sua primeira edição, na época, concepção e coordenação de Lira Neto. A Coleção Nova Terra Bárbara surgiu com o propósito de ser uma edição comemorativa desses 25 anos, dando continuidade ao objetivo da coleção, que é reconhecer, valorizar e promover a diversidade cultural, definida por meio de linguagens artísticas, múltiplas identidades e expressões culturais, democratizando o acesso ao conhecimento e reconhecimentos de personalidades cearenses – nascidas no Ceará ou que, mesmo nascidas em outros estados, tiveram no Ceará o seu campo maior de atuação e/ou que aqui deixaram seu maior legado – nos mais diversos âmbitos e/ou linguagens artísticas, como: literatura, dança, teatro, música, artes visuais, política, ciência, arte, cultura, religião, economia etc.

“Terra Bárbara” é uma homenagem do Lira Neto, editor das EDR na época, ao jornalista e escritor Jáder de Carvalho – sendo dele um dos primeiros cinco perfis publicados em 18 de maio de 2000 –, em menção ao seu homônimo poema que em seus versos nos diz: “Na minha terra,/ as estradas são tortuosas e tristes/ como o destino de seu povo errante

 

2. QUAIS SÃO AS DIFERENÇAS OBSERVADAS NESTA NOVA COLEÇÃO EM RELAÇÃO À ANTERIOR?

Em minha apresentação da Coleção, escrevi que a sua grande novidade, ao nos referirmos a um produto editorial brasileiro, talvez seja a sua continuação, mesmo decorridas mais de duas décadas.

A diferença maior aqui se dá na concepção do projeto gráfico, em seu formato, ainda pocket (de bolso), contudo, acreditamos, mais elegante, e na inserção de subtítulos à obra, ampliando o apelo e atrativo ao(à) biografado(a).

Tentamos até orientar algumas mudanças no conceito da própria formulação de texto, mas considerando a liberdade de escrita e de método de cada autor(a), deixamos livres essa produção, logicamente, conduzindo durante o processo de edição e em acordo com os(as) autores(as) algumas dessas mudanças.

 

3. QUAIS SÃO OS DESTAQUES DESTA NOVA COLEÇÃO EM SUA ANÁLISE?

São 10 os novos títulos da Coleção:

·       Narcélio Limaverde (Natercia Rocha)

·       Adísia Sá (Luiza Helena Amorim)

·       Henriqueta Galeno (Natercia Rocha)

·       Juvenal Galeno (Raymundo Netto)

·       Alba Valdez (Keyle Sâmara de Souza)

·       Emília Freitas (Alcilene Cavalcante)

·       José Alcides Pinto (Carlos Vazconcelos)

·       Suzana de Alencar Guimarães (Carmen Débora Lopes Barbosa)

·       Gerardo Mello Mourão (Rodrigo Marques) e

·       Francisco José de Abreu Matos (Mary Anne Medeiros Bandeira)

 

Quando da concepção dos títulos da nova Coleção, fiz questão de assegurar um número equitativo entre homens e mulheres biografados(as), o que fizemos. De acréscimo, desta vez não intencionalmente, o número de biógrafas superou o número de biógrafos: 7 mulheres e 3 homens.

Todos os títulos se referem a novos(as) biografados(as), embora conhecendo a Coleção, acredito que alguns dos mais de 60 perfis biográficos publicados até hoje poderiam e mereciam, sim, um novo olhar, uma revisão da atualidade e até por outros(as) biógrafos(as).

Adísia Sá, a única biografada ainda viva, já teve uma biografia publicada pela própria autora, a jornalista Luiza Helena Amorim, mas desta vez, segundo a autora, traz um novo olhar sobre a história de Adísia, “um novo relacionamento com as fontes históricas, com os fatos, com os modos de contar uma vida”.

Estreia nessa fila, Narcélio Limaverde, o grande homem do rádio, em seu primeiro perfil biográfico, de autoria de Natercia Rocha. Narcélio, em janeiro de 2025, completará 3 anos de sua passagem.

É também de autoria de Natercia o perfil de Henriqueta Galeno, uma das grandes novidades da Coleção, saindo de seu papel de guardiã do pai para o de feminista e grande promotora da literatura e da cultura cearense na criação e na resistência na manutenção da Casa de Juvenal Galeno, equipamento cultural vinculado à Secult-CE, a meu ver, o mais legítimo centro cultural do Ceará.

Emília Freitas, de autoria de Alcilene Cavalcante, com o subtítulo “a rainha sem rosto”, é outra inserção obrigatória nessa coleção. Ela que é autora de A Rainha do Ignoto (1899), primeiro romance fantástico brasileiro, atualmente estudada nacionalmente por diversos(as) pesquisadores(as), mas que até hoje ninguém conseguiu sequer uma imagem da autora.

Gerardo Mello Mourão, cearense pouco conhecido pelos(as) leitores(as) cearenses, mas que chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel, vem pelas mãos de Rodrigo Marques, em uma biografia bem ao estilo “romance”.

O “poeta maldito” José Alcides Pinto chega merecidamente na Coleção por meio de Carlos Vazconcelos, que nos apresenta esse que é sem dúvida um dos mais prestigiados e valorosos nomes da nossa literatura contemporânea.

O perfil de Francisco José de Abreu Matos, o criador do projeto “Farmácias Vivas”,  grande cientista e botânico brasileiro, que se vivo fosse estaria em 2024 completando seu Centenário, é escrito por Mary Anne Bandeira.

Susana de Alencar Guimarães teve sua biografia lançada de forma independente por sua sobrinha-neta Carmem Débora Barbosa. Desta vez inclusa na Coleção NOVA Terra Bárbara, merecidamente, por sua história estar vinculada diretamente a Demócrito Rocha e ao jornal O POVO. Ela, a quem Rachel de Queiroz chamava de “madrinha”, embora tivessem praticamente a mesma idade, participou ativamente na revista Ceará Ilustrado, no suplemento Maracajá (única mulher a figurar no retrato do “grupo Maracajá”, que reunia os modernistas cearenses, em 1931) e dos primeiros anos do jornal O POVO, fosse como escritora (cronista, poetisa) ou como crítica literária, de cinema e das artes plásticas.

Alba Valdez é outra personagem feminina que, por meio de Keyle Sâmara Ferreira de Souza, não poderia mais ficar de fora da Coleção. A escritora foi a primeira mulher a ingressar na Academia Cearense de Letras, sendo membro também do Instituto do Ceará e fundadora da Liga Feminista Cearense.

Um personagem que inaugura quase tudo que conhecemos na literatura produzida no Ceará é Juvenal Galeno, o que nos faz estranhar que, em 25 anos, não tenha sido ainda motivo de nenhum perfil biográfico da Coleção. Virá desta vez, escrito por mim.

 

4. VOCÊ ATUA COMO EDITOR E TAMBÉM COMO BIÓGRAFO. QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS DESAFIOS DE LIDAR COM ESSAS FRENTES?

O trabalho do editor é quase sempre ingrato. Editar seja o que for é colocar-se na condição de juiz, é incorporar a tomada de decisão, de escolhas. Isso, editar é escolher. Um bom editor pode, naturalmente em consenso com o(a) autor(a), dar luz ao texto, trabalhar graficamente para realçá-lo na obra, torná-lo uma leitura agradável, sedutora. Para isso é preciso ter sensibilidade, afinidade com esse “bicho-livro”, aproximar-se da intenção do(a) autor e do conceito da Coleção que, por si só, tem a difícil tarefa de cair no gosto de um público heterogêneo, de faixas etárias distintas, de graus de instrução distintos. O livro tem que ser saboroso de ler e deve ter o poder de reter nosso(a) leitor(a), e isso não é missão apenas de quem escreve, mas de quem o edita.

 

5. QUAIS SÃO OS DESAFIOS RELACIONADOS À ESCRITA BIOGRÁFICA E QUAIS OS CUIDADOS NECESSÁRIOS?

Um dos maiores desafios da escrita biográfica é manter a objetividade, o olhar crítico e não se deixar sucumbir à heroicização da personagem biografada (nem a sua vilanização), principalmente quando se conviveu muito de perto ou se tem grau de parentesco ou amizade com ela. E não vou dizer que nessa Coleção não tenha acontecido isso em maior ou menor intensidade: aconteceu também. Aproximar-se do outro(a), revivê-lo, adentrar um universo, a princípio desconhecido, para compreendê-lo pode mexer com a cabeça das pessoas. Claro, não é possível entender a realidade da personagem sem nos aproximarmos do seu contexto social e histórico, pois corremos o risco de nos iludirmos com estereótipos, ideias e imagens distorcidas de seu tempo até pelo(a) próprio(a) autor(a). Risco maior é o de usar da ficção para preencher lacunas, o que também não é incomum no mercado editorial de biografias. Aliás, muitas dessas são as que mais agradam ao gosto popular.

É preciso ter um pouco de empatia com a personagem, mas quando se há um alto grau de identificação, é grande a chance de se tornar parcial demais.

A vigília de um biógrafo passa por duas fases importantes de sua construção: a da apuração (busca por fontes históricas confiáveis) e a da sua escrita. E nessa primeira fase estamos cientes de que é muito real a chance de não encontrar material suficiente para alcançar a personagem em todas as suas nuances, o que pode levar a especulações e suposições. Conforme a sua presença, algumas ainda podem ser bem-vindas para provocar um futuro estudo, uma análise a partir do conjunto documental, mas outras podem simplesmente desvirtuar a verdade pelo simples pretexto de “defendê-la”, “protegê-la”.

Outras vezes, encontramos durante o processo de apuração, histórias e dados fornecidos por conhecidos intelectuais, não necessariamente bons biógrafos, que não têm comprometimento algum com a realidade, porém, sendo há anos replicados erroneamente. O(A) autor(a) tem que ter condições e repertório suficientes para refutar essas informações “daninhas”.

Em alguns títulos da nossa Coleção, estimulamos que os(as) biógrafos(as) apresentassem ao(às) leitores(as) as divergências e contradições encontradas durante a sua escrita para que eles(as) próprios(as) pudessem construir seus questionamentos e interpretações a respeito.

Para escrever biografias faz-se mister saber que elas serão sempre limitadas por fatores vários. No caso da Coleção NOVA Terra Bárbara, não temos a pretensão da plenitude, até por que nos propomos apenas a desenvolver perfis biográficos, ou seja, queremos, sim, atrair nossos(as) leitores(as) para conhecer esses nomes, saber a respeito daquele(a) personagem, sentir desejo de ler suas obras, conhecer seus legados, compreender o seu tempo e espaço.

E, naturalmente, temos ciência de que, conforme novas evidências, como registros e documentos que podem aflorar de algum lugar inesperado, alguns pontos da história dessas personagens poderão ser elucidados e/ou acrescidos, o que nos faz ter a feliz certeza de que nenhuma biografia é definitiva!

 


 

"História de Não se Dar Passo", de Raymundo Netto para POVO


Moral da História: a vida é o exercício do perder!

Essa fábula ao inverso, nada mais é do que a minha tese de pós-torturado da faculdade da vida, na qual nem pedi a inscrição, mas onde tenho cadeiras obrigatórias desde o primeiro tapa, e onde jurei: até a morte hei de viver!

Pois sim, que não acreditem em mim, mas é mesmo a vida tão querida, entre as tantas coisas que desaprendi, um exercício de perdas! Desde a nascença, nada nos é tão certo quanto a perda, cosida, pontilhadamente, até de um dia perder a própria vida. Vai-se infância, saúde, amores, amigos, cabelos e, dolorosamente, os dentes. Tudo se vai e, acreditem pelamordedeus, rapidamente num cadinho.

Nesses meus quase sessenta anos, já perdi tanta coisa, deixei tanto para trás, nem vale a pena o sofrer por isso. Ciente da prática de perdas, tenho desapegado franciscanamente, exercitado ao máximo, a ponto de, às vezes, ficar me rindo da ausência do peso das tantas coisas que não tenho. Sempre disse: Posso perder tudo, menos as pessoas. E as tenho perdido mesmo assim, aqui e ali, sem jeito.

Por que é charmoso e chama a atenção, vez ou outra grito a todo pulmão: “Desisto!”, mas continuo insistindo nas mesmas burradas a perguntar-me por que as coisas não me hão de nunca dar certo.

Chego a ter dó de mim, um dó em si tão grande de fazer choro, não fora eu um nordestino, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e nascido embaixo de fogos de São Pedro. É quando me lembro da passagem literária, essa de Queiroz, d’Os Maias, em seu último capítulo, quando Carlos e o João da Ega, em uma conversa descontraída de meio da rua, conceituam os românticos de “indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...” e resumem: “não vale a pena viver!” Explicam inda mais: “Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na Terra, porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.” Aconselham: “Não saia deste passinho lento, prudente, correto, seguro, que é o único que se deve ter na vida.”

Os dois fanfarrões estavam convictos da descoberta da fórmula do mais seguro viver: “não fazer um esforço, nem correr com ânsia para coisa alguma... Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...”

Foi quando avistaram, ao longe, uma carruagem. Atrasados que estavam, entreolharam-se e “os dois amigos romperam a CORRER desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia”.

E é assim, meus amigos, que corremos quando temos que correr, pois a vida não espera, mas das vezes temos que parar um pouco e apenas olhar o movimento das ruas, encantar-nos com as pessoas que nunca víamos chegar, ouvir histórias demorosas com amigos, arriscar novos pratos, novos sons, tomar banho de chuva e de sol, nunca dizer “nunca” nem “sempre”, pensar menos no passado e no futuro, viver mais o presente, ganhar o mundo, não pentear sempre os cabelos, nem fazer sempre a barba — trocar a cueca sempre é bom —, mas acima de tudo isso, fazer as pazes com a gente mesmo, não nos cobrarmos tanto e dar-nos a pequena chance de não nos perdermos, a não ser de amor.