“Só pode estar roubando, quem mais faria questão de ser síndico?” Ele faria: o Sebastião. Desde criança, quando aquela tia chata lhe puxou a bochecha e lascou a pergunta clichê: “O que o Tiãozinho da titia vai ser quando crescer, hein, hein?”, ele jogou de lado a chupeta e respondeu franzindo a testa: “Sínico!”
A família toda voltou-se para o
rebento, imaginou mil coisas, mas a mãe, recebedora da língua de fogo de pentecostes
que lhe dá proficiência no idioma Bebês, traduziu com tranquilidade e surpresa:
“Ele quis dizer síndico... mas o porquê eu não sei. Síndico?”
Para uma coleguinha mais tarde, em um
papo entusiasmado de adolescente, Bastião confessava: “Não vejo a hora de ser
síndico.” Esfregava as mãos com apetite e até babava quando acariciava ali os
seus anseios: “o líder maior de um condomínio!”. A menininha sardenta, com sua tola
incompreensão, apertava o indicador na testa e dizia: “Mas, Tião, ninguém quer
ser síndico...” O rapaz olhou para a moça em uma superioridade hostil, riu com
o canto da boca e contestou: “Não é querer, mas poder. Ser síndico é para os
escolhidos. Se não entende isso, não me serve como esposa.” É claro que depois
dessa a garota lhe deu as costas e ele nunca mais a viu.
Ao final do ensino médio, Tião, que se
debruçava eternamente nas quatro operações, foi eleito em uma assembleia do
prédio onde morava com sua família. Seria síndico, oficialmente, quite com suas
obrigações condominiais. Nos próximos anos, jamais perderia o posto. Começara
como voluntário, sem remuneração, mas devido à eficiência quase sacerdótica agora
estava contratado.
Não parava em seu apartamento, a não
ser para refeições e à noite para dormir, claro, se não faltasse luz ou água, se
o motor da bomba ou do portão elétrico não queimasse, se viesse o porteiro, se o
elevador não travasse, não houvesse eventos no Salão de Festas, briga de
família nos corredores ou alguém com som às alturas depois das 22h...
Resumindo, quase não dormia, mas às 6h estava de pé, próximo à guarita da
portaria, cumprimentando e desejando bons-dias a todas e a todos.
Seu orgulho maior era um molho de
incontáveis chaves coloridas que carregava para cima e para baixo, tilintando e
anunciando a passagem do “manda-chuva” do condomínio, ao mesmo tempo que pesava-lhe
o cós da calça, deixando à vista o rego das nádegas.
Por falta de um santo especialista, era
devoto de são Pedro, o dos porteiros, e, cria que, por extensão, dos síndicos. Com
ele pendurado em uma correntinha no pescoço, passava o dia entrando e saindo
dos apartamentos quando convidado, o que acontecia com frequência, para ajudar
as senhoras donas da casa, as filhas dessas donas ou suas diaristas nos
assuntos mais banais, como trocar uma lâmpada, observar uma privada vazando, colocar
um pesado garrafão de água sobre a pia, segurar um cesto, empurrar sofás.
Ele, prestativo, tinha tempo para tudo,
inclusive para tomar um café e ouvir confissões daquelas pessoas solitárias.
Um dia, anunciou-se um incêndio em um
dos apartamentos. Um bem grande. O porteiro interfonou a todos: “Evacuar!
Evacuar”!
Tião bateu à porta dos condôminos da
brigada de incêndio: ninguém! Foram os primeiros a chegar à calçada.
Rapidamente a fumaça e o fogo se espalharam
por todo canto. Não se sabe como, nem ele acreditava, mas as mangueiras não
ejetavam água e os extintores não davam vencimento.
Súbito, ouvia gritos desesperados,
corria aos andares em brasas, com labaredas que escorriam até dos forros de gesso, e descia
com aqueles moradores. Descia, mas iria voltar, poderia ter outros. Pedia que
subissem com ele para ajudar. Ninguém subia: “É louco?”.
Os sprinklers estouravam um a um nos
andares, porém, era tarde, o edifício era mesmo que ver um quadro de Pompeia. Mesmo
assim, como um capitão deve afundar com seu navio, Tião não arredaria o pé
dali.
Quando os bombeiros finalmente chegaram,
encontraram, em meio ao ambiente úmido e esfumaçado, apenas destroços
carbonizados do prédio e de seu maior guardião, reconhecido somente pelo molho
de chaves a luzir à luz de lanternas tardias.