O historiador e professor da Universidade
Estadual do Rio Grande do Norte, Francijési
Firmino, lança, na próxima quinta-feira, 28, às 19h, o livro Alegorias da Maldição: a escrita fantástica
de José Alcides Pinto e o Ceará (1960-80), pelas Edições Demócrito Rocha,
na Livraria Cultura, a partir das 19 horas.
Na ocasião, um bate-papo entre o autor e
o editor-adjunto da EDR, Raymundo Netto,
no auditório da livraria, antecipa a noite de autógrafos.
O trabalho de pesquisa do historiador
Francijési Firmino mergulha nos elementos fantásticos com os quais José Alcides Pinto traduz as tensões
entre o moderno e tradicional no Ceará. Resultado do seu trabalho de mestrado,
o autor chegou ainda a conviver com José Alcides Pinto. Dos encontros, o
pesquisador guarda o impacto que JAP teve sobre ele.
O livro do historiador tem trânsito em
várias áreas do conhecimento, entre elas a Literatura e a Filosofia. A seguir, uma breve entrevista com o autor de
Alegorias da Maldição com Regina Ribeiro,
jornalista e editora das Edições Demócrito Rocha.
Regina
Ribeiro - Logo na
apresentação do seu livro, o historiador Durval Muniz defende que a literatura
está “sempre povoada de fantasmas” e que ela – a Literatura - trata das
fantasias de uma época, de uma sociedade, de uma cultura. Como você acredita
ter lidado com os fantasmas que povoam a literatura de José Alcides Pinto?
Francijési
Firmino - Assumindo sua
literatura como fantástica, ele – Durval - quer valorizar o texto como criação,
como imaginação. É desse modo que foi um grande estranhamento na Universidade,
o fato de eu querer produzir um trabalho em História partindo e tendo como
principal documento a literatura fantástica, em outras palavras, um documento
que assume de saída não querer contar as coisas “tal como aconteceram”, nem
mesmo em termos de possibilidade, “como poderiam ter acontecido”. O próprio
José Alcides mostrava seu estranhamento com relação a minha proposta, mesmo já
existindo outro trabalho, em perspectiva bem diferente, do historiador Nuno
Gonçalves que pesquisou, como eu, os livros da Trilogia
da Maldição. Para mim, e foi o que defendi no livro, a literatura
fantástica de José Alcides Pinto emerge na justaposição de um conjunto de
referências estéticas com sua leitura das modernidades e modernizações que
começaram a ser propaladas em meados da década de 1950, no Ceará. A Trilogia da Maldição seria uma
tradução fantástica desses processos em curso, seria uma escrita embrenhada nas
tensões entre as novidades de sua época e o envelhecimento de signos que até
então pareciam dizer o que era o Ceará. José Alcides gostava de
fazer uma identidade que parecia caducar sobre o Ceará retornar em sua
literatura por meio do delírio, ou seja, apontava que aquilo sobre o qual
escreveu não estava mais no plano do visível, são fantasmas que o perseguem,
defuntos aos quais ele dá um último fôlego para que sobrevivam ao menos no
espaço de seu texto.
RR - Como você se tornou leitor de José Alcides e como se deu o
interesse para pesquisar sua obra?
FF - Como a maioria dos leitores cearenses que conhecem algo da
obra de José Alcides, eu também comecei pelo segundo livro da Trilogia da Maldição, “Os Verdes Abutres
da Colina”, ainda na adolescência. Eu tinha entre 16 e 17 anos quando li
esse livro, o que já faz mais de uma década. Na graduação em História, no momento
de escolha do tema para o trabalho monográfico, não tenho muita clareza sobre
as motivações que me levaram a pesquisar a Trilogia da Maldição, somente que a narrativa fantástica me exerce
grande fascínio. Hoje, observo que a pesquisa sobre questões que
fogem a noção de verossimilhança, em sua acepção mais ortodoxa, é urgente,
afinal, vivemos um momento em que o debate multicultural se encontra cada vez
mais ávido, trazendo a baile um conjunto de elementos que antes foram
classificados como meros delírios de populações “incivilizadas”. Além disso, o
fantástico é um interesse contemporâneo, vide os filmes que fazem muito sucesso
de bilheteria e os livros que estão nas listas dos mais vendidos. É necessário
discutir esse fenômeno. E é necessário ainda ressaltar que a chave de leitura
normalmente usada para a compreensão desses registros fílmicos e literários
atuais, unicamente como modo de “re-encantamento do mundo”, é no mínimo
inocente. O fantástico tem dimensões político-sociais sobre as quais precisamos
refletir, não é somente um meio de entretenimento, ou modo de dar um tom mágico
a vidas descoloridas, está para além disso. Significa uma reorganização dos
nossos códigos da realidade, do nosso modo inclusive de produzir a verdade e
aceitá-la. Deparamo-nos cada vez mais com grupos sociais que não se
preocupam tanto com os comuns suportes da verdade, como a ciência, a tradição e
a memória, isso é perceptível religiosa, artística e mercadologicamente. Talvez
compreender as lógicas e razões que parecem produzidas na mais absoluta
aleatoriedade seja um dos desafios que o pesquisador em ciências sociais venha
a cada dia se defrontar com maior intensidade e, nesse caminho, a literatura
fantástica é um elemento ao qual precisamos voltar nossas atenções.
RR - Você chegou conviver um pouco com o escritor. Quais as
principais impressões que você construiu dele?
FF - Essa foi a melhor parte na feitura do
trabalho e, também, uma das mais problemáticas quando foi necessário dar um formato
final do texto. José Alcides é/foi absurdamente, resguardando a ambiguidade da
palavra, fascinante, tanto como pessoa, quanto em sua obra. Deveria ter
prestado atenção aos cuidados que teve Paulo de Tarso, o Pardal, quando
escreveu seu livro sobre José Alcides, em me afastar do autor para tentar não
me contaminar com as versões interpretativas dele sobre si. Num primeiro
momento de escrita, me vi profundamente confuso entre o que José Alcides falava
sobre os seus textos e as exigências de um trabalho acadêmico. Foi
um doloroso desprendimento o que tive de, aos poucos, constituir para tentar
pensar o trabalho. Esse processo foi se tornando mais fácil, quando,
rememorando nossas conversas, acabei percebendo que José Alcides foi uma das
personalidades mais plásticas que eu já conheci, que pensava e repensava, dizia
e desdizia inúmeras vezes coisas sobre si e sobre a sua obra. José Alcides
parecia esconder um coletivo dentro de si, era muitos e, ao mesmo tempo,
nenhum, um ator de si, como gosto de pensar no terceiro capítulo do livro, que
escrevi já depois de ter defendido a dissertação de mestrado, em 2008.
RR - Você trabalha neste livro com a hipótese de José Alcides ter
construído o fantástico na literatura desenvolvida no Ceará. Quais os elementos
do fantástico na literatura de José Alcides Pinto? Que diálogo ele faz com o
fantástico da literatura tradicional?
FF - É difícil enumerar quais são os
elementos fantásticos na obra de José Alcides, pois, ao que parece, uma das grandes
características desse modo de escrita têm sido a aleatoriedade. Por exemplo,
José Alcides mistura no texto sua aldeia natal, no interior do Ceará, Alto dos
Angicos de São Francisco do Estreito, com as histórias da Antiguidade Clássica
etc. Acredito que Nuno Gonçalves estava certo ao pensar que a grande questão de
José Alcides tenha sido a história, no sentido da transitoriedade da vida e das
coisas. É da certeza da morte e da crença na condição mesquinha do humano, que
José Alcides retira o fundamento de seu fantástico: nós não teríamos meios para
alcançar a verdade das coisas, tudo que faríamos seria fruto da ilusão, seria
delírio, seria fantástico. Em outros pontos, contudo, ele trama diálogos claros
com as temáticas que se convencionaram na literatura sobre o Nordeste: o
coronel, o místico, o louco, a natureza, entre outros. É nesse limiar entre
elementos regulares nos discursos sobre o Nordeste e a descrença na
possibilidade de um verdadeiro que se produz o fantástico de sua literatura.
RR - Apesar do livro Alegorias da Maldição ser o
resultado de um trabalho acadêmico, é visível a linguagem que foge do
academicismo e pode ser lida quase como literatura, o que facilita – e anima -
o trabalho do leitor. Você fez seu trabalho já pensando nessa leitura para não
estudiosos de literatura ou história?
FF - Desde que vi o texto final do meu trabalho, tive o medo de ser
excessivamente hermético, de difícil compreensão até mesmo para historiadores e
críticos literários. A forma da escrita deriva muito do estilo e, até mesmo, da
formação, tendo desde a graduação estudado o diálogo entre história e
literatura. Já ouvi historiadores reclamando que meu texto tem fortes elementos
filosóficos e literários, já ouvi pessoas com formação em letras falando da
minha, às vezes, excessiva preocupação com os contextos. Então parece que
realmente estou numa zona de difícil definição. Ainda, contudo, me reconheço um
historiador, meio herético, devo confessar. Já é bem aceito na disciplina
história uma escrita mais metafórica, que deixe de lado o preciosismo
conceitual, que nos trabalhos acadêmicos produzia uma narrativa que muito se
aproximava de um estilo tratadístico. Minha preocupação, como atualmente se
pensa na pesquisa em história, foi que os conceitos funcionassem para
compreender o objeto de pesquisa, por isso, eles aparecem misturados com a
fonte, no caso, os livros de José Alcides, os jornais etc. Talvez seja isso que
faça parecer um texto com poucos “academicismos”. Fico lisonjeado com seu
comentário.
RR - Outro ponto importante do teu
trabalho é o entrecruzamento de disciplinas, que você transpõe de forma
elegante e tranquila. Quais as áreas de interesse que o livro Alegorias da Maldição abrange?
FF - A literatura fantástica ainda é pouco
discutida pela história. Desse modo, para compreendê-la tive de tecer intensos
diálogos, além da história, com a teoria literária e a filosofia – está última,
especialmente por meio de Walter Benjamin –, um pouco com a linguística e a
psicanálise. Além das disciplinas, acredito que o trabalho possa servir, de
algum modo, para compreender uma arte que se organiza entre os fins dos anos de
1950, de caráter alegórico, que não teve mais a pretensão de representar as
coisas tal como elas seriam, mas de produzir um jogo criativo que faz a
linguagem vacilar em sua capacidade de dizer as coisas, de uma geração que
tornou a linguagem a sua grande questão nas artes.
RR - Você trata no seu trabalho das
tensões vividas pelo Ceará e que foram matéria-prima para o fazer literário de
José Alcides Pinto. Na sua opinião, qual a maior ou principal contribuição que
o escritor oferece para uma leitura do Ceará e do Brasil em meados do século
XX.
FF- Não sei se consigo pensar em termos de
contribuição. No livro, assumo uma posição ambivalente ante a obra de José
Alcides. Por um lado, tendo a concordar com ele de que o Ceará não tem uma
identidade fixa, que aquilo que se chamou de autêntico e natural, foi uma
convenção estabelecida, em grande medida, pela literatura e outras formas
discursivas. E aqui, aponto para uma dívida intelectual com o trabalho e as
indicações do historiador Durval Muniz Albuquerque Júnior, que inclusive
prefacia o livro. Por outro lado, tendo a discordar de José Alcides
quando ele leva essas considerações a um extremo, ao ponto de afirmar a
impossibilidade do saber pelo humano. Essa é uma postura muito
presente na literatura alcidiana, que, acredito eu, é produzida em meio as suas
leituras do barroco e, estranhamente, de Albert Camus, que nunca defendeu isso.
Percebo esse modo de pensar como problemático à medida que não concebe a
possibilidade de se construir sentidos para a vida, que não sejam moral, religioso,
ou somente natural. Fico ponderando como uma pessoa, exaustivamente criativa,
como ele, não concebia em sua obra a importância da criação, mesmo afirmando
constantemente que essa era a única possibilidade do sentido. Perceber que não
há uma essência das coisas, a consciência da condição transitória dos entes,
não significa cair na armadilha de acreditar que, por isso, elas não mais
tenham valor, ou sentido – afinal de contas, o sentido e o valor são
atribuições humanas e não precisam de uma “essência” para existir. Penso esse
raciocínio alcidiano como perigoso, pois desautoriza toda preocupação ética. Às
vezes, fico refletindo se esse traço em sua obra não passava de uma tendência
que Alcides tinha para a polêmica, haja vista que sempre o percebi como muito
rígido em algumas posturas.
RR - A estética literária desse escritor influenciou de
alguma forma a literatura de outros escritores?
FF - Acredito que sim. E não só em relação
à Trilogia da Maldição. A
dimensão maldita, meio surrealista, alegórica e fescenina de José Alcides
interferiu fortemente na literatura cearense. É difícil medir isso em termos de
influência, pois essas referências podem ter se disseminado por diversas vias.
É inegável, contudo, que esses elementos têm se tornado profícuos na escrita de
romances e poemas.
RR - Como você analisa a leitura que é feita hoje da
obra de José Alcides Pinto tanto na prosa, como na poesia?
FF - José Alcides costumava me contar um
sem número de histórias sobre uma espécie de “escambo dos elogios” comum à crítica
literária cearense (acredito que não somente no Ceará!), com fortes
características impressionistas e, por vezes, meramente apologéticas. Há muitos
textos que realmente são assim, e não vou citar nomes. É interessante como
alguns desses críticos (que na maioria das vezes são também literatos), por seu
intenso contato e experiência com a literatura, tinham “sacadas” que me foram
muito importantes, num texto que claramente havia sido feito às pressas, com
dois ou três parágrafos. Já há sobre o autor trabalhos muito sérios, com rigor
de análise (e, por isso, não se entenda enrijecidos em método). Novamente,
não vou citar nomes, pois meu esquecimento, aqui, pode cometer pecados. De modo
geral, os livros que se detiveram unicamente a José Alcides são muito bons. Em
relação aos artigos, a minha triagem foi mais criteriosa, mas sem dúvidas
também há muita coisa boa. Concebo apenas que é necessário rediscutir o modo
como se pensou a biografia de José Alcides Pinto como um anexo da Trilogia da Maldição, acho que essa
fórmula interpretativa já deu o que tinha.