Publicado, originalmente em O POVO, em maio de 2009.
Tumulto
na rua. O camburão da polícia chegava em frente ao Palacete Ceará à praça do
Ferreira. Assalto? sequestro? Não, prenderam “O” poeta. Quem? Ora, quem... o
Mário Gomes, sabe, não?
Era
isso mesmo. Mário Gomes, aquele que conseguiu se estabelecer como poeta, mesmo
por quem não conhece ou lembra um único verso seu — ao contrário de outros que
lançam livros e livros, recebem títulos e medalhas, cobertura da alta imprensa
e ninguém admite a honraria —, o tipo popular-mor da nossa blond cidade, estava sendo preso. Motivo? Baixara as calças para
alguém que caçoara de seus trejeitos, de suas vestes, de sua existência. Ele
reagiu, a polícia chegou para pôr ordem e recolheu o “poeta das sarjetas” no para-choque
do camburão. Uma multidão de populares o acompanhou. Alguém se dirigiu ao oficial
e, como se existisse tal licença (imunidade?) poética, perguntou: “Ele é o Mário
Gomes, o poeta, o senhor não o conhece?” Uma senhora chora, outra resmunga:
“Deviam prender é bandido!” O povo se revolta, discute, os policiais pareciam
nervosos. O Mário, coitado, vestido como um Judas em Sábado de Aleluia, bodejava
alguma coisa incompreensível, sei lá o quê, balançava as mãos e fazia caretas,
tal qual um menino malino, “um enigma das letras, um amante das estrelas”. A barba
malfeita perseguia os cabelos ralos, o nariz torto separava indiferentes olhos
verdes a balançar os inchados tornozelos.
Aproximei-me
e perguntei o que acontecera. “Eu só queria lançar o meu livro (refere-se à
biografia) de novo”, retirou do bolso Mário
Gomes: poeta, santo e bandido, do Márcio Catunda, abriu e leu:
— O
meu legado, deixo ao querido povo cearense! — daí, treme, lacrimejam os olhos,
não gosta que o vejam assim, dá-me as costas, passa um lenço na vista, volta-se
quase que esfregando o livro nas minhas ventas e repete: — O meu legado deixo à
porra do povo cearense! — assisto à indignação, melancólico. Compreendo perfeitamente.
—
Pagamento de poeta, Raymundo, é tapa e pontapés! Só isso, fazer poesia aqui é
isso...
Um
rapaz ao lado me disse que ele comprara quase todos os exemplares de Sábado: estação de viver do Juarez
Leitão apenas para mostrar a sua foto aos passantes da praça e provar a todos
que ele não era qualquer um, não.
Tupy,
um cachorro velho, chegou apreensivo. Mário sorriu:
— Dentre
amigos encontrei cachorros; dentre cachorros encontrei amigos. Desculpe,
amiguinho, aderi à Fome Zero, tenho nada. — lamentou, retirando dos bolsos do
paletó pedaços de guardanapos, retalhos de versos.
Recordei
que há poucas semanas havia encontrado o poeta na praça. Estava mais mungangoso
que o normal. Paguei-lhe um pacote de biscoitos. Perguntou-me se eu tinha mesmo
quarenta anos, pois lera o meu livro — em certa ocasião o presenteei com um
exemplar — e estava certo de que, apesar da aparência, eu tinha pelo menos uns oitenta.
—
Raymundo, você escreveu um livro muito bom... é um grande literato que fala das
calçadas velhas... das calças das velhas... Ah, as calças das velhas estão
cheias de moscas! — riu.
— “Cadeiras
na calçada”, Mário. Deixe de invenção!
— Já
tem uns quinze anos que a gente não se vê, não é?
— Que
é isso, Mário, a gente se viu no ano passado, aniversário da Padaria
Espiritual, aqui mesmo na praça, lembra?
—
Padaria Espiritual? Padaria Espiritual? Não, acho que não... Eu nunca fiz parte
da Padaria, eu sou do Clube dos Poetas Cearenses.
Perguntei
pela “Turma do Escritório” e ele lamentou o abandono de alguns:
— Tem
um poetinha de araque, um retardado, que vez ou outra vem falar comigo. Diz que
é meu discípulo. O carinha quer ser eu, sem ter a coragem de ser eu. Queria ver
se ele aguentava viver na minha pele um dia. Aguenta não, é frouxo! Aguentar as
pauladas que eu aguento, só sendo Mário Gomes. “Subi num pé de cana pra colher
uvas. Chegou o homem das laranjas e disse, solta as goiabas, rapaz!”
Súbito,
sua face se transformou, correu e jogou o pacote de biscoitos num moleque que
lascara uma salva de palavrórios inapropriados:
— Se
manque, eu sou Mário Gomes, você é um otário! — voltando, anunciou:
— Depois
eu morro, viro nome de praça ou de rua e o povo vai falar de mim, sem lembrar
que eu vivia assim, que nem as calçadas velhas do seu livro...
Despertei
da lembrança quando o policial disse para não se preocupar. Iriam soltá-lo na
esquina do próximo quarteirão.
Olhei
para ele. Apesar do estado debilitado, ainda discursa com o vigor de um anarquista.
O povo cearense, naquele momento, o reconhecia e sabia que muitos de nós
passaremos, mas ele deverá ser lembrado por mais cinquenta ou cem anos. Mesmo
ali, com toda desenvoltura, gritava em seu “trono” improvisado: "A maioria esmagadora da cidade me conhece... sabe
quem é Mario Gomes! (...) muitos dos que se dizem artistas, antes me procuravam
e hoje fingem que não me vêem... A verdade
da vida é compreender a loucura do outro!"
Olhei
mais de perto e percebi que havia outros presos no camburão: Tostão, Chagas dos
Carneiros, Casaca de Urubu, José Levi, Tertuliano, Canoa Doida, Pilombeta, De
Rancho, Manezinho do Bispo, Burra Preta e tantos outros. Então, tive a certeza de
que o Mário não tinha sido preso, e sim, escolhido para viver a imortalidade
que só os doidos alcançam.
O
relógio da Coluna da Hora gemeu a breve passagem de seu tempo. 283 anos de
Fortaleza e eles ainda estão no meio de nós...
Mário Ferreira Gomes nasceu em Fortaleza em julho de 1947. Antes de assumir-se poeta e boêmio
convicto, foi professor do antigo curso de Admissão ao Ginásio, na escola
Albaniza Sarazate. Iniciou, sem concluir, o curso de Arte Dramática na Universidade
Federal do Ceará. No final da década de 1960 fez parte do Clube dos Poetas Cearenses, agremiação dirigida pelo Carneiro Portela
que se reunia na Casa de Juvenal Galeno.
Foi internado diversas vezes e conta suas mirabolantes fugas
dos tratamentos com choque elétrico. Tem diversos livros publicados, dentre
eles: Lamentos do
Ego, Emoção Poética, Terno de Poesia (com Alcides Pinto e Márcio Catunda) e Uma Violenta Orgia
Universal (antologia).