sexta-feira, 24 de novembro de 2023

"Eurrico ou Eugênio?", de Raymundo Netto para O POVO


Quem o visse chegar ali, caminhando a passos frouxos e profundos, teria a segura impressão de que estava a entregar o pescoço à forca. Mas não ele. Não o Eugênio.

Sabia-se lá, mas cruzava o extenso balcão do cartório numa tristura medonha, maior do que a de uma noite sem novela ou sem amor, o que viesse primeiro.

“O que o senhor deseja?”, arriscou uma balconista.

Vinha registrar um filho, mais um “último”, pois o mais velho dos três também o seria, assim como o segundo ou como este, e, provavelmente, o próximo.

Recebeu parabéns de um ou de outro circundante: “Um filho? Que graça: um filho!” O mais idoso tapou-lhe nas costas a benção recebida do Grande Pai Celestial. Porém ele nem nem. Tinha pressa. Registrar a criança e se mandar logo dali.

“Qual será o nome da criança, senhor?”

“Eurrico!”, foi o que respondeu. Assim, na bucha.

“Eurrico? O senhor tem certeza, senhor?”

Absoluta. Ele, o pai, era Eugênio, não queria isso para a criança, que o bichinho não tinha culpa. Culpa mesmo – enfatizava com o indicador erguido solene no ar – era da mãe. Ali, todos sabiam... sempre era da mãe!

A atendente, sem entender bulhufas daquele discurso, tentou contornar:

“Bem, o senhor não prefere, ao invés de... Eurrico, Eunício?”

Eunício? Deus o livrasse: “Que nome terrível! De jeito algum.”

Lembrava: “Eu... Gênio!” Trazia no peito franzino o orgulho de criança. Gostava de ler desde cedo. Inteligente e curioso. Um gênio de verdade, como sua mãe anunciava, enquanto o sol se punha, por cima do muro para a vizinhança. Seus pais nunca tiveram problema com ele. Nunca pediu nada demais. Tudo suficiente, até na respiração. Costume que carregou por toda a vida, numa humildade e modéstia – complementadas com a realidade do salário – de fazer vergonha.

“Quem se abaixa muito, mostra o fundo das calças”, dizia a sua avó, impressionada como ele não havia sido engolido pelo mundo, um monstro sedento de gente direita para arruinar. Mas Eugênio, porque ninguém o notara, vingou, cresceu, enamorou-se pela primeira mulher a olhar para sua testa rala e casou-se. Ademais, aquela mulher, provavelmente uma resignada, era bonita. Ninguém, nem a sua própria mãe, entendia como aquela moça jeitosinha dera cabimento ao sem graça do Eugênio que, claro, na sua inutilidade existencial e contagiosa, acabou por lhe enfear a vida e a figura.

Restava-lhe um emprego chinfrim, um ganho de nada, trabalho excessivo e o não reconhecimento, o que o deixava deveras arrasado nos poucos momentos de folga que tinha, nos quais passava horas e horas parado, feito estátua de ilustre desconhecido, assistindo à vida que passava em torno de si. Assim, pensava: de que adianta ser gênio? queria mesmo era ser rico. Eu... Rico! Encucado com isso, botou pra fora a entranha quando aquela estranha lhe perguntou: “Afinal, meu senhor, qual é o nome da criança?”

O nome? ... deixasse ver... Eurico. Seria esse: Eurico! Com dois “r” para não ter dúvida e ficar mais estiloso: “Eurrico!”

E Eurrico de quê?”, insistiu a moça se abanando.

“De merda, que é o sobrenome do pai, é que não vai ser...”




 

terça-feira, 7 de novembro de 2023

"Vida?", de Raymundo Netto para O POVO


“Esses sãos desígnios de Deus, e eu os aceito.” Essas foram as últimas palavras de minha mãe, deitada em uma maca hospitalar, antes de cerrar os olhos pela última vez, como se fosse apenas cair em sono profundo. Estava ali, toda arrumada, linda, para assistir a um culto do Dia dos Finados, quando o coração emudeceu. A equipe médica tentou trazê-la de volta e ela não quis. Todos nós saberíamos: ela não queria mais. Era o ano de 2016, e um dia propício para partir. Passaram-se sete anos, desde então, e ela continua viva.

Minha avó Alice, mãe de meu pai, ao contrário, turrona e contestadora, escolheu justamente essa data, o dia dos mortos, para nascer! Era bem dela... Próximo de sua morte, não queria ver ninguém. Permitia apenas a filha que residia e tomava conta dela. Fora ela, que ninguém a visse assim, em plena decadência de seu rumo à morte.

O seu filho descansaria quase dois anos após a passagem de minha mãe, no dia 25 de outubro de 2018. Queria curtir um pouco mais dessa vida e dessa terra que tanto amou. Tendo a sua filha caçula como cúmplice, caminhava no calçadão à beira-mar, ia à praia colocar os pés na areia e no mar, tomar sua água de coco, rever amigos – mesmo quando muitas vezes não se lembrava deles. Ela comprava suas roupas, o arrumava, o deixava bem cheiroso, e o levava a locais em que se tocava músicas de seu gosto e, quando possível, arriscava até dançar. Mas, diante do Alzheimer, que o deixava muitas vezes sem condições de apreciar tais coisas com a intensidade que gostava e queria, ele passou a pensar também na sua partida. Por vezes, falou às filhas: não contassem com ele para o aniversário de oitenta anos que planejavam para o ano seguinte, pois ele mesmo não iria. Claro, aquela festa foi cancelada. Mas festa boa de verdade era o meu pai.

Nunca tive medo da morte, mas quando penso nela, me vem a ideia de desperdício, de coisas que não fizemos, nem conseguiremos mais fazer. Chega um dia em que temos que escolher. O que é o mais importante para nós ou o que não gostaríamos, de jeito algum, de deixar de ter feito, escrito ou dito nesta vida. Outros velhos planos de “um dia...”, melhor talvez nem tentar. Passou.

Entretanto, a ideia da má velhice sempre é um incômodo íntimo. A perda crescente da memória, dos movimentos, da disposição, da utilidade e do próprio orgulho é lamentável. Durante anos, assisti a personalidades renomadas e festejadas, pessoas que aprendi a admirar na minha adolescência e juventude, definharem, serem esquecidas, confessarem as suas dores e a sua sensação de incompreensão daquele “outro mundo” que surgira e que nada mais tinha a ver com o “seu mundo”, aquele lugar seguro no qual cresceu, contribuiu e chegou a protagonizar.

Os familiares, pelo apego natural, desejam a eternidade para seus pais, muitas vezes por não entender que alguns estão vivos apenas porque não morreram. Parece óbvio, mas não é. Um dia, essas pessoas perdem as referências de toda uma vida. Os pais, irmãos, amigos, colegas continuamente cumprindo a sua travessia. Os seus programas de TV, ídolos, os autores e compositores preferidos, aqueles bares ou restaurantes onde encontrava seus amigos mais queridos, tudo, tudo desaparecendo com o “seu” mundo. Difícil não se perguntar o que resta para você, quando será a sua vez, o porquê de ainda estar aqui... Um vazio que se torna ainda pior com a coleção de “não possos” que os mais próximos lhe impõem “por amor”: não posso beber, fumar, comer aquele prato predileto bem salgado ou bem doce, sair sozinho... Os “não posso” são tão cruéis quanto os “não consigo”, cada vez mais frequentes, dia a dia, aumentando uma enfadonha lista de inutilidades e frustrações. Sim, a vida é o exercício de perder e a morte não assusta tanto àqueles cuja vida pode não ter mais sentido algum. Temos que aprender a viver, tanto quanto a morrer.