Ernesto mal chegou à praça e foi acolhido por Pedro num entusiasmo
delirante: “Cara, sabe quem marcou comigo aqui hoje? A Sandra! Acredita?”
Ernesto,
numa aparente indiferença, estranhou: “Pedro, você está lembrado que a
Sandra... morreu, né?”
Ernesto, Pedro
e Sandra eram na faculdade um trio inseparável. Entre os colegas, sempre à
margem daqueles afetos públicos, havia quem garantisse: os rapazes eram jurados
de paixão pela moça, e que, em meio à doce e até invejada amizade, travava-se uma
aguerrida disputa amorosa a resultar, a qualquer instante, em uma crise
dramática. Para isso, bastasse a moça se decidir por um ou por outro.
Sabia-se
que os três, além do grude na sala de aula, estudavam juntos, saíam para beber
e se divertir, viajavam, compartilhavam quartos – e até camas – de pousadas e
hotéis, numa obscenidade de querubins.
Na tão certa
e temida noite de formatura, algo aconteceu. Pedro e Ernesto estavam
intranquilos, reservados e separados. Criam: a partir de então a chave viraria
e cada um seguiria o seu caminho profissional e a sua própria vida. Sandra,
pelo contrário, estava exultante, distribuindo vigorosos sorrisos e olhares
para o futuro que se anunciava, confraternizando com todos os colegas e
misteriosamente dispensando a costumeira e exclusiva atenção à dupla.
Poucos
meses depois, veio a bomba: uma doença incurável, repentina e dolorosa tomou
conta de Sandra. A notícia se espalhou ligeira, os colegas a socorreram, chegaram
junto, choraram juntos, e ela, mesmo morta e recolhida no derradeiro leito na
lama, após uma noite quente e sem ar, esculturava a beleza risonha de um amor
quase virginal.
Ernesto, logo
à primeira notícia, abandonara tudo. Não saía de sua cabeceira por nada,
envolvendo-a em carinhos e mentiras esperançosas. Muitas vezes ela perguntava: “E
Pedro, onde está que não vem, aquele ingrato?” Nunca soube, mas Pedro sofria horrores.
Trancara-se no seu quarto, inconformado, a beber e a chorar noite e dia. Na
época, como fosse segredo, confessou a Ernesto o seu desmedido amor. Então,
numa simulada surpresa, o amigo sugeriu esquecê-la.
Pedro e
Ernesto se viram pela última vez no funeral de Sandra, e não se falaram nem ali
nem nunca mais. Até aquele dia, anos depois, quando Pedro o chamou para se
encontrarem naquela praça. Nela, Ernesto, muito delicadamente, o inquiria:
“Pedro, ela falou mesmo com você? Quando? Como?” Pedro o respondia com uma
certeza fulminante: “Ela me ligou, marcou aqui mesmo em nosso baobá. Lembra o
baobá?”
No jardim
da praça havia um baobá. Uma tarde, antes da formatura, embriagados,
ensombravam-se no baobá, quando Sandra sentenciou a amizade tão duradoura
quanto ele, estreitando em um abraço o choro doloroso de uma insuportável separação.
“Cadê o seu
celular, quero ver essa ligação”, insistiu Ernesto. Pedro procurou nos bolsos,
na mochila, não o encontrou. Colocou as mãos na cabeça, desesperado. Como
atendera o telefone em casa, devia tê-lo esquecido por lá: “Cara, a gente pode
até se desencontrar. Tenho que ir buscá-lo.” Ernesto, assistia com certa dor àquele
nervosismo: “Pedro, olha, não tem telefone... Não adianta, ela...” Pedro não o
escutava: “Faz assim, Ernesto: fica aqui, caso ela chegue. Não deixa ela ir
embora. Vou em casa pegar o celular, vou provar para você. Fica aí, não deixa
ela ir embora, volto já!”
De fato,
não tardaria nada e Pedro retornava agarrado ao seu celular. Mas estacou ao ver
um grande alarido em torno daquele baobá. Pessoas rodeavam o corpo
ensanguentado de um homem. Era Ernesto. Esperava a volta do amigo. Distraído,
no seu íntimo, queria crer nele. Daí surpreendido por um assaltante, reagiu,
sendo brutalmente apunhalado e tombando sobre as robustas raízes.
Pedro
quedou-se pasmo ao lado do amigo, quando ouviu o sinal de seu celular. Pegou o
aparelho e olhou o visor. Era mensagem de Sandra: “Perdoe-me, querido, sempre
amei Ernesto.” E ali, diante de todos, um homem choraria suas dores mais
profundas a esmurrar o cadáver indefeso e realizado de um morto.
Que trama bem engendrada. Muito bom. Tanto o fio da estória como o final, com a mensagem de Sandra. Parabéns!
ResponderExcluirMuito grato pela leitura, Malvinier. Eu gostei de fazer isso também. rsrsrs Abração.
ExcluirFantástico conto fantástico! Irresistível essa intriga entre amigos-e-amantes.
ResponderExcluir"Obscenidade de querubins" é coelho de cartola que só os magos da Literatura sabem tirar.
Muito obrigado, Tião. Gostei muito de contar essa história numa narrativa menos linear, de feedbacks. Li alguns contos assim e essas relações entre "amigos" é bem comum e sempre causam certa expectativa do público mais próximo.
ResponderExcluirAprecio demasiadamente a maneira como você escreve garoto,a leitura sempre me espanta, me assombra e o final sempre me surpreende.
ResponderExcluirAbraços de fã.
Muuuito obrigado pela gentileza das palavras e pela leitura. Queria saber o nome dessa fã. rsrs
ExcluirAdorei esse triângulo trágico-amoroso. Muito bom mesmo!!!
ResponderExcluirObrigado, Zelinha
ExcluirUm enredo maravilhoso e único.. simples...num espaço curto do tempo..petfeito
ResponderExcluirMuito obrigado, gente
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirvocê e essa esperteza do último ato, me passou tudo pela cabeça, mas brigar com o já defunto, foi tudo de inusitado. saudades que estava de suas crônicas. um abraço grande. parabéns!
ResponderExcluirLucirene, eu também sinto falta de escrevê-las. Pode crer. Agradeço demais a sua leitura de sempre e o retorno por aqui. Abração
ExcluirPedro perde duplamente Sandra. Uma história de amor e traição.
ResponderExcluirObrigado, Carlos (sei que é você, mas me aparece aqui como "desconhecido"). Grande abraço.
ExcluirMuito bem, Raymundo Netto. Que venham outros...
ResponderExcluirE que tenha bons leitores e leitoras. rsrsr Abraços.
ExcluirEita Neto, que conto porrêta! Um senhor nocaute como diria um velho argentino amigo nosso.
ResponderExcluirGrande abraço.
Gratíssimo, amigo Saraiva. Fico muito feliz. Muy gracias... rsrs
ExcluirSempre surpreendente, meu amigo!
ResponderExcluirVc é show!
Obrigado, Nice. O show só é completo pelo incentivo dos amigos e amigas.
ExcluirÔ,cabeça inteligente e criativa!Embarquei nas emoções do começo ao fim!Senti "sentimentos ".Que texto bem escrito!Parabéns, amigo!
ResponderExcluirMuuuito obrigado. Ô alegria... Abraço
ExcluirQuisera, moço Raymundo de tão vasto mundo, encontrar um comentário à altura do seu texto... mas ainda estou pasmo... admirado com sua maestria...
ResponderExcluirMoço Quinho, grato pela sua leitura e gentil (como de costume) retorno. Grande abraço.
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