terça-feira, 28 de fevereiro de 2023
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023
"Amante" (parte VI), de Raymundo Netto para O POVO
“Aconteceu durante a festa de formatura da escola”, descreveu
Vitória à amiga. “Enquanto todos estávamos muito felizes, mesmo diante da
tensão de um Vestibular, Ramon, naquela noite, eu sentia, estava demasiadamente
eufórico. Mas ele era bem assim mesmo, pensei... Quando deram início à dança
dos formandos, ele me abraçou e dançamos. Creio que ambos aguardávamos muito
aquele momento. Senti o mundo desaparecer à nossa volta, assim como o chão de
nossos pés. Ainda consigo lembrar-me da música [“A Whiter Shade of Pale”], da
sensação de ter o seu coração pulsando acelerado tão ao lado do meu. Nossos
dedos entrelaçados, o seu perfume de sempre e o olhar dele posto em mim. Acho
que essa é uma das coisas que mais me impressionavam e que eu amava nele: o
olhar. Eu tinha a impressão de que ninguém me via como ele. Para ele, eu era
realmente importante. Ele me fazia acreditar nisso: eu era importante.”
Silenciou como se a mergulhar naquela lembrança: “De repente, ele me tirou do
salão. No jardim, abraçou-me e nos beijamos. Então, ele tirou do bolso do
paletó uma caixa. Era, claro, uma aliança. Ali, tremendo e com aquele sorrisão
no rosto, me pedia em casamento. Vê se pode? Ele querendo enfiá-la em meu dedo
e eu dizendo que não era assim. Não havíamos conversado, não podíamos assumir
aquilo. Éramos jovens demais... ‘Minha família não vai aceitar’, eu disse, e
ele, como se decide ir à esquina, sugeriu: ‘Nós fugimos!’. ‘Você quer matar a
minha mãe?’ Sim, eu sei, foi bem infantil, mas nós éramos assim mesmo:
crianças. Disse que iria pensar... mas eu não queria pensar. Não, não. Estava
apavorada! Depois, durante as provas do Vestibular e no início de curso na
faculdade, consegui adiar esse papo. Vez por outra ele insistia, cobrava-me uma
decisão e, diante de sua falta, alegava eu não ter certeza de amá-lo. No
entanto, certeza mesmo eu tinha de querer me formar, concentrar-me na profissão
escolhida, ganhar o meu dinheiro, viajar, conhecer pessoas, tantas coisas... Já
Ramon queria casar logo e ter filhos. Moraríamos com a irmã dele no início,
arranjaria um trabalho qualquer enquanto concluía o seu curso... Eu não queria
nada disso. Foi quando conheci o Carlos. Como eu, estagiava na área, já reunia
economias, queria abraçar a futura profissão, curtia a vida e namorava sem
gerar expectativas. Acho que isso me atraiu. Não aguentava mais aquela pressão
do Ramon. Tinha que acabar com aquilo, mesmo que me doesse e o machucasse.
Pensava: ‘Se tiver que ser, um dia nos encontraremos novamente’, o que sabemos,
nunca aconteceu”.
Virgínia ouvira toda a história.
Levantou-se e, em despedida, abraçou a outra: “Vi, eu não conheci esse Ramon. O
homem que esteve comigo era infeliz, desesperançado, a ponto de sua tristeza
não caber nele. Pior: tinha de sobra para distribuir a quem tivesse coragem de
estar ao seu lado... como eu. Ele era incapaz de enxergar qualquer futuro.
Vivia apenas para remoer o passado, pois era lá, somente lá, onde ele poderia
encontrar você.”
Assim, impossível seria dormir naquela
noite. No dia seguinte, como em outros antes, bateria à porta da casa de Ramon
para mais uma excursão silenciosa ao seu encontro.
Jandira demorou mais do que o de
costume para atendê-la. Sua fisionomia também não era das melhores. Acostumada,
Vitória entrou e, quando abriu a porta, estarreceu: o quarto estava
completamente vazio! Voltou-se para a sala e ouviu de Jandira: “Eu tinha que
acabar com isso. É muito louco, é imoral. Você tem que deixá-lo descansar. Ele
está morto, criatura... morto! É tarde demais para ele... mas para você...
Esqueça. Pelo amor de Deus, esqueça.”
(A última parte em 15
dias)
sábado, 18 de fevereiro de 2023
"Literatura Cearense versus Brad Pitt", de Raymundo Netto
Noite de lançamento de livro. O secretário da Cultura fez-se
presente, assim como o responsável pelo equipamento cultural e o coordenador de
Literatura, além de diversos escritores, amigos e familiares do autor estreante,
colega de faculdade do secretário, de todo nervoso e satisfeito pela honraria aos
olhos das autoridades e personalidades ilustres do meio dito intelectual da província.
O
secretário abriu a solenidade esquivando-se do protocolo. Discorreu numa voz
frouxa, escorregado em sorrisos tímidos, sem abusar dos velhos jargões da veia
e dos excessos vocabulares e loas tão apreciados pelos panegiricais aspirantes
a estátuas, revelando a intimidade para com a “estrela” da noite, um grande e
enfatiotado desconhecido de todos, que naquele momento se ia por ali ralhando
em cochichos com a companheira que o convencera ao uso daquele terno, enquanto
nem o próprio secretário, visse ali, o fazia. Ela, no entanto — a mulher sempre
tem mais razão e se não tiver é melhor que tenha —, desdenhava batendo-lhe as
caspas dos ombros: “Errado está é ele! Como pode, um secretário... Não tem mulher
em casa, não, é?
As palmas
fluíram no primeiro engasgo do homem, garantindo o ponto final. O secretário, que
nem era candidato a nada, misturou-se à plateia, conhecesse um a um de seu ninguém,
estampando a carranca denteada às máquinas fotográficas de adolescentes e aos incômodos
celulares a deixar todo mundo com a mesma cara de borrão.
O seu
auxiliar, na esperança de receber ainda das sobras da ovação de seu antecessor,
pôs-se a repetir, noutras palavras, tudo dito antes sobre o amigo do
secretário, embora de forma mais vibrante, como sói um bajulador-mestre sabe
cumprir: era o autor pessoa querida, da melhor cepa, intelectual de primeira
linha, quiçá um novo Machado de Assis da Sociologia. Ao final, recebeu palmas
modestas, mas, o mais importante, o abraço acolhedor e compreensivo do seu secretário.
O
coordenador de Literatura foi mais cerimonioso, ao disputar a atenção do chefe que
precisou de ajuda para largar-se do grudento assessor quase a rasgar-lhe o
peito. Em posição solene, discorreu sobre a importância do livro — não daquele,
porque dali ninguém o lera — e do momento para a história cultural do estado. Com
um sorriso ao canto da boca remendou uma fala de meritória dúvida sobre termos
a primeira academia de letras do Brasil, encerrando assim completamente seu
repertório historiográfico, ao repetir isso ainda umas três vezes até concluir
com uma frase numa língua que ninguém reconheceu, menos entendeu, mas aplaudiu.
O autor “então-era-aquele”
foi convocado. Leu umas quatro laudas de seu improviso repleto de lembranças do
pai e da mãe, da professorinha da alfabetização, de louvor a Nossa Senhora e de
agradecimentos à mulher, companheira de tudo, maior crítica e incentivadora,
ali, ao lado, a esfregar o olhar úmido e a contrair os lábios em promessa de
beijo. Muita emoção!
Em ato
democrático, facultada foi a palavra, e, para desespero do público, na ânsia do
requentado coquetel, um dos participantes, outro desconhecido de todos, tomou o
microfone. Iria, sim, falar. O rapaz, jovem de nem trinta, apertava o nó da
gravata — usava jeans e botas (?) — e cumprimentou a todos em voz grave. O
motivo de estar ali era simplesmente aproveitar a ocasião para dar a boa nova:
era também (mais um) autor cearense. Escrevia desde a meninice e, agora,
finalmente, teria recebido o justo reconhecimento. Uma obra sua chegara aos
Estados Unidos. Um diretor famoso, o Coppola, comemorava. Escrevera já o
roteiro daquela joia tropical a ser filmada no melhor estilo Hollywoodiano,
aspiração de Oscar. De mais, já era certo, enfatizou, o contrato com o Brad
Pitt para o papel principal.
As palmas
admiradas tomaram conta da noite enciumando o secretário a também aplaudi-lo
desmotivadamente. Correram-lhe para cima, inclusive o opaco amigo do secretário
a oferecer-lhe, gratuitamente, exemplar com dedicatória especial do novo livro:
“Entregue ao sr. Copolla. Sou fã dele!”
Dias e
burburinhos depois, confirmada a suspeita: aquele rapaz era mesmo um maluco, um
doidivanas, um bronco delirante. Sequer sabia escrever o próprio nome. Foi
preso ao caminhar pelado, alienado de tudo e clamando por um tal “Brad”, no
calçadão da beira-mar.
Aloucado,
pode ser, mas que teve os tais privilegiados “quinze minutos de fama” em que conseguira
ele ser ouvido e aplaudido pelos dublês de autoridades e intelectuais da nossa
desprezada e legítima cultura cearense.
Acredite
se quiser...
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023
"B. de Paiva: um legado do talento e do afeto", por Rosemberg Cariry
Dentro
do despojado caixão, cercado por algumas pessoas queridas, filhos, netos,
irmãos e a querida e incansável Lurdinha – a companheira solidária e firme em
seu amor –, estava o corpo de B. de Paiva. Tudo me pareceu guardar uma
simplicidade comovente. Afora os filhos (Rafael e Carlos), alguns parentes,
amigos e fiéis companheiros.
Ali
estava, prestes a voltar ao pó de onde um dia veio, o corpo de um homem de
grande talento e generosidade, que fundou teatros e escolas de dramaturgia, e
das lides teatrais. Ali estava o homem que dirigiu universidades, que
administrou as mais importantes casas de espetáculos do país, que formou
companhias e fez movimentos, que juntou e disponibilizou um formidável acervo
sobre o teatro, as artes e a cultura brasileira, sempre aberto aos jovens
estudantes e pesquisadores. Ali estava um homem que atuou em centenas de peças
teatrais, novelas, recitais, leituras dramáticas, filmes e programas
radiofônicos e televisivos.
Ali
estava o ousado pioneiro, um dos que abriu portas no terreno hostil, afastou
pedras e espinhos (com as mãos e com o coração) para que fossem construídas as
avenidas mais largas.
Abracei
Lurdinha, abracei os filhos, abracei amigos e depois saí caminhando pela
cidade. Pensava, emocionado: se no pequeno caixão cabia o corpo do homem, o
extraordinário legado do artista e ativista B. de Paiva transbordava aquele
espaço e se afirmava maior do que o esquecimento, mesmo sabendo que a memória
nessa terra de sofrimento longo é por demais curta e, muitas vezes, já se esvai
em vida.
Na
tarde quente, soprou uma brisa suave que invadiu o bairro, estendeu-se por
sertões e mares, foi até o Rio de Janeiro, a São Paulo, Brasília e os mais
distantes lugares, onde B. de Paiva chegou para plantar a boa roça do seu
talento e oferecer colheitas dos seus melhores frutos, da sua arte e dos seus
sonhos.
Esse
homem era um guerreiro; sabia lutar, mas nunca lhe faltava o afeto e a
generosidade.
Obrigado
por tudo, mestre!
domingo, 12 de fevereiro de 2023
"Amante" (Parte V), de Raymundo Netto para O POVO
Desde que Jandira anunciou
a ela o inesperado namoro entre Ramon e Virgínia, Vitória se pôs a investigar o
paradeiro daquela que fora a sua melhor amiga e companheira dos tempos de infância
e adolescência no colégio.
Nas
reuniões anuais entre as colegas daquela instituição de formação católica –
elas, às vezes, nem tanto –, a ausência da divertida Virgínia era notada,
contudo, havia logo um breve silêncio seguido por uma mudança drástica de
assunto. A própria Vitória perguntara diversas vezes por “aquela danada”, mas
ninguém a respondia... e agora ela imaginava o porquê.
Conseguiu,
com muita insistência, o seu número de telefone. Ligou. Para Virgínia foi uma
surpresa atroz: Vitória a convidava para um encontro. Precisavam conversar.
Após a primeira ligação, quase maquinal, veio a segunda, a terceira, já com
sinais de irritação, depois a derradeira, até finalmente convencê-la.
Era
uma tarde de domingo. Após a costumeira missa, Vitória a encontrou em um banco
de uma significativa praça do passado, embaixo de uma árvore que um dia
chamaram de “nossa”. Embora não tivesse certeza do rumo que aquela conversa
tomaria, determinada, Vitória estava tranquila, ao contrário de Virgínia,
absolutamente incomodada.
Vitória
foi objetiva. Com a fala pausada, contou como soube da morte de Ramon, do seu
encontro com Jandira, e de um suposto namoro entre Ramon e ela: “Você nunca me
disse nada. Não me procurou. Nós éramos amigas. Por quê?”
Abalada
e com uma expressão emotiva, Virgínia, a princípio, relutou a externar toda
aquela memória doída e traumática, porém, talvez por ainda guardar em seu
íntimo alguma centelha daquela amizade antiga, aos poucos deixou transbordar tudo
aquilo que a machucava há tantos anos, coisas a que ela atribuía a sua atual
infelicidade e a sequência de pesadelos de sua existência. Para ela, Vitória
foi uma sombra que a perseguiu em tudo. Ela era a causa de tudo. Sim, ao
conhecer Ramon, egoísta, abandonou a amizade e desprezou, sem explicação, a sua
presença. Ela, Virgínia, assistiu ignorada àquele amor que ela não tinha e, nem
teria, pelo mesmo homem: “Como a mim, você também o rejeitou. Éramos, nós dois,
os usados e excluídos da sua vida à sua conveniência. Aproximei-me dele.
Entendia o que sentia. Tentei confortá-lo. Ele quis namorar e eu me entreguei, pensando
conseguir fazê-lo tão feliz quanto ele era com você. Não consegui.” Suspirou
profundamente, conteve a dor daquele insuportável fracasso e continuou: “Ele,
nem sei se tinha consciência disso, me chamava por seu nome, perguntava-me de
você, queria saber histórias suas. Insistia em sabê-las, mesmo quando eu não as
queria contar. Ah, que eu achava doentia essa fixação dele, mas, com pouco, percebi
ser ainda mais doentio eu me render a isso, fazer esse papel de sua dublê. ‘Gêmeas’...
era assim que nos chamavam, não era?”. Meneou a cabeça, baixando a testa por
sobre o punho: “Por quê? Deus, eu queria que desse certo, pois eu o amei... Mas
ele não. Ele sempre a amou. Só a você. Mesmo depois de tudo... Ah, que ódio eu
sentia de você, Vi. Quis que morresse, nos deixasse em paz! Pensava: o que essa
mulher tem nessa boca que o enfeitiçou assim? Você é uma bruxa. Lembra? Eu
sempre disse que você era uma bruxa.”
“Me
beija.”, disse Vitória subitamente. Pasma, Virgínia perguntou se ela estava
maluca. “Anda, me beija. Você não quer saber como eu enfeitiço as pessoas? Me
Beija. Ou não tem coragem?” Desafiada, Virgínia tomou seu rosto entre as mãos e
a beijou. Um beijo de almas, repleto de mágoas, mas também de saudades. Dois
corações frágeis, ali irmanados em incertezas e conflitos profundos. Depois, olhando
firme nos olhos tristes da outra, Virgínia manifestou um primeiro e ainda tímido
sorriso: “Não, não é lá essas coisas... Eca!” E esfregou a manga da blusa nos
lábios, estendendo uma gargalhada represada na juventude, compartilhada com
Vitória, naquele momento, com os olhos cheios d’água. Como meninas, abraçaram-se
e falaram por horas, sem parar. Vinham-lhes lembranças, dores, angústias, mas
também as alegrias e descobertas de uma vida inteira.
Anoitecia
e ainda podia-se ver aquelas mulheres de mãos dadas no banco, envolvidas num
halo de emoção, quando, em um instante, Vitória beijou o dorso da mão da amiga,
suspirou e a revelou: “Ele... Ramon... me pediu em casamento.”
(continua em 15 dias)