sábado, 30 de abril de 2011

"O Polígrafo Prolixo", crônica de Tércia Montenegro, para O POVO (27.4)

Aconteceu quando eu estava numa fotocopiadora, inocentemente esperando o material didático que tinha levado para imprimir. De repente, um ex-aluno se aproximou, acompanhado de um amigo que não demorou a se apresentar sob a definição de “escritor”. Ora, para quem gostava de palavras sobre o papel, esse rapaz era singularmente falante – em menos de três minutos, desfiou a própria bibliografia, que ia desde livros técnicos até grossos tomos de “ficção genuína”, conforme ele frisou.


Fiquei sufocada só de ouvir aquela lista. O sujeito era um polígrafo maníaco: escrevia romances, cartilhas, panfletos, sermões, poemas épicos e fesceninos, artigos acadêmicos, diários e e-mails. Arriscava-se também com contos, fábulas, rondós, provérbios, peças de teatro e haicais. Eu estava me sentindo tonta, mas ele continuava falando de seus planos para escrever reportagens, textos policiais, ensaios, abecedários e hagiografias polêmicas. Realmente, ele poderia destruir uma reserva florestal inteira; nenhum papel do mundo seria suficiente para saciar sua compulsão – e, mesmo sem querer, comecei a imaginá-lo dentro de um grande tonel de tinta, caso fosse possível derreter todas as palavras que um dia ele gastou através de canetas ou cartuchos de impressão. Aquilo daria litros e litros de uma substância gosmenta, e ele bem poderia mergulhar no resultado de tamanho desperdício...


Interrompi meu devaneio homicida para perguntar ao tal escritor se ele tinha como meta superar a produção de Simenon. Ele desconversou, com um sorriso amarelo: era evidente que nunca tinha ouvido falar no autor belga, um dos mais prolixos do mundo, com seus quinhentos títulos. Em vez de me responder, o rapaz achou por bem acrescentar que usava um “método de psicografia” para não perder tempo dormindo. Mesmo em descanso, entrava numa espécie de sonambulismo que (conforme suas palavras) era um fenômeno espiritual. Assim, escrevia na fase de sono REM, e costumava acordar com a cama cheia de páginas rabiscadas em letra convulsa, que depois davam um trabalho imenso para organizar.


O polígrafo tinha aberto o leque da cauda, e agora não havia força que pudesse fechá-lo. Eu estudava as possibilidades de fuga, calculando o tormento que ainda teria pela frente. Se ficasse, talvez pudesse desligar o meu botão auditivo, pondo-me a repetir, mentalmente, algumas lições de polonês... Creio que essa seria a única estratégia capaz de me salvar de um derrame naquela hora, mas felizmente as cópias que eu esperava ficaram prontas. Saí correndo da fotocopiadora, após ouvir o refrão apreciativo que o escritor aplicava ao seu mais recente opúsculo. Quando estava na esquina, escutei o seu grito: “Espere! Eu não lhe disse o meu nome!” Não pensei duas vezes e entrei no primeiro táxi que passava.


"Fronteira", conto de Pedro Salgueiro, para O POVO (27.4)


O vasto horizonte mirado com angústia: primeiro as sobrancelhas cerradas, a mão em pala; depois os óculos claros, vislumbrando ínfimos detalhes; mais além o binóculo rápido; e por fim a luneta de tripé apoiada no peitoril da janela. (A porta da frente travada, os galhos ressequidos sobre o muro.)


Em cima da mesa, o antigo manual de técnicas de fuga, de caminhos alternativos, de atalhos perfeitos. Aos seus pés a gasta bússola, mapas encardidos e rabiscados nos trópicos. A xícara de café esquecida; a bagana de cigarro inútil nas cinzas. (Quanto mais longe... — o país distante, um mundo imaginário, paisagens de televisão.)


Os olhos peritos não enxergam mais os pés sujos, as unhas compridas, o filete de baba maculando o colarinho, as baratas no canto escuro do quarto. No quintal o verde úmido dos musgos, o tronco seco da goiabeira, os cacos de telhas trocadas no último inverno.


Rangendo leve, a cadeira de balanço da companheira triste, também esquecida dos filhos distantes, a esperar eternamente pelo retorno das andorinhas, o cantar dos galos nos quintais vizinhos, rezando uma prece em silêncio, no mais absoluto silêncio...


Por último, cavou trincheiras no jardim e montou observatório no galho mais alto da ingazeira do quintal. Canto algum ficou descoberto de um possível ataque. Testou todos os alarmes, checou lunetas e binóculos, lustrou a velha espingarda. E nem se deu conta de que o adversário, zeloso de seus cuidados, se infiltrara há muito em sua guarda, já organizava junto com ele as mil situações de defesa, sussurrando em seu ouvido opiniões absurdas, desfocando lentes, cuspindo debochado no assoalho da sala enquanto ganhava a confiança de sua companhia. (Se não olhasse para tão longe já o teria visto, de sorriso maroto, destampando as panelas no fogão.)

"Nossa Alma de Índio", crônica de Ana Miranda, para O POVO (30.4)


Vez ou outra, me deparo com um relato antigo sobre nossos índios cearenses. Dia destes encontrei um capítulo em Yves d’Évreux sobre os tremembés, em 1613. Diz que eram velozes na corrida, e tão fortes que podiam derrubar um inimigo atirando-o ao chão como se fosse um animalzinho. De estatura meã, vagamundos, não faziam casas, moravam debaixo de abrigos ligeiros ou dormiam nas areias, preferindo sempre as planícies, para acompanhar tudo ao redor. Caçavam quando sentiam vontade, comiam mesmo era peixe, que flechavam na água. Levavam pouca bagagem, seus arcos e flechas, machados, cuias, cabaças, panelas de barro para cozinhar carne. Diz Évreux que os tremembés tinham o costume de todas as luas ficarem acordados uma noite fabricando machados, enquanto as mulheres dançavam, e as moças e os meninos à frente das aiupaues, seus abrigos leves, ao luar do crescente; os homens trabalhavam até ficarem perfeitos os machados, acreditando que com essas armas elaboradas eles nunca seriam vencidos. E outras curiosidades além...


Padre Vieira, em seus escritos instrumentais de 1655, nos fala dos tabajaras que viviam ali na Ibiapaba, “feras que se criavam e escondiam naquelas serras” de noites frias, águas excelentes. Chefiados por Taguaibunuçu, que significa diabo grande, viviam de mandioca, milho, alguns legumes, mas passavam muita fome; e sentiam “admiração e aplauso nas coisas novas”; assim como dá notícia de outros povos indígenas, os tocarijus, ganacés, juguaruanas, curutis, teremembés e “mais tapuios de guerra”... No livro do viajante inglês Henry Koster as mais belas páginas são as que ele dedica aos nossos índios. Essas leituras são viagens ao passado, uma convivência imaginária. Elementos fascinantes, muito interiores em nós.


Nossa alma é indígena, dá para ver por todo lado, a partir do cenário idílico das praias cheias de coqueiros, dos tufos espinhosos nas caatingas, dos casebres cobertos de palha, tudo lembra o índio ou o caboclo: o deleite em dormir na rede, a tapioca de manhãzinha, bem gostosa, a mais acolhedora hospitalidade, o costume de mangar dos outros, o gosto pela festa, os homens conversando de um lado, as mulheres do outro... Uma prazerosa indolência, o levar a vida como ela vai ditando, o nomadismo, deixar para trás as casas cheias de almas... Isso sem falar nos cabelos mais negros do que a asa da graúna, nos olhos puxados, e tantos traços de tantas diferentes tribos. A nossa grande figura mítica é Iracema, que foi brilhantemente configurada por Alencar, representando a mater de nosso país independente e, afinal, o nosso rosto brasileiro e cearense.


Mas conhecemos tão pouco nossos índios... Dizia Soares Moreno que eram 22 tribos no Ceará. Onde estão os icós? Onde os inhamuns? Onde os quixarás, jucás, areriús, caratiús, os quixelôs? Em 1863 a Assembleia Provincial declarou extinto o índio no Ceará, depois de muitas guerras, massacres, expulsões, escravização, humilhação. Hoje, dizem que restaram 12 tribos; a lista vai assim, de cabeça: os tremembés, os tabajaras, os anacés, os potiguaras, os calabaças, os cariris, pitaguaris, canindés, tapebas, os jenipapos-canindés aqui de Aquiraz... mesmo eu, tão interessada, não lembro todas. Vi umas subdivisões com nomes sugestivos. Os tabajaras podem ser tabajaras-da-maratoã, da-serra-das-melancias, de-ipueiras, de-poranga, do-olho-d’água-dos-canutos, da-grota-verde... e os tremembés, de-almofala, de-são-josé-e-buriti, do-córrego-joão-pereira, de-queimadas... O que eles perderam nestes séculos estão tentando relembrar, recriar; revivem danças antigas, músicas, rituais, como o torém, costumes, arte plumária, cestaria, cerâmica, algo de suas línguas mortas, e o fazem com a ajuda de indianistas, num movimento mundial de cuidados para com as etnias delicadas.


Sei que os índios são essenciais para nós, brasileiros, e ainda mais, para os cearenses e indo daqui para cima, rumo norte, cada vez mais importantes. É difícil entender em poucas palavras por que os índios, e todas as culturas específicas, são tão fundamentais, além de serem grande riqueza cultural e histórica num mundo que se iguala a cada dia e tudo o que é diferente adquire mais valor para nossa identidade. É algo assim como encontrarmos uma avó esquecida, e lhe fazermos perguntas, e a conhecermos melhor, tratarmos bem dela, aprendermos suas receitas, seus pontos de bordado, suas rendas, ouvirmos suas memórias, lendas, ela ter nossa atenção, casa, e uma vida digna; isso faz de nós pessoas melhores.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Programação Teatro da Praia para a Semana Santa!

Clique na imagem para ampliar!

VENHA COMEMORAR CONOSCO OS 15 ANOS DO TEATRO DA PRAIA

DE 20 A 24 DE ABRIL AS 20h00 - PREÇO ÚNICO R$ 5,00

AMIGO DO TEATRO DA PRAIA (CADASTRADO)

TEM "INGRESSO AMIGO" NA BILHETERIA E SÓ PAGA R$ 2.50.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Promoção de 15 anos de Teatro da Praia (IMPERDÍVEL)!

Cena de "Loucuras de Amor"


Vivas e Socorro ao Teatro da Praia!


Sou fã incondicional do artista, dramaturgo, produtor e militante cultural, o cearense de Pacajus, Carri Costa.


Observo, desde há muitos anos, o seu trabalho e o acompanho de perto, mesmo quando passamos tempos a rodo sem trocarmos sequer palavras de corredor.


Tive o privilégio de assistir, e levar meus amigos e familiares para também fazê-lo, sem medo de má indicação, suas peças, todas elas Tita & Nic 1 e 2, Albergue Broder Ceará, As Vizinhas, Quidânese: o Circu do seu Zé, Loucuras de Amor, e agora, a assistir, o farei domingo, Cacos de Família.


Sempre marcado pelo estilo jocoso, satírico (ele diria “fuleiro”) e pela legítima molequês cearense, Carri domina o palco com a sensibilidade de quem conhece seu povo e o seu ofício, desenvolvendo na medida certa essa coisa tão difícil que é a comédia (de nível), ou melhor, o teatro.


A sua Cia Cearense de Molecagem, única no Ceará em seu gênero, agora completa 15 anos, já debutando com ares de patrimônio em nosso cabedal de arte e cultura, mais ainda, de resistência, diante da dura prova de que se é possível fazer as coisas no Ceará, mesmo quando se tem quase a certeza de que ninguém está nem aí para isso.


Sempre atento às coisas do teatro, Carri “das veiz” nos acena a luz vermelha de “perigo” (ou socorro?) com a sua voz amolecada, porém, falando de “coisas engraçadas de não se rir” do teatro, tão mazelento quanto às demais linguagens que grassam por nossa terra e que somente quem as pratica sabe e conhece (e acredita...). Daí, admiro-lhe ainda mais pela coragem, pois bem sei, e ele também sabe, as oportunidades que perde — e as inimizades que recebe em troca — por revelar, por tratar de coisas que desagradam aos que não querem ver, ouvir e que nem não se preocupam com a nossa cultura, como ele bem o faz vestido inteiro de amor, ou de palhaço, se assim for preciso.


Outros, no seu lugar, privilegiam-se por silenciar, ou por puxar e polir o saco de outrem, indignos em sua medíocre individualidade de se dar bem, no hábito tão disseminado em nosso meio artístico da autopromoção predatório (“não importa apenas que eu me dê bem, é preciso que outros fracassem”).


Gente como o Carri é quem faz história, e o Teatro da Praia, aquele lugar mágico de confortáveis cadeiras de plástico e ambiente completamente refrescurado na José Avelino, 662, Praia de Iracema (próximo ao Dragão do Mar) é para mim tão importante quanto o vistoso Theatro José de Alencar, e já é tempo da nossa sociedade reconhecer e dar-lhe o devido valor. Quem sabe, Carri, não poderíamos fundar uma Associação de Amigos do Teatro da Praia? Já pensou nisso?


Pois bem, desde quarta, dia 20, até o domingo, dia 24 de abril, todas as peças do Carri (ler link a seguir de O POVO) serão reapresentadas, uma a uma, sempre às 20h, em comemoração aos 15 anos do Teatro. Para quem ficar em Fortaleza, garanto: não se tem melhor forma de garantir o sorriso espontâneo para o final da noite... e olhe que o ingresso é baratíssimo (R$ 5,00)... A dica foi dada!


E, como sempre diz o Carri, ao final de tudo: “Programe a televisão, adie o cinema e vá ao Teatro!” e “DIVULGA AÍ, VÁ LÁ... AJUUUDA!!!”


SERVIÇO

TEATRO DA PRAIA 15 ANOS
O quê: Encenação dos principais espetáculos, de hoje (20) a domingo (24)
Onde: Rua José Avelino, 662 – Praia de Iracema
Hora: Sempre às 20 horas.
Ingresso: R$ 5
Outras informações: 3021. 5420/8711. 1010 ou http:// teatrodapraia.blogspot.com



Link da matéria de O POVO sobre o Teatro da Praia:


http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2011/04/20/noticiavidaeartejornal,2130027/nem-parece-que-foi-ontem.shtml

"Bazar das Letras do SESC" apresenta Ana Maria Furtado Néo (26.4)

Clique na imagem para ampliar!

quarta-feira, 20 de abril de 2011

"Coisas Engraçadas de Não se Rir VII: Sexo Literário", crônica de Raymundo Netto para O POVO

Em uma roda de barzinho, dificilmente se encontra um homem sóbrio ou uma mulher que não se faça de bêbada.


Engolidos por tanto barulho e premidos por mesinhas em calçadas estreitas, amigas e amigos bebiam sem pressa a vaguear em temas diversos. Os homens, todos escritores, se não em futebóis, traziam a literatura, permitidas as digressões sobre a vida alheia. As mulheres, nenhuma escritora, quando não puxavam por sapatos, acessórios ou o filme do momento, enveredavam serenas pela seara, acreditem, do sexo.


No “Mundo Fêmeo” em que vivemos, os homens mantêm as formas tradicionais e historicamente falidas de praticar a sua extra-sexualidade — prática esta cuja cena final é a mala de roupas lançada pela esposa ao vento, onde se vê, de fora, a manga da camisa preferida acenando adeus para a ex-amada, cansada de fingir não ver as suas manias —, ao contrário, as mulheres, sensíveis e imaginosas, todos os dias renovam conceitos e os reinventam, a exercitá-los, como um comerciante, com um misto de atuação e de racionalidade.


Dentre os debates (embates?), minhas amigas esfregaram na cara, para o pasmo masculino, a figura antes desconhecida do famigerado “P.A.”. Mas o que seria tal coisa? Pois bem, o P.A. (“pênis amigo”) é o correspondente à amante masculina, a ímpia inimiga mortal da família, da moral e dos bons costumes e destruidora de lares (por vezes, já em cacos). Curiosamente, todo esse peso clássico atribuído à colega de gênero, não é outorgado ao seu igual do gênero oposto, tratado, aliás, com a mais sincera naturalidade. Assim, enquanto elas não perdoam as nossas amantes (“nossas”, modo de dizer), principalmente quando estas são-lhe jovens e magras, os seus, elas vêem como um “brinquedo”, assegurando, sem tremer-lhes a face, não ter nenhuma importância, pois usam-no apenis, digo, apenas, e afirmam, como condição essencial de uso, não ter sequer uma admiraçãozinha pela criatura que, após satisfeito o desejo — meramente físico, claro —, o enxotam como um cão (que somos). Pior: o infeliz ainda sai a sorrir, se achando, a perguntar se pode ligar de novo, carregando com ele, e dentro das calças, quiçá, o único motivo de orgulho.


Não estivéssemos suficientemente humilhados, decidiram elas fazer uma análise — precipitada, obviamente... — sobre a qualidade dos amantes letrados. E seguiram assim: O contista, um minimalista por gênero, seria um precoce. Isso, advertem, nada tem a ver com prodigiosa inteligência, mas com a surpreendente habilidade de dar por encerrada a “reunião” sem aviso prévio, e quando esta, ao menos, começou. O poeta seria aquele que se saía melhor na fama do que na cama. Dizem que ama as mulheres, todas elas, mas na hora do vamos ver, fica somente a dever, e, se duvidar, corre do batente, de súbito, a buscar no quarto algum resto de papel, um guardanapo que seja, para escrever, com os olhos marejados e a voz doce, a rima adequada: tocha, rocha, galocha... O romancista seria aquele que não resolve nem sai de cima, mesmo quando não se está acontecendo nada. Ele persevera, enrola, vai aqui e acolá e parece não ter pressa de chegar aos finalmentes. Uns, irritantes, segundo elas, têm o hábito de falar demais e terminar sempre com “... sabia?” Claro que elas sabem, mas não querem saber e terminam não sabendo mesmo! O ensaísta, o nome já diz tudo, muito sem jeito, perde-se em lucubrações desnecessárias, sendo capaz de passar a noite inteira a discorrer sobre o Kama Sutra — se duvidar em sânscrito —, alongando-se pela cultura védica e hindu até entupir-se em uísque e tombar em autogozo à cama, pegando na mão da entediada amante não amada, a dizer: “ah, que noite! que noite!” O cronista, disseram, por sua simplicidade, por não ter pressa e se ocupar de detalhes que geralmente os demais relevam, parecia-lhes o eleito “amante ideal”, o que nos aliviou da vergonha de final de noite e do incômodo indisfarçado de meus malamantes amigos, a quem dedico carinhosamente esta... CRÔNICA (graças a Deus)!


contato: raymundo.netto@uol.com.br

blogue AlmanaCULTURA: http://raymundo-netto.blogspot.com.br

domingo, 17 de abril de 2011

"Pindorama", de Raymundo Netto, em lembrança da invasão do Brasil


PINDORAMA

Que pesavam sobre as caravelas,

Escaras velhas,

Monótonos fados enfadados

Lusos emboabas mascates

Mascotes de Império

Em pústulas, postulantes de epístolas de apoderação

Poder Ação

E Morte.


Que desciam das caravelas

Fid-algas ervas daninhas

Danosas curiosas solitárias e famintas

Em séquito de predação e aporte

A exortar do forte Portugal a sorte

De atentar o Nativo da terra branca inda ilha

E a filha do homem nudipelo que lhe deu amparo

Recebendo em troca desespero amaro

Velas desfraldes de realentejo-alentejoulas

Espelhos colares de contas amuletos

Oraçoeiros cruz sagrada e sangrenta e sonetos

Grafados a pau na brancareia.


A carta de Vaz entre araras e papagaiadas

Caminha entre virgens alfaiadas

afinal.


A Caravela se foi a singrar o mar

A sangrar de mal

A novidade, coberta da lêndea, de sífilis, de mentira e da ganância

Etnocêntrica

A contar a terra verde descoberta

A descobrir a porta aberta

De a nova Civilização.


Largadas largas velas no céu descoberto ao mar aberto

À lharga criolina nos olhos da menina esquecida na baía

Engolfada em palavras crióis pelos cutubas

Que traziam das caravelas

A água de fogo, a impureza para a virgem e a desonra nativa.


A escravidão em sua própria terra de oiruda esperança viva:

“Orabutã! Orabutã!”

Núncia vaga em trança na estreita boca Verdesmeraldinada

Em barbas brancas baças e brumosas

Em nada

Manchando o leito de um povo pobre com opróbrios

Deitando a lenha em Curumins em uma terra desprotegida.


O que ficou das caras velas

Não foi a glória

O que restou das rotas velas foi só a história.

No poema triste da memória sem valor

E das Palmeiras onde o sabiá, por um dia,

Cantou.



sexta-feira, 15 de abril de 2011

Revista Farol nº 5, da Secretaria da Cultura de Fortaleza


A revista Farol, publicação da Prefeitura Municipal de Fortaleza, por meio de sua Secretaria da Cultura, lançada em outubro de 2006, nos chega agora em seu número 5, em tiragem de 25 mil exemplares, distribuída gratuitamente a quem interessar.

Mantendo sua estética atrativa e dinâmica, traz, sob os cuidados da sua editora, a simpaticíssima e competente jornalista Ethel de Paula, um cabedal de matérias assinadas por Ana Mary Cavalcante, Cláudia Albuquerque, Raquel Chaves e pela própria Ethel, que levanta o grosso tapete da cidade, revelando-nos em textos curiosos a Fortaleza que pouco se vê (ou que quando se vê não se atenta), como nessa edição, sobre os “cines-poeiras”, os cinemas de bairro, a história de seu Vavá (ex-gerente e projecionista do Cine Familiar); uma matéria perfil com a ventura mirabolante do sobralense Babau do Pandeiro, “um andarilho que, por um instante, foi rei”; e o destaque para outros andarilhos e personagens da cidade (mágicos, bonequeiros, cordelistas, ambulantes, músicos, ciganos, surfistas — entrevista exclusiva com Tita Tavares, moradores da praia etc) e, para finalizar, com o bucólico título “Solitários Futebol Clube”, uma extensa matéria com apaixonados torcedores de times locais, torcedores-solitários como são na Farol classificados, pessoas comuns criadas ou que trabalharam em pequenos clubes (o Tiradentes, o Calouros do Ar — o Tremendão da Aerolândia”, o Maguary, o “Ferrim” — este, já não tão pequeno), colecionadores de lembranças, souvenirs de família que desfiam as suas histórias com uma simplicidade que, sem se perceberem, fazem parte da construção da história de nosso futebol. Imperdível que dá gosto!

Para adquirir a revista ou demais informações: revistafarol@gmail.com

"Festa do Livro e da Rosa no Passeio Público" - 18 de abril de 2011


PROGRAMAÇÃO FESTA DO LIVRO E DA ROSA - 2011

18 de abril de 2011 - Passeio Público

(segunda-feira)



Manhã

8h30 - Contação de histórias com o Grupo Era Uma Vez.

8h30 - RPG com o grupo Vila do RPG durante toda a programação

9h30 - Oficina de criação literária com o escritor Almir Mota (na oficina as crianças terão a oportunidade de escrever suas próprias histórias orientadas pelo escritor de literatura infantil).

10h - Lançamento de Livro: Histórias de Roça, ciranda cirandinha venha os monstros cirandá (um dos ganhadores do Prêmio Eduardo Campos de DRAMATURGIA da SECULT-CE, de Elias de França com Ilustrações de Daniel Diaz)

10h30 - Oficina de Desenho com o ilustrador Ramon Cavalcante

11h - Lançamento oficial da II Feira do Livro Infantil de Fortaleza, a ser realizada em setembro de 2011.



Tarde

14h - Contação de histórias com o Grupo Era Uma Vez.

14h - Encontro Pontinhos de Cultura e Pontos de Leitura, com a mediação de Urik Paiva.

14h30 - Oficina de Criação literária com o escritor Almir Mota (na oficina as crianças terão a oportunidade de escrever suas próprias histórias orientadas pelo escritor de literatura infantil).

15h30 - Oficina de Leitura e Produção de Brinquedos com Luana Oliveira.

16h30 - Travessias Literárias, com a mediação de Cleudene Aragão:

“O Passeio Público no tempo e nas artes” com a presença dos escritores Angela Gutiérrez, Vânia Vasconcelos e Raymundo Netto e a coordenadora do Passeio Público, Renata Onofre.

18h - Apresentação musical com Carlinhos Perdigão, que também lança o livro Fragmentos.

19h - Apresentação de dança: “Um punhado de corpo e terra”, solo de Marina Carleial e “Interferências”, do grupo Doc-Dança.


Realização

Prefeitura Municipal de Fortaleza

Secretaria da Cultura de Fortaleza

"Subverso", conto de Raymundo Netto para "Os Acangapebas"


Horas. Horas. Horas.

Insistia o relógio na parede: desista, homem!

A manhã sobranceirava à ruína da caneta embotada há tempos.

Imerso num oceano de sem-ideias, o gramático se rendia à evidência:

“Não consigo escrever... Logo eu?”

De fato, descobria-se engaiolado entre velhas regrinhas endurecidas da palavra. O rigor afetado e a gramatiquice quase não o deixavam pensar. Tinha ele a mania de concordar com tudo, tropeçar em vírgulas, falar quase que soletrando. Como todo homem-nalgas, elevava a metáfora à potência logarítmica e se enfurecia com o desrespeito às conjunções; mas daí a detestar a liberdade “quase imoral” dos poetas? “Necrófilos!”, afirmava.

Escrevia, escrevia, escrevia... direto ao cesto de papel. Nada o contentava. Nada, nem significado nem significância.

Naquele dia, porém, desbastou-se em sua mágoa vernácula. Pegou o caderno repleto de imbróglios de norma culta e, suspendendo-o à janela, pôs-se a sacudi-lo, furioso, esparramando toda aquela gramaticagem no jardim, até deixar suas páginas completamente em branco. Por outro lado, a grama, agora adjetivada, estava verde, linda, sublime e viçosa.

Em sedição contra o dogma, gizou, na parede mesmo, um círculo que chamou de “ó”. Afastou-se, estendeu o braço e o polegar, fechou um olho, voltou à parede. Ladeou seu “ó” de letrinhas imbricadas e ponteou, ponteou, ponteou finalmente. Alucinou: enquanto o mundo gira, somente as estátuas ficam paradas. Na parede, apenas:

“Oras. Oras. Oras.”


* Extraído de Os Acangapebas e publicado em O POVO em 2009

"Manuel Bandeira do Brasil", de Urariano Mota


Segundo Otto Maria Carpeaux, no livro ideal em que Bandeira realizaria a ordem da sua obra, ela partiria da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”, para outra vida que viera ficando “cada vez mais cheia de tudo”.


É uma grande ordem, reconheçamos. Mas a ordem do grande livro de Bandeira, para os leitores, não precisa ser a ordem que lhe deu a melhor crítica literária. A nossa ordem particular, o nosso Bandeira é uma viagem íntima com os poemas que nos abalaram desde quando éramos adolescentes. E nos dizíamos, surpresos, “então isto é poesia!”. E por isso mesmo, por força dessa revelação, passamos a louvar e a ser amantes de:


“PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos

Ganhei um porquinho-da-índia.

Que dor de coração me dava

Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!


Levava ele pra sala

Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,

Ele não gostava:

Queria era estar debaixo do fogão.

Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...


- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.”


A parte que vem da razão nos fala que por trás dessas linhas existe um bruxo, um homem experiente na arte de criar um poema, um ser feroz porque fere porque é poesia. Esse poema cresce pelo pequeno, pelos diminutivos: porquinho, bichinho, limpinhos, ternurinhas, até explodir no inusitado, no súbito golpe, no absurdo da relação entre uma cobaia e o amor, “o meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada”.


Olhem. “Porquinho-da-índia” é um poema escrito antes de 1930, mas um verso diz, “Levava ele

pra sala”. Isso até então não era poesia nem português. Até hoje, em 2011, os gramáticos de boa

fama condenam quem usa “levava ele”. Levava-o, corrigem, e vamos todos ser idiotas na felicidade da norma culta. Levava-o, para o inferno. E nada mais antipoético que um “levava ele”, sentenciariam os asnos de 1930 a 2011 e vindouros.


“POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de

apreço ao Sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas.

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador

Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de

cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbedos

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare.

- Não quero saber do lirismo que não é libertação.”


Bandeira é autor de versos que atingiram aquele estado raríssimo de ir além do gosto da gente culta. Viraram quase uma reflexão, um anexim, um provérbio. Exemplos disso vêm sem muita pesquisa: “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”, ouvimos, quando nada mais resta fazer. “Foi o meu primeiro alumbramento”, e vejam que palavra bela, alumbramento, posta em circulação e moda na língua. Todos apreendemos de imediato o significado, porque o poeta nos diz isso depois de “Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo”. Assim como também apreendemos pelo poema o sentido de “Vou-me embora pra Pasárgada” – fugir, sumir, buscar abrigo em uma terra utópica de felicidade.


Essas coisas não se escrevem por dom ou presente dos deuses. Versos assim se conseguem ao longo de muita vida e estudo e observação.


A linha do poema de Bandeira parece vir curtida, decantada, palavra por palavra. Raro ele corre em voo livre de condor, antes plana, paira, na altura, contraditoriamente parecendo voar baixo, ao nível do chão, do cotidiano, do minúsculo dos dias.


Nele, o sentido do poema está antes no verso.


Essa linha lapidar que sobrevive ao poema, à circunstância, não se encontra em outro poeta brasileiro com a frequência com que se encontra em Bandeira. “A vida inteira que podia ter sido e que não foi” é um verso que nos fica, para sempre, é uma luz que guardamos até mesmo sem conhecer o poema “Pneumotórax”. Até mesmo sem saber que o poeta vai para 125 anos.


Urariano Mota é pernambucano, autor de “Os Corações Futuristas” e de “Soledad no Recife”, que recria os últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, executada por Fleury com o auxílio do traidor.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

"Sorriso Brasileiro", poema de Francisco Simões


É salgado o gosto deste solo agreste

Pelo pranto da seca, da fome e da peste.


É doce o sabor deste asfalto tão quente

Ao molho de sangue, de violência inclemente.


É triste o olhar da infância-ameaça

Fugindo da vida, do medo e da caça.


É trêmula a mão do idoso que aguarda

A consulta, o salário e a esperança roubada.


É preconceituoso todo olhar que ignora

Feridas expostas e a indigência que implora.


É covarde toda força que age escoltada

Tirando a vida de quem não tem mais nada.


É falsa a democracia que a poucos banqueteia

E destina à maioria as sobras da ceia.


É muita comissão para tão pouco inquérito

E parcos resultados a merecer tanto mérito.


É lama, é brejo, é areia movediça

Engolindo a verdade, a honra, a justiça.


É avalanche que arrasta, oprime e apequena,

E a sociedade? – De costas para a cena.


É bonito, saudável, feliz, que imagem

O sorrir do poder e da politicagem.


É sem teto, saúde, comida ou brejeiro

O olhar que se esconde no sorrir brasileiro.


Poema selecionado junto com outros 59, em Londres, Inglaterra, integrante da “Coletânea Internacional de Poesia” e de áudio-CD do “Cantinho do Poeta”, ficando também entre os 20 melhores na 6ª edição do “Expressão da Alma”, no Rio, em junho/2000.