segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

"Boca de Beijar", de Raymundo Netto para O POVO



Era de uma loucura por beijo. Fazia tudo, de tudo, por um beijo. Não lhes negassem um beijo por nada. Antes a morte! Embora, entre últimos suspiros, não abrisse mão, digo, a boca, do derradeiro beijo.
Fosse uma mocinha inexperta, pregada à soleira dos castos anos, a avistar ao longe as guirlandas de uma ingênua paixão, vá lá! Mas ouvir de um homem feito, quarentão, mais vivido e passado do que colarinho de político, o discurso meloso sobre um mero beijo, soava para nós tal qual uma extravagante promiscuidade.
De fato, Nicolau era um homem comum, sem nenhum dote a justificar o aparente sucesso com as mulheres. De novo, apenas aquela devoção à teoria sobre o beijo, que, em alguns momentos, para nosso deleite de mesa de bar, assumia um tom sobrenatural:
– O beijo, meus amigos, não duvidem, é o mais poderoso afrodisíaco que há na Terra. Escolho as mulheres pelo beijo. Entrego-me àquele que me há de ser sempre doce e profundo, pleno, demoroso, longo e largo como uma vida inteira...
Daí, em torno de um Tristão de olhos cerrados, surgia uma aura frouxa, como rósea névoa, a lhe tomar o rosto e o peito, enquanto naqueles lábios subitamente tácitos, eu juro, podíamos sentir a presença do fruto etéreo em sua boca fanaticamente desejada.
Não era segredo para ninguém. Aliás, ele mesmo fazia questão de espalhar a sua tara por bocas. Até as mulheres que, por fado, lhe caiam na conversa,  sabiam da sua fama de imodesto e cobiçoso beijador. No começo, foi levado no pagode, mas depois, com o tempo, veio o incômodo da vizinhança. Suas vítimas avolumavam-se dia após dia. O inaceitável é que, após o previsível desenlace, elas sofriam horrores, dignas de uma viuvez de falecido vivo. Maldiziam o desgraçado, choravam às esquinas, mas nunca que jamais o esqueciam. Por toda a região se sabia: "Ai de quem as tivesse depois de Nicolau..."
O único que parecia não se inquietar com isso era o próprio Nicolau, a se passar tão serelepe quanto antes, entregando os beiços sedentos a novas candidatas seduzidas pela experiência idílica de seu beijo vicioso.
Os outros rapazes, num misto de vergonha e incompetência, passaram a hostilizá-lo, assim como os familiares das ex-namoradas. Afinal, lhes parecia inconcebível aquela impudica e inarredável dependência pela boca alheia, o que fez com que o galã se visse obrigado a sair menos às ruas. E, quando o fazia, era um rebuliço: as mães cerravam as janelas dos quartos das moçoilas já inclinadas à tentação, enquanto procuravam, com custo, segurar as demais, ainda por ele encantadas, na busca desesperada de uma calorosa reconciliação.
Numa manhã, o inevitável: "Nicolau foi encontrado morto, provavelmente a pauladas, numa vereda do boqueirão", contou-nos, com descarado alívio, o delegado, pai de uma das moças beijocadas pelo “libertino”.
Deste modo, muitas mães também eufóricas ao receberam as “boas novas” abriram as cortinas e as janelas das alcovas de suas filhas que, assim como outras surpresas e honradas mulheres, naquela mesma manhã, despertaram, para o espanto geral, sem bocas.


sábado, 24 de fevereiro de 2018

V Seminário da Rede de Leitura Jangada Literária (27 e 28 de fevereiro)



Clique na imagem para ampliar!
O V Seminário da Rede de Leitura Jangada Literária será realizado nos dias 27 e 28 de fevereiro de 2018, na cidade de Fortaleza/CE, no Auditório Valnir Chagas da FACED- Faculdade de Educação/UFC.
Terá como tema principal Bibliotecas Comunitárias em Conexão pela Leitura como um Direito Humano, que promoverá um diálogo entre o poder público, a sociedade civil e os seus diversos atores das cadeias criativa, produtiva e mediadora do livro. Serão discutidos temas que buscam conscientizar sobre a importância da leitura como um direito humano e a necessidade de políticas públicas que promovam a democratização do acesso ao livro e à leitura, tendo como foco a construção e aprovação do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (PMLLLB) e as Bibliotecas Comunitárias como símbolo de resistência.
Inscrições
Faça sua inscrição através deste formulário: 
PROGRAMAÇÃO
27/02/2018 - Terça-feira - Manhã
08:00 - Credenciamento/Café
09:00 - Abertura
09:10 - Conferência com Cida Fernandez (CCLF/Olinda-PE) 
09:50 - Intervenção Poética
10:00 - Mesa 1
Biblioteca comunitária como símbolo de resistência
Objetivo da mesa: Promover a troca de experiências entre as bibliotecas comunitárias
·         Carlos Honorato — RNBC/Conexão Leitura - RJ
·         Viviane Siade — Casa Camboa de Sabiaguaba
·         Argentina Castro — Papoco de Ideias
·         Emiliana Nunes — JangadaLiterária
·         Sâmia Ellen — Mediadora/Jangada Literária
11:40 - Plenária
12:00 - Encerramento
27/02/2018 - Terça-feira - Tarde
13:30 - Credenciamento
13:45 - Apresentação Cultural com Cantando e Contando (Jangada Literária)
14:00 - Mesa 2. O PELLLB e o PMLLLB na garantia da sustentabilidade das bibliotecas comunitárias
Objetivo da mesa: A construção e efetivação do PMLLLB de Fortaleza
·         Jaqueline Gomes — MINC
·         Ana Paula Carneiro — RNBC
·         Fabiano dos Santos — Secretário de Cultura - CE
·         Evaldo Lima — Secretário de Cultura - Fortaleza
·         Alilian Gradela — Jangada Literária
·         Cida Fernandez — Mediadora/CCLF/Olinda-PE
15:30 - Plenária
16:20 - Bate-papo com o escritor com Raymundo Netto, mediação de Lílian Martins
17:30 - Encerramento/Coffee Break
28/02/2018 - Quarta-feira - Manhã
08:30 - Credenciamento/Café/Visita guiada às Bibliotecas Comunitárias da Rede de Leitura Jangada Literária
·         1ª visita: Biblioteca Comunitária Jardim Literário
·         2ª visita: Biblioteca Comunitária Prof. Leônidas Magalhães
11:30 - Encerramento das visitas.
28/02/2018 - Quarta-feira - Tarde
13:30 - Credenciamento para oficinas
14:00 - Oficinas
·         Oficina 1 -  Conectando bibliotecas e unindo leitores (sala da FACED/ UFC) 
·         Facilitadora: Sâmia Ellen (Jangada Literária)
·         Oficina 2 - Mediação de Leitura e formação do leitor (Auditório Valnir Chagas FACED/UFC)
·         Facilitadora: Érica Verçosa (Ekó Educação e Cultura)
·         Oficina 3 – Tira- dúvidas Mapa Cultural  (UTD prédio do Cine São Luiz 9º andar)
·         Facilitador: André Lopez (Secretaria de Cultura - CE)
Oficina 4 – Narrando Histórias: A Mitologias dos Orixás (Praça do Chão/ UFC) 
·         Facilitador: Ana Paula Carneiro (RNBC)
17:00 – Apresentação Cultural de encerramento “Bordador de Histórias” com Rafael Brito
17:40 – Encerramento/Coffee Break

domingo, 18 de fevereiro de 2018

V FEIRA DO LIVRO E V JORNADA DAS LETRAS DE LIMOEIRO DO NORTE (22,23 e 24 de fevereiro)


Clique na imagem para ampliar!

Lançamento de livros, oficinas, palestras, rodas de conversa com autores, recitais e apresentações musicais, acesso a estandes de exposição e venda de livros, apresentações de teatro, música e homenagens a Belchior, ao centenário do poeta Hercílio Pinheiro (1918-2018) e ao poeta Louro Branco.
Essa é a proposta da V Feira do Livro de Limoeiro do Norte e da Jornada das Letras de Limoeiro do Norte, uma realização do Instituto Brasil de Dentro, em parceria com a Academia Limoeirense de Letras, Enel e Secretaria da Cultura do Estado do Ceará.
Parte da programação acontecerá na Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM), campus da Universidade Estadual do Ceará (Uece) em Limoeiro. Com o tema Literatura: Múltiplos Olhares, a roda de conversa vai reunir os professores Fernanda Cardoso, Francisco Romário Nunes e Sarah Maria Forte Diogo.
Uma das principais homenagens programadas para a edição de 2018 é a do centenário do repentista norte-rio-grandense Hercílio Pinheiro (1918 - 1958), considerado, até hoje, uma das maiores expressões da arte popular nordestina.
Também homenageado o repentista, poeta e compositor Francisco Maia de Queiroz, o Louro Branco, natural de Jaguaribe, que faleceu em 18 de janeiro deste ano em curso, aos 75 anos.
Entre os títulos que serão lançados: Aventura Jaguaribana, num ano de Estio, de Agamenon VianaSimplesmente Tião, de Avanir Fernandes MaiaA tragédia dos mil dias: a seca de 1877-79 no Ceará, de Cicinato Ferreira NetoPara Belchior Com Amor, organizado por Ricardo KelmerAs cidades de Rubem Braga e W. Benjamin, de Ana Karla Dubiela; e Livro Zero, de Denis Akel.
 E, como parte da programação musical, apresentações de Agamenon Viana, Banda Aécio de Castro (alunos do colégio Diocesano), Maracatu Nação Jaguaribe, Banda Big Head, Deilson Rabelo, Celinha Guará e Gildomar Marinho (os três últimos, além de apresentarem o cancioneiro autoral e sucessos da MPB, prestarão homenagens ao cantor e compositor cearense Belchior).

SERVIÇO
V FEIRA DO LIVRO E V JORNADA DAS LETRAS DE
LIMOEIRO DO NORTE
Data: 22, 23 e 24 de fevereiro de 2018
Local: Praça da Igreja Matriz (José Osterne) de Limoeiro do Norte/CE
Horários: De 9h as 11h e de 17h as 23h.
Informações: (88) 99661-0512

PROGRAMAÇÃO COMPLETA (GRATUITA)

22.02 (Quinta-feira) 
FAFIDAM – Sala Multimídia
19h – Jornada das Letras – Roda de Conversa, tema: Literatura: Múltiplos Olhares; Participantes: Profa. Me. Fernanda Cardoso Nunes (UECE-FAFIDAM); Prof. Me. Francisco Romário Nunes (UECE-FAFIDAM) e Profa. Dra. Sarah Maria Forte Diogo (UECE-FAFIDAM)
Tenda das Artes
17h – Praça livre, início exposição e venda;
18h – Professores da Escola Reinações – Brincanças, Dinâmica na Praça, Contação de Histórias, Cantinho da Matemática, Testes Piagetianos;
19h – Apresentação do Boizinho da Faceira, crianças do bairro Luiz Alves e comunidade Faceira;
20h – Abertura Oficial da Feira - Realizadores, apoiadores e convidados;
20h – Autores no Tablado, lançamentos: Avanir Fernandes Maia, Simplesmente Tião;  Agamenon Viana, Aventura Jaguaribana, num Ano de Estio; Francinilto Almeida, autografa Geografia do Amor em Transe e outros títulos de sua autoria. Sessão de Autógrafos na Sala dos Autores;
21h – Cordel e Cantoria – Paiva Neves, lança O Mundo Perdido, adaptado da obra de Arthur Conan Doyle para Cordel; Homenagens, Centenário do poeta Hercílio Pinheiro e ao Poeta Louro Branco; cordelistas Paiva Neves, Rafael Brito, participação do cantador Zé Cardoso;
22h – Música na Praça, apresentação de Agamenon Viana.

23.2 (Sexta-feira)
Tenda das Artes/ Manhã
08h – Contação de História - Historias só fazem sentido quando nos faz Sentir, com a Professora Luci Oliveira e alunos  da escola Pe. José Anchieta, comunidade Cercado do Meio, Quixeré (CE);
09h  – Oficina de arte, pintura, com Luci Oliveira;

Tenda das Artes/ Noite
17h – Praça livre, início exposição e venda
19h – Banda Aécio de Castro, alunos Colégio Diocesano, regência Bergson de Castro;
19h30 – Grupo de Teatro A Vida é Uma Peça, alunos do Colégio Diocesano, com a peça O Pequeno Príncipe;
20h – Escritores no Tablado/ lançamentos: Cicinato Ferreira Neto, A tragédia dos Mil Dias: a Seca de 1877-79 no CearáAna Karla Dubiela, As cidades de Rubem Braga e W. BenjaminDenis Akel, Livro Zero, prosa, poesia, ilustração livre. Sessão de Autógrafos na Sala dos Autores;
20h30 – Apresentação do Maracatu Nação Jaguaribe, da comunidade Arraial, Limoeiro do Norte CE.
21h – Cordel no tablado – Adriano Deodato, Quixeré CE; Sessão de Autógrafos na Sala dos Autores;
22h – Música na Praça - Show Banda Big Head, cancioneiro popular brasileiro, participação Gilson Saraiva.

23.2 (Sábado)
Tenda das Artes/Manhã
08h30 –  Oficinas de artes e brincanças;

Tenda das Artes/Noite
17h – Praça livre, início exposição e venda
19h30 – Atores e Brincantes na Praça
20h – Grupo Turma da Alegria, com o musical O Mundo Encantado da Leitura, por Missielma e Nivia;
20h30 – Escritores no Tablado, lançamentos: Bruno Paulino, Pequenos AssombrosCarlos Vazconcelos, Os Dias RoubadosRicardo Kelmer, Para Belchior Com Amor. Sessão de Autógrafos na Sala dos Autores;
21h – Grupo Cena’s de Teatro, com Leituras e Loucuras, de Tércia Montenegro;
21h30 – Cordel no Tablado – Com Rafael Brito e Paiva Neves;
22h – Música na Praça - Show Deilson RabeloCelinha Guará e Gildomar Marinho, com canções autorais, Música Popular Brasileira e homenagens a Belchior.


sábado, 10 de fevereiro de 2018

"Em Louvor a Jáder de Carvalho", por Bruno Paulino

Jáder de Carvalho, por Audifax Rios, para O Canto Novo da Raça

O escritor, poeta, político e jornalista Jáder de Carvalho é um dos maiores nome da história da literatura cearense, seu poema “Terra Bárbara”, indispensavelmente evocado quando se pensa e discute a identidade do povo do Ceará é a síntese de um sertão que não existe mais, e que, no entanto permanece vivo em muitas marcas e símbolos.
Jáder de Carvalho era quixadaense, nasceu na Serra do Estevão em 1901, e mudou-se para Fortaleza em 1915, no ano da grande seca que inspirou o romance de Rachel de Queiroz. Jornalista combativo, fundou o jornal A Esquerda, depois foi preso por 364 dias durante o Estado Novo (1943) implantado por Getúlio Vargas. Logo que conseguiu liberdade fundou o jornal Diário do Povo (1947). Esse período é estudado pelo historiador João Alfredo Montenegro no livro Jáder de Carvalho e o Diário do Povo (2011).
Hoje em dia muitos dos livros que publicou precisam ser reeditados. Dos seus romances apenas Aldeota consegue ser encontrado com certa facilidade em sebos e livrarias. De vasta produção poética, é apontado como um dos precursores do modernismo nas letras cearenses, com a publicação em 1927 do livro Canto Novo da Raça, em parceria com Franklin Nascimento, Sidney Netto e Mozart Firmeza. Porém o poema que mais gosto de Jáder de Carvalho, e que parece ser também um dos que o próprio poeta mais gostava, é de outra safra, e trata-se de “Em Louvor de Quixeramobim”, na qual a voz daquele que confessadamente foi “um menino lírico” consegue misturar seus sentimentos e impressões ainda vivos da infância com personagens e passagens da história da cidade:

“Não quero gravata. Não me tragam o relógio de pulso. Quero o gibão, quero as perneiras. Quero o chapéu de couro. Quem vai a Quixeramobim não é o professor, o bacharel, o jornalista Jáder de Carvalho.
Quem vai é o neto de vaqueiro, o menino que não esqueceu o pátio das fazendas.
Quem vai é o rapaz que, longe do mato, longe do Banabuiú, punha o ouvido na areia da capital e ouvia (ah, como ele ouvia!) o tropel de certo poldro ‘Andorinha’.
O mugido da vaca ‘Esperança’.
Quixeramobim, fala do coronel Jucá!
Fala de Antônio Conselheiro!
Conta-me a história do infeliz Luciano e da famosa Joana Batista Barreira! (Aqui no ouvido, Quixeramobim: Estavas no juízo, quando no papel, destronasse o imperador Pedro I e, de uma pernada só, derrubaste a dinastia de bragantina e proclamasse a república em 24)
Olha, no chão, que os teus gados pisam com ternura andou o pé revolucionário do meu bisavô João Aires de Olival.
Rapazinho, vindo do sertão para o Liceu, não vi nada de novo nos teus rios, nas tuas serras, nos teus campos. Tudo era conhecido velho. Até a cruz, gravada na pedra, perto do trem, me pareceu familiar. Eu não vira a todos, com antecipação de quase um século, pelos olhos de João? Às vezes, pego a pena e me sinto o padre Mororó, Às vezes, de pálpebras fechadas, sou um vaqueiro de Muxuré. Às vezes, ardo em rancor: limpo então o bacamarte, selo o cavalo, sou um Maciel a quem tomaram a terra. Um Maciel a quem mataram um parente. Ah, Quixeramobim, eu adivinho poesia, Até na vida dos teus ladrões de gado! Até na vida dos teus escravos! Até no adultério das senhoras das casas grandes! Até na sentença de morte dos teus primeiros jurados! Até nos despachos – ásperos e rápidos despachos – do juiz leigo, meu parente capitão Antonio Duarte de Queirós! Até na tosse dos tísicos que te procuram!
Chegou a hora, outra vez chegou a hora de pôr o ouvido no chão da capital: lá vem o tropel do podtro ‘Andorinha!’. Lá vem os aboios dos vaqueiros do Muxuré e do Logradouro, Lá vem a súplica do matador de Luciano ao pelotão de fuzilamento:
– Meus amigos, eu só peço que não me deixem sofrer!
Lá vem mais perto o poldro ‘Andorinha!’, Meninas, tragam o meu gibão! Tragam as perneiras! Tragam as esporas! Tragam o meu chapéu de couro! É assim eu vou a Quixeramobim.”

Sobre o poema acima transcrito, o próprio Jáder Carvalho comentou depois o seguinte: "[...] eu amo esse poema por dois motivos: porque ele saiu do sertão, saiu da minha alma e foi ouvido pela primeira vez em Quixeramobim numa festa centenária do município, em que esse poema foi lido na rádio para todos os quixeramobienses que se encontravam na cidade. É um poema consequentemente que tem sua razão de ser, preso a minha vida, está preso à história do Ceará e que está dentro da emoção do poeta, emoção que nunca morreu em mim"
Pois bem: a poesia da história se tece e Jáder de Carvalho vive em poesia!

Bruno Paulino, escritor




segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

"Amor para Toda uma Vida", de Raymundo Netto para O POVO



“Não e Não! Nem viesse! Só se entregaria ali com a garantia de casar no papel!”
Ela, enconchada em uma cama de motel – visão digna de Boticelli –, cobria o pelo com lençol branco e higienizado quando lançou no ar de espelhos o bombástico decreto.
O namorado, ainda que surpreso, não se abalou. Levantou-se rapidamente, descartou de um cardápio de cabeceira uma folha de papel e lançou-a no carpete com a delicadeza quase solene de um Romeu. Daí, extraiu a moça dos lençóis ainda frios para juntos se postarem nus por sobre aquele mísero espaço A4 de vida e anunciou: “Se é assim, pronto: agora estamos casados no papel!” Ela enlouqueceu. Ele enlouqueceu com ela. E era tanta loucura que se podia prever dali uma demência eterna, sem precedentes na desumana história da humanidade, desde que Adão atentou contra a maçã da Eva.
Porém, tempos depois, quem os visse, assim durante o dia, diria que eram de uma incompatibilidade medonha: o leite e a manga, a chuva e a fogueira, a fome e a dor de barriga! Não concordavam absolutamente em nada. O casal parecia compartilhar de um amor quase danação, a devorar o ânimo um do outro numa gula feroz de quem ataca um prato de brigadeiro.
Para piorar, além da sociedade conjugal, determinaram a profissional, o que os mantinham 24 horas numa rinha penosa e inclemente.
Nas reuniões de trabalho, poderiam estar diante de dezenas de pessoas, funcionários, fornecedores, clientes e, no entanto, parecia que estavam sempre a sós, na intimidade de seus bate-bocas. O volume da voz de um excedia à do outro com uma segurança de um tenor. Não se viam em beijos, mas a troca de salivas era uma constante.
Com os filhos não era diferente. Discordavam de tudo quanto, perturbando-lhes o juízo e as epífises. Na escola, eram vistos como sonolentos, apáticos, dispostos apenas a não aprender nada que lhes fosse ensinado.
Os casais de amigos, aos poucos, constrangidos com a companhia desvairada do casal, distanciaram-se. De positivo mesmo, é que qualquer casal que conseguisse conviver ao seu lado, mesmo os mais desapaixonados, logo se sentiam em lua de mel. Diante deles, até a sangrenta Batalha de Stalingrado parecia brincadeira de carimba!
E nos aniversários? Despertavam aos beijos de hálito adormecido, como em trégua, mas logo um queria impor ao outro como se daria tal comemoração: “Aniversariante não tem opinião!” Dali, a promoção, talvez, do mais humilhante dia de suas vidas, o desdém a cada detalhe, além de o bolo sempre trazer o sabor preferido do patrocinador da vez.
E por aqui poderíamos encerrar esse enredo que justifica ser o matrimônio a maior causa do divórcio, não fosse sabermos que, à noite, naquela casa, era enlouquecedora a tentativa de dormir dos filhos, criados, visitas e até de vizinhos, mediante a violência de balidos e súplicas, de pregões de feira a dança de tamancos, a eclodir daquele aposento nupcial, a esgotar-se apenas no raiar da manhã, entre heréticas faíscas que se espremiam entre as brechas das portas e janelas, revelando o mais autêntico, escandaloso e nunca-acabável amor.