quinta-feira, 24 de junho de 2021

Live de Lançamento "Santuário", de Maria de Fátima Maia


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Para adquirir o livro Santuário, de Maria de Fátima Maia


Com a autora: mfmaia@hotmail.com

Pela Editora Confraria do Vento:

https://www.confrariadovento.com/editora/catalogo/item/291-santuario.html


 

SOBRE SANTUÁRIO

Santuário (Confraria do Vento, 2020), de Maria de Fátima Maia, me chega pelas mãos da autora, assim como me chegou, anos passados, sua primeira publicação, Borboletário (Confraria do Vento, 2011), também de poesia.

Em formato pocket e com um design que exala beleza e apuro – do nosso querido amigo Geraldo Jesuíno –, a obra tem o prefácio do prof. Sânzio de Azevedo, outro querido amigo, maior fomentador da pesquisa em literatura cearense, poeta e professor durante anos da disciplina Teoria do Verso na Universidade Federal do Ceará. O professor conclui seu texto com a seguinte afirmação: ““Trata-se de mais um nome que se soma aos muitos que formam o melhor da poesia cearense de nosso tempo.”

Não é pouca coisa.

Também na apresentação, a presença de Ionilton Pereira do Vale e, ao final, o posfácio é da própria autora.

O livro, como o todo, é uma edição muito interessante.

A começar do próprio título, “Santuário”, palavra que evoca “lugar sagrado”.  A obra é para autora esse lugar sagrado, onde as relíquias dessa devoção são as palavras, os versos, a poesia.

Soma-se a isso a predominante cor roxa/lilás, que entre as cores litúrgicas, se refere ao recolhimento, a uma profunda interiorização que leva à esperança.

No processo de seu recolhimento e interiorização literária, Fátima espraia por toda sua obra uma sequência de sonetos – ao todo, 21 – que, mesmo trazendo notas românticas e vocábulos não usuais (“maneiras do século passado”), viola os moldes rigorosos, por exemplo, dos parnasianos. Não se preocupando excessivamente com métricas ou rimas – embora lá estejam – e retirando de todos eles os espaços não preenchidos de intercalação entre quadras e tercetos, mesmo assim não perdendo a cadência gostosa de sua produção.

Não é difícil perceber na voz da autora a semelhança com outra sonetista: Florbela Espanca, que ao defender que “Há uma primavera em cada vida”, encerra seu “Amar!” com “E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada/ Que seja a minha noite uma alvorada,/ Que me saiba perder... pra me encontrar...”

Outro detalhe interessante é que o livro se trata de uma poesia-narrativa, quase um cântico, no qual Fátima, com lirismo sensível e delicado, narra um grande drama de amor a partir do encadeamento de fases, sem de maneira alguma perder a eficácia estético-rítmica esperada de poemas, fazendo jus ao “Santuário”, denominadas: (1) Celebração, (2) Reflexão, (3) Contrição, (4) Remissão e (5) Enlaces.

De forma geral, e podendo conter spoilers, as apresentamos:

CELEBRAÇÃO

Numa contemplação barroca, percebe-se o momento de celebrar a vida, por entender a finitude das coisas e, ao mesmo tempo, desejar a sua eternidade

“Por sabermos o preço deste instante/ confirmamos no aperto de um abraço/ mil atávicas juras dos amantes”, concluindo: “Tu serás para sempre o meu regaço”.

Apesar da voz melódica, perceptivelmente branda, como a confessar um segredo para si mesma, há um forte teor físico, de mãos, pernas, corpos, bocas, desejos e carícias: “Tens o melhor de todos os sabores, /o que excita os sentidos sem pudores/ e alucina a pessoa mais discreta.”

Mas, mesmo quando ele pede que ela não vá embora e confessa “só teus beijos, enfim, calar-me-ão”, ela volta ao “leito-desengano” para “verter teu perfume no soneto”. Amá-lo, percebe, é ferir-se.

Ela é felina, tal qual onça, “uma fera segura e decidida” que pede ao vento – o vento é uma terceira personagem da obra, surgindo como conselheiro, companheiro ou apenas como espectador – que a ajude a guardar as suas garras e que sejam doces os seus versos e seus momentos.

REFLEXÃO

Na sua reflexão, ela volta ao profundo de sua consciência e às lembranças.

É menina, no sertão onde viveu, “crescida entre os espinhos”, andando “sempre descalça”, na “lonjura de quem nunca se aproxima”, com “apetites abafados” e um “coração desconfiado”: “seria pudente crer em ti?”

A verdade: “estamos sempre sós” E chega-nos, em dourada chave: “Nunca mais haverá um outro agora!”

CONTRIÇÃO

Num momento de contrição, sua alma geme arrependida “de escolher o teu peito como sede”. Porém, a resignação: “Minha sina será como Deus queira!”

Ele volta, utilizando as artimanhas que “sequer coram tua face”. Não é o mesmo e está mais velho: “Vejo as cãs do ignóbil cavaleiro.”

Ciente dessa certeza, ela sofre por trazer ainda “O vício de andar aonde tu fores.” Então, como em um sonho, sente um “galope no peito” e “Na garupa da mente ele vai vivo”.

Há muita hesitação, medo, dúvida. Ela percebe haver “sangue na lágrima que espreme” e uma “culpa acesa/que não finda na insone madrugada”.

REMISSÃO

Sente-se humanizada, curada, quiçá, perdoada.

Perdeu o “medo da altura das estrelas”. Objetivamente sente a perda do tempo ao olhar no espelho. Entende o poema que a ele pertencia, como a “carcaça de sonho”.

O perdão, renovado todos os dias, vem com a despedida: “o fatídico dia-desenredo”

ENLACES

Refere-se às gerações, a origem de tudo, a sua família primitiva. O desenrolar da vida que se repete e também se renova. A esperança e a fé que brotam, mesmo nos mais áridos terrenos.

É, no livro, o momento do grande abraço, ou enlace, da autora a todos os peregrinos desse Santuário, que somos nós, os seus leitores, na certeza de que, como a oração sincera, a poesia também enternece e consola a alma.

 

Raymundo Netto

Editor e escritor e dublê de resenhador

 

Sobre a Autora

Maria de Fátima Maia afirma veementemente ser cearense, precisamente, de Pouso Alegre, Minas Gerais. Tanto o é, que nasceu no dia do padroeiro do Ceará, São José, quando sua mãe estava a passeio nas alterosas terras dos inconfidentes. Sua ascendência familiar é de Limoeiro do Norte/CE, onde, hoje, a autora ocupa o cargo de Procuradora Geral do Município. Porém, residiu muitos anos em Fortaleza, onde se preparou para o então denominado vestibular. Cursou Direito, na Universidade Federal do Ceará, e pós-graduações jurídicas. Em 2010, recebeu prêmio Costa Matos de Poesia, promovido pela Alane, Academia de Letras e Artes do Nordeste. É também autora do livro de poemas Borboletário, de 2011.

 


 

sábado, 19 de junho de 2021

"Abusiva", conto de Raymundo Netto para O POVO


“Não há no mundo quem te ame mais do que eu! Não tem, viu?”

Augusto ouvia essa cerimoniosa, sonora e indefectível declaração todos os dias durante anos de casamento. Sabia: depois dela, inútil argumentar. Assistiria, então, à saída dramática da esposa, dando-lhe as costas e enxugando os olhos correntes. Depois, ela se enfurnaria no banheiro por horas, como a contar diante do espelho uma a uma das lágrimas roubadas. Mesmo assim, ainda o despertaria, a hora que fosse, abandonada de si, rogando quilométricas desculpas e promessas em nome daquele imorredouro amor.  

Camila o amava demais. Mais do que o permitido por lei, de forma quase abominável. Maior do que ele, apenas a insegurança e o ciúme devotados àquele marido severamente asfixiado: “Te respeita, mulher... Me deixa em paz!”

Noites demais, Augusto despertaria subitamente por Camila, em olhos transfigurados: “Você ainda me ama? Eu te amo, te quero tanto...”.

No começo, ele achava aquilo “engraçadinho”, “fofo”, mas com o tempo e a insistência, tornou-se in-to-le-rá-vel: “Meu Deus, eu não posso nem mais dormir?”. Também quando assistia às partidas de futebol ou lia atento o seu jornal, era comum ela inventar motivos para ficar passando na frente da TV, mudar o canal ou enganchar-se ao seu pescoço, cobrindo-lhe de beijos caudalosos, a tentar levá-lo para cama.

Com o tempo, Augusto passaria a chegar mais tarde em casa, fazendo qualquer coisa ou coisa nenhuma, na vã tentativa de ela já estar dormindo. Mas Camila o esperava sempre. E, com o entusiasmo de abertura de loja em promoção, jogava-se em cima dele – mais e mais beijos –, trançava um rol de perguntas incômodas, comia do seu prato, fuçava sua mochila, os bolsos da calça, cheirava suas roupas. Uma obsessão medonha.

Quando encontrava a mãe, irmãs ou nora, aflita, exasperava-se no relato da incompreensível agonia do marido. Elas recomendavam fosse devagar, com calma, afinal, ele não lhe dava motivos para ciúmes ou desconfiança. Ela revoltava-se: “Coitadas de vocês que nunca sentiram um amor assim como eu. Eu morro de amor. Morro!” Entreolhavam-se em silêncio e com certo pavor.

Um dia, ele chegou mais cedo em casa. Calado, desviou-se dela e dirigiu-se ao quarto do casal. Lá, começou a sequestrar as roupas do armário e lançá-las numa velha mala. Camila, perplexa, o questionava. Augusto, numa sinceridade perversa, bradou: “Não te aguento mais! Vou-me embora daqui antes que...” Nem concluiu. Ela já estava aos seus pés, súplice como uma escultura de Claudel, na defesa de seu amor eterno. Mal sabia ela que, para ele, “eterno” soava como “inferno”. O inferno daquele amor.

Com a mala em punho, empurrou a mulher e correu para a escada. Camila, desesperada, saltou e agarrou-lhe as pernas, fazendo com que ele tombasse pelos degraus até o encontrarmos estatelado no soalho frio, ora tinto de sangue entornado da cabeça.

Meses depois, Augusto voltaria a casa. Com o trauma, imóvel do pescoço para baixo. Não conseguia falar e, agora mais do que nunca, era-lhe difícil engolir. Porém, enquanto todos cuidadosamente tentavam consolar a esposa, dar-lhe força, parecia ser ela a menos abalada. Sorria com mais frequência no desvelo exemplar ao seu marido paralítico.

À noite, então, do nada, acordaria com forte abraço o indefeso Augusto, entregue e inerte na sua cama-cárcere: “Está sonhando com o quê, amor? É comigo, não é? É comigo?”

 


 

domingo, 6 de junho de 2021

"Noite e Dia", de Raymundo Netto para O POVO


O amor que corre dencanto dobrado em limalhas de pensamento regurgita à tua face de lamento, quando num momento te vestes num sorriso.

Como em margens seguras do sonho impreciso que me te tens às mãos, figura nos chãos debaixos pés uma canção de amor em teu juízo.

Por onde passas és redemoinho. Tua liberdade furiosa, sei, a ninguém pertence. Arrastas e vences o que te importas no caminho e assopras com as pernas as poeiras do teu tempo.

Forte e frágil és sombra de vento. És nubem, és contento, quando deságua de chuva irisa-se em luar. É teu corpo onírica paisagem, tua pele enluarada mingua como a noite a gozar.

Por onde ondeia és maraberto, verde e silente de amaresiar...

Engolindo toda a vida em ti descoberta. Devorando-te pensamentos. Te devorando, Dvorak. Sorris e teus sorrisos são as chaves e achaques.

Por onde teus olhos passam, constelações como em pálpebras declinam. No alvorecer, no arvorescer, noite coroa dia; dia entorna noite e se animam.

Na casta cobiça de construir peça a peça o mosaico de tua alma canora, segredo-lhe meu silêncio. Tu me ouves muda, não o abraças, não o choras.

As palavras são forjadas uma a uma pela língua mais branca, na frase cuidadosamente pró-ferida, na cautela exaurida que a tudo sublima, na neblina que acompanha a mais prenhe solidão.

Preciso de ti... ah, como te preciso... precisamente ou não.

E o horror da confissão me vem como uma dentada, minha alma dilacerada, parto de tudo na vida, o meu bálsamo e a minha dor.

E tu sempre distante, entre risos e risadas, como as frias estrelas a fingir luz e calor.

A minha penitência decora as paredes do meu coração onde sulco teu nome, em gravação, com cinzéis de saudade.

Não é, porém, meu nome que vejo em teus olhos nem de a felicidade. Pois, como no poema, repouso em tua janela, tu és meu in verso, és ela: a minha condenação.

Encontrei-te por dentro em teu corpo desabotoado e na mais linda aflição, de repente, me tomastes ao teu lado.

E eu que não te amava, agora até teu era, e lancei para o céu a tarda espera das alegrias em troca da grande novidade de ver-te nua todos os dias.

Teus olhos de chama que acastanham meu desejo, teu batom na cama a negar-me o teu beijo e no latejo da tua mão na minha, vermelha e quente, a sentença incontinente de teu coração feraz: que enquanto de longe pareces deus, de perto, meu amor, és muito, muito mais.

 


"Sandra", conto de Raymundo Netto


Ernesto mal chegou à praça e foi acolhido por Pedro num entusiasmo delirante: “Cara, sabe quem marcou comigo aqui hoje? A Sandra! Acredita?”

Ernesto, numa aparente indiferença, estranhou: “Pedro, você está lembrado que a Sandra... morreu, né?”

Ernesto, Pedro e Sandra eram na faculdade um trio inseparável. Entre os colegas, sempre à margem daqueles afetos públicos, havia quem garantisse: os rapazes eram jurados de paixão pela moça, e que, em meio à doce e até invejada amizade, travava-se uma aguerrida disputa amorosa a resultar, a qualquer instante, em uma crise dramática. Para isso, bastasse a moça se decidir por um ou por outro.

Sabia-se que os três, além do grude na sala de aula, estudavam juntos, saíam para beber e se divertir, viajavam, compartilhavam quartos – e até camas – de pousadas e hotéis, numa obscenidade de querubins.

Na tão certa e temida noite de formatura, algo aconteceu. Pedro e Ernesto estavam intranquilos, reservados e separados. Criam: a partir de então a chave viraria e cada um seguiria o seu caminho profissional e a sua própria vida. Sandra, pelo contrário, estava exultante, distribuindo vigorosos sorrisos e olhares para o futuro que se anunciava, confraternizando com todos os colegas e misteriosamente dispensando a costumeira e exclusiva atenção à dupla.

Poucos meses depois, veio a bomba: uma doença incurável, repentina e dolorosa tomou conta de Sandra. A notícia se espalhou ligeira, os colegas a socorreram, chegaram junto, choraram juntos, e ela, mesmo morta e recolhida no derradeiro leito na lama, após uma noite quente e sem ar, esculturava a beleza risonha de um amor quase virginal.

Ernesto, logo à primeira notícia, abandonara tudo. Não saía de sua cabeceira por nada, envolvendo-a em carinhos e mentiras esperançosas. Muitas vezes ela perguntava: “E Pedro, onde está que não vem, aquele ingrato?” Nunca soube, mas Pedro sofria horrores. Trancara-se no seu quarto, inconformado, a beber e a chorar noite e dia. Na época, como fosse segredo, confessou a Ernesto o seu desmedido amor. Então, numa simulada surpresa, o amigo sugeriu esquecê-la.

Pedro e Ernesto se viram pela última vez no funeral de Sandra, e não se falaram nem ali nem nunca mais. Até aquele dia, anos depois, quando Pedro o chamou para se encontrarem naquela praça. Nela, Ernesto, muito delicadamente, o inquiria: “Pedro, ela falou mesmo com você? Quando? Como?” Pedro o respondia com uma certeza fulminante: “Ela me ligou, marcou aqui mesmo em nosso baobá. Lembra o baobá?”

No jardim da praça havia um baobá. Uma tarde, antes da formatura, embriagados, ensombravam-se no baobá, quando Sandra sentenciou a amizade tão duradoura quanto ele, estreitando em um abraço o choro doloroso de uma insuportável separação.

“Cadê o seu celular, quero ver essa ligação”, insistiu Ernesto. Pedro procurou nos bolsos, na mochila, não o encontrou. Colocou as mãos na cabeça, desesperado. Como atendera o telefone em casa, devia tê-lo esquecido por lá: “Cara, a gente pode até se desencontrar. Tenho que ir buscá-lo.” Ernesto, assistia com certa dor àquele nervosismo: “Pedro, olha, não tem telefone... Não adianta, ela...” Pedro não o escutava: “Faz assim, Ernesto: fica aqui, caso ela chegue. Não deixa ela ir embora. Vou em casa pegar o celular, vou provar para você. Fica aí, não deixa ela ir embora, volto já!”

De fato, não tardaria nada e Pedro retornava agarrado ao seu celular. Mas estacou ao ver um grande alarido em torno daquele baobá. Pessoas rodeavam o corpo ensanguentado de um homem. Era Ernesto. Esperava a volta do amigo. Distraído, no seu íntimo, queria crer nele. Daí surpreendido por um assaltante, reagiu, sendo brutalmente apunhalado e tombando sobre as robustas raízes.

Pedro quedou-se pasmo ao lado do amigo, quando ouviu o sinal de seu celular. Pegou o aparelho e olhou o visor. Era mensagem de Sandra: “Perdoe-me, querido, sempre amei Ernesto.” E ali, diante de todos, um homem choraria suas dores mais profundas a esmurrar o cadáver indefeso e realizado de um morto.