Ilustração: Valber Benevides
No
meio de uma correria dos diabos, uma moradora
faladeira do Monte Castelo veio me chamar, pois aquele nosso novo vizinho,
o Nilto Maciel, estava preso fora de casa. Preso? Fora de casa? Como? Fui lá.
Na calçada, algumas pessoas espremiam as oiças no
muro, na tentativa de acudir aquele “senhor que morava sozinho e que só botava
o nariz fora de casa para receber a correspondência e, vez por outra, pessoas.”
Aproximando-me, também ouvi a sua voz por um combogó:
– Um chaveiro. Podem me chamar um
chaveiro? Estou preso aqui. Eu pago.
Conseguiram por ali o tal chaveiro. O rapaz,
acostumado com as situações mais estranhas e descabidas, nem nada perguntou.
Foi logo descerrando o portão, os cadeados e tudo mais que encontrasse pelo
caminho. Entrei em seguida, ouvindo do dono da casa:
– Fecha. Fecha logo. Não deixa ninguém entrar!
Assim o fiz, quando, repentinamente, pasmei: lá estava
o Nilto, em cuecas, no pequeno jardim. E, que horror: quase não acreditei
quando vi seis braços emergindo de seu tórax magro.
– Tá olhando o quê, Netto? Em casa, eu só ando de
cuecas. É pecado? Vou para o inferno por causa disso?
Passado o susto e dispensado o chaveiro, me explicou
que estava na lavanderia do quintal, lavando justamente as cuecas, quando um
vento inesperado lhe trancou a porta da cozinha. Correu o oitão na esperança de
ter deixado a porta da frente aberta. Não deixou. Assim como também não levava
o celular com ele – coisa que sempre lhe aconselhava: “Nilto, você mora só, não
pode ficar longe de celular!” Daí, pedia socorro aos passantes e curiosos
desconhecidos à calçada.
Postamo-nos na sala. Ele, dobrado o joelho sobre o
peito, sacudia a cadeira de balanço. Na mesa ao lado, uma canequinha com a logo
do Caffé Portuguez. Por trás dele, ao invés da Bíblia, A Besta Humana,
de Zola. E, sobre este, a estatueta de Nossa Senhora da Palma, padroeira da
cidade natal de boa parte de suas mentiras.
Eu, sentado no sofá, bebia a reserva de Coca-Cola,
fingindo não estranhar aquela sua inusitada aparência de deusa hindu. Na verdade,
sempre nos perguntamos como ele conseguia fazer tanta coisa ao mesmo tempo.
Estava aí o como!
Tranquilo, pôs-se a falar do atraso que aquela
situação lhe causaria – a cada dia acordava mais cedo. Então, ali mesmo cortava
folhas de papel com endereços impressos, despejava cola no envelope, guardava
um livro a ser enviado para um, outro livro para outro, rabiscava alguma coisa
em seu diário – hábito que trazia de menino – e separava os livros que recebia
de autores de todo o país. E, quando alguns de seus membros excedentes
se desocupavam, distraíam-se em quedas de braços.
Debochando de meu assombro silencioso, relatou:
– Quando criança, sonhava em ser
goleiro profissional do Fortaleza, sabia?
– Sério, Nilto? Mas preferiu escrever, não é?
– Pensando bem, Netto, eu preferia ser vagabundo. Era
meu grande sonho. Mas não consigo viver sem fazer nada. Vejo as pessoas
rezando, fazendo crochê, vendo TV, passeando pelas ruas, sentadas nos bancos,
sem nada a fazer, tristes. E é verdade, elas não sabem mesmo o que fazer da
vida, do tempo. Tenho muita pena delas. Mas eu não sou assim. Estou sempre
muito ocupado, a cabeça fervilhando de ideias para livros.
– E esses personagens, cara, você tira de onde?
– A maioria surge por acaso. Não busco nada, não corro
atrás deles. Vêm num piscar de olhos. Não os cato nas ruas. Eles se entregam a
mim como folhas mortas, papéis velhos, cacos de vidro, esterco. Acolho alguns.
Lapido-os, lavo-os e faço deles arte literária. Outros, porém, não existem nem
como ideia ou, se existem, estão bem enterrados ou perdidos nas páginas de
velhos alfarrábios. Fui procurá-los nas enciclopédias, nos dicionários, nas
biografias, em compêndios de história. Teci-os com o objetivo de exibir alguns
personagens históricos, não como seres superiores, extraordinários, mas tão
somente como seres humanos.
Enquanto ele discorria seu falatório quase sempre
mirabolante, eu folheava seus diários. Percebi o quanto Nilto era obsessivo por
detalhes e números. Contava tudo. Registrava o número de contos, romances, poesias,
artigos. Classificava suas colaborações em blogues e revistas de centenas de
pessoas. Catalogava o que publicava em seus blogues, site e nas redes sociais.
Contava o número de linhas e de páginas de cada livro: “Vasto Abismo:
4.680 linhas; Carnavalha: 3.750; A Leste da Morte: 3.500 linhas.”
Além de criar manuais para tudo, como os de passo a passo de seu equipamento
tecnológico, cadernos de registro de dados dele, da esposa, das filhas – sempre
me falava delas: Fernanda, Menita, Nioche e Tusa –, telefones dos
amigos, e-mailing, agenda de rotinas, relação de medicamentos, cardápio e
estudos de personagens – bem parecido com casting teatral –, registro
de e-mails enviados e recebidos, acervo de fotos e vídeos etc. Uma mente
enlouquecidamente organizada!
– Tá pensando que é fácil, é? Tá
pensando que é fácil? Eu já comi o pão que o diabo amassou! – bradava, olhando
para o teto com ar solene. – Desculpe-me o lugar-comum, mas preciso ser bem
didático, para não incorrer no pecado da inverossimilhança – depois ria, ao
balançar de ombros.
Naquele momento, o carteiro gritava ao portão,
empurrando livros e cartas pela goela abaixo de sua caixa de correio. Aí, para
mudar de assunto, a respeito da constante pilha de livros que via no sofá – boa
parte era de tufics, exemplares repetidos –, perguntei:
– Nilto, você precisa mesmo receber todos esses
livros? E ainda escrever sobre eles? Não é melhor usar o seu tempo para
concluir o seu romance, dedicar-se a novos contos e projetos?
– Herança de meu tempo de editor. Às vezes, é bom
saber o que andam escrevendo. Machado e Shakespeare entenderiam. Tem uns mais
difíceis de engolir. Um saco. Por isso, tento embromar alguns e alego
falta de tempo, morte de parente próximo, incêndio em casa, paralisia nas mãos,
cegueira momentânea, doença grave. Digo até que morri, mas eles não acreditam –
ri. – Acho que já me consideram imortal.
– É, essa coisa de se dedicar à literatura e de ser
escritor não é fácil...
– Também não é difícil. Meu primeiro livro, mirrado,
de poucas páginas, capa de causar espanto, sem abas, cheio de erros
tipográficos, saiu por uma gráfica de Fortaleza. Paguei a despesa, programei
lançamento num bar, convidei amigos da faculdade, do trabalho e vizinhos e me
tornei escritor. Simples assim. Por isso tem escritor saindo pelas paredes.
– Mas você conseguiu vários desafetos nessa coisa de
resenhar livros, não foi, Niltão?
– Netto, é preciso ser franco em
avaliação de arte, como em tudo na vida: nada de ludibriar os iludidos, passar
mão na cabeça dos incompetentes, elogiar os medíocres. O copista ou escrevedor
pode passar anos e mais anos sendo louvado em jornais, revistas, programas de
televisão, blogues, por resenhistas, jornalistas, arcebispos, generais,
ginecologistas, deputados, beldades do cinema e da televisão. Pode ganhar
prêmios à vontade, cadeiras cativas aqui e ali. Pode ser traduzido para mil e
uma línguas e ganhar milhões de dólares. Continuará medíocre para sempre, até
desaparecer de vez, ao morrer, como se nunca tivesse existido, como se nunca
tivesse escrito uma só página.
Levantou-se, foi à cozinha tomar seu remedinho com um
gole de água. Levava a efeito, fielmente, os horários. Há tempos não bebia nem
fumava e evitava sair para não esquecer de cumprir a sua rotina de tratamento.
Queria viver para escrever e publicar muito. Estava numa ânsia de livros,
produzindo como nunca. Na volta à sala, após concluir uma roufenha cantarolada
“Dez anos”(1) de araque, continuou:
– Os escritores daqui gostam de andar juntinhos, de
mãos dadas, embora em seus sonhos matem uns aos outros. E isso, sabe por quê?
Por causa do mercado literário que é como um disco voador: todo mundo diz que
vê ou viu, todo mundo é doido para dar uma voltinha ao redor da galáxia, mas a
vidinha cá na terra de Alencar continua tão difícil para o escritor de hoje
quanto era no tempo dele.
– Pois é, Nilto, mas o escritor
não precisa viver nessa fixação de publicar, de se lançar o tempo todo. É muito
bom ir devagar, duvidar de si mesmo, insistir na leitura autocrítica, ouvir os
colegas mais experientes, ler sempre que possível autores variados. Você tem
uma carreira de muitos livros, de prêmios, conhece muita gente no Brasil, tem
seu trabalho reconhecido e, sendo agora aposentado, tem a vida inteira para se
dedicar ao ofício.
– E por isso eu escrevo todo dia, leio todo dia.
Acordo cedo para ver o sol queimar o chão, para me ver dentro do espelho
(embora me saiba feio), para esperar a visita (esperada ou inesperada) das
moças de corpo e sangue expostos ao meu vampirismo de esteta. Todo dia me
correspondo com meus amigos, que são centenas. Não falarei deles, porque eles
falam de mim a toda hora e estão quase toda noite em minha casa, a fuçar meus
livros raros, a me pedir prefácios e resenhas, a me fotografar e filmar, a
fazer perguntas enigmáticas. Mas, como santo de casa não faz milagre, nenhum
deles me chama de grande escritor, contista fabuloso, romancista de primeira
linha, essas coisas que diz todo leitor sabido.
Difícil não rir diante da
indireta no queixo. Mudei de assunto, lembrando de uma viagem nossa para evento
em Limoeiro (2), na qual foi surpreendido com homenagem – não confessava, mas
adorava as homenagens:
– E quando iremos viajar novamente, Nilto? Não sente
falta de sair um pouco da cidade?
– Nunca me interessei muito por
conhecer as cidades. Prefiro ficar em casa, a escrever, mexer e remexer nos
meus textos. Como não bebo mais, não me sinto à vontade em ambientes festivos.
Mas sabe do que eu gosto mesmo? É de pensar. Por isso eu vivo penso, torto.
Dizem que quem muito pensa fica torto. Fiquei torto muito cedo. Ou nasci assim.
De vez em quando me dá uma reina de pato doido e saio por aí, para ver o mundo,
as pessoas. Mas volto logo para casa com saudade de mim.
– Tem algum novo plano em vista?
– Não só um. Infinitos. Inclusive de dominar o mundo,
ficar riquíssimo, cercado pelas mulheres mais bonitas do Planeta e de publicar best-sellers.
Mas vou precisar de sua ajuda, por que eu não entendo nada de editais, nem de
projetos, nem de prestação de contas e não sei contar piadas – e largou uma
estrondosa e comprida risada de mentirinha – aha-ha-ha-ha-a-ha... –, enquanto
as mãos corriam pelos teclado do computador, à boca da impressora e empurrando
um pen-drive teimoso: – Acode-me, são Webston (3)!
– E você precisa mesmo disso tudo, Nilto? Não está bem
como está?
– Olha, não sou um homem realizado. Se me realizar,
terei chegado ao topo do Everest, à beira do abismo, ao fim da picada.
Certamente Camões sonhava outros lusíadas; Dante, outros paraísos; Shakespeare,
novos otelos. Não, não sou satisfeito comigo, nem com o mundo. Tudo está para
ser feito, realizado. Mesmo assim, hoje acordo satisfeitíssimo porque alcancei
minha alforria mental, libertei-me das muralhas de Jericó, da moral puritana,
das crenças infantis de paraísos perdidos.
Levantou-se novamente e me pediu para acompanhá-lo à
cozinha. Abriu a porta da geladeira, ofereceu-me uma coisa ou outra e de novo
mais Coca-Cola. Afastava os pratos e talheres sujos, que guardava lá dentro –
para evitar as baratas –, e me falou das últimas visitas, dos últimos
telefonemas. Criticava, elogiava, perguntava se havia lido o livro tal ou
aqueloutro recém-lançado. Insistia, por pura molecagem, em perguntar se eu
queria que ele escrevesse elogios ao meu livro que, por sinal, não gostou. “Mas
de jeito nenhum!”, respondi. Daí, me contava as histórias mais absurdas de
resenhas e prefácios pedidos por encomenda.
Fomos ao quarto do quintal, onde a manivela de um
antigo mimeógrafo pedia intercâmbio(4):
– É isso, Nettó, deixemos a vida
alheia para lá. Cuido eu da minha, cuida você da sua. E por falar em minha
vida, você sabe que me tornei quase um animal doméstico. Uma espécie de cão sem
dono, trancafiado numa casinha de madeira, quase sempre com a coleira atada à
argola do muro. Minha missão, porém, não é rosnar e afugentar ladrões ou
intrusos. É escrever meu epitáfio, dia e noite, num escreve e apaga sem fim, no
chão, no muro, na baba, no céu, na cabeça. Afinal, meu caríssimo amigo, sou
marginal da literatura, um escritor de poemas, contos e romances. Há muito
deixei de sonhar com glórias e famas. Tudo isso é passageiro. O que é bom fica,
permanece. Sem precisar de muletas, fanfarras, galardões ou medalhas.
(1) Dez
anos,
de Rafael Hernández, versão de Lourival Faissal, sucesso de Emilinha Borba
(conhecida como “garota grau dez”).
(2) Jornada
das Letras e I Feira do Livro de Limoeiro do Norte (2011)
(3) Webston Moura nasceu em Morada Nova,
mas reside em Russas. Poeta e blogueiro, autor de Encontros Imprecisos:
insinuações poéticas, era o fiel “consultor técnico” de Nilto Maciel,
coeditor do blogue Literatura sem Fronteiras.
(4) Nilto Maciel criou o informativo Intercâmbio,
impresso em mimeógrafo, distribuído pelo autor para escritores residentes em
diversos estados brasileiros.
Nilto Maciel (1945-2014) nasceu em Baturité, Ceará. Foi um dos
fundadores da revista O saco, em 1976. Morou durante muito tempo em
Brasília, retornando ao Ceará em 2002. Editou a revista Literatura: revista
do escritor brasileiro, de 1992 a 2008. Premiado autor de livros de
poesias, contos, romances, novelas e ensaios, como Tempos de mula preta,
Punhalzinho cravado de ódio, A última noite de Helena, Os
luzeiros do mundo; Luz vermelha que se azula, Pescoço de
girafa na poeira, Guerreiros de Monte-Mor, Como me tornei imortal: crônicas da
vida literária e Vasto abismo, entre outros. Participou de diversas
antologias e organizou, com Glauco Mattoso, em 1977, Queda de braço: uma
antologia do conto marginal. Mantinha alguns blogues, como o Literatura
sem fronteiras. As falas de Nilto, na crônica, foram extraídas e adaptadas
de entrevistas, e-mails e da obra do autor.