Bate-me à porta o de 2011 — o “Velho”, o de 2010, pula-me a janela, em cinzas, sem despedidas. O “Novo” chega envolto em fraldas enrugadas de promessas de esperanças, o anúncio de vida bafejante aos olhos nunca tristes, sempre azuis, a trazer, como de costume, as mãos vazias. Já amadureci o suficiente para saber: ele nada traz que nós já não tenhamos.
Pois sim, vem ele, todo em Menino, e abanca-se no sofá. Olha-me terno, como a saber de tudo de mim, sorri balançando as perninhas ligeiras e pergunta sobre o Velho, o que foi dele. Diria-lhe muito, entre confissões cansadas de se repetir por demãos de cal de incompreensão e certa autopiedade, mas pouco de nada lhe disse, porque a palavra falada seca a língua, trava à garganta, finca-se entre os dentes, dói ao peito resfolegante. O pensamento, coitado, mais confuso do que provador feminino em véspera de Natal, despeja as suas verdades:
— Tenho os melhores amigos do mundo, a melhor família — embora sinta-me sempre irremediavelmente só — e o módico castigo de se tentar escrever escrevendo.
Entre palavras, a correria insensata, sempre de trabalho — mais do que mereço —, sempre dos outros e pouco de mim. Mesmo assim, passei a limpo as minhas faltas, ausências, cansaços e promessas não cumpridas que puseram por terra a estima de alguns menos compreensivos. Tinha que lembrar e pedir-lhes desculpas. Antes, lembrar de! Por assim dizer, lembrei de telefonema ao escritor Moacyr C. Lopes. Quem atendeu disse-me que ele estava doente e, mesmo assim, ele fez questão de falar-me. Na voz fraquinha e humilde, havia lido meu e-mail de solicitação de texto e não poderia deixar de responder-me. Chamou-me de amigo, e afirmou: tão logo melhorasse um pouquinho, tivesse a certeza, o faria com a maior alegria. Não pôde. A tal tomou-lhe conta de vez. Faleceu uma semana depois. Foi-se com o Velho. Não teve tempo. Lembrar de! Na semana passada, durante uma das 100 confraternizações em que fui convidado — cheguei atrasado ou faltei —, uma senhora, a d. Zuila, no ecoar de seus 92 anos, olhou-me nos olhos e vozeou: — A vida é breve demais... É maravilhosa, mas o que fica é sempre muito, muito pouco... Tempo, sempre o. O Menino e o Velho brincando de revezamento, como a “pular carniça”, sem dós de senhor ninguém, imagine se de mim.
Às palavras da d. Zuila, deu-se a melódia: a incompletude de vida baixou-me em cortina. A lua, toda céu, insinuava ondas no mar. Desfiando a história de Aaba, que começou na Cachoeira do Riacho do Sangue, rompeu-me o coração alfinetado de saudades — não há uma única lembrança que não me doa —, o desejo de saltar no escuro, a esfolhar uma a uma da mealhas de meus dias, desfazer-me dos trilhos seguros, largar por aí os entulhos às costas, desmanchar os escritos, continuar a apaixonar-me, como desde garoto, pela desconhecida que me passa na rua, mesmo quando ela nunca o fora nem jamais o será por mim. Amar, um dia — ou dois, ganhar o mundo, perder a vida, sumir! Ora, como me lembra a princesa Isadora, das Claráguas del Noroña, na voz de Manoel de Barros: “Tenho em mim esse atraso de nascença.”
Daí que o improviso dessa crônica berce sem atrasos ou pudores e seja absolutamente branco, como se não existisse, nem fosse legível, como não se pudesse guardar. Que se queime, que se rasgue, que seja esquecido, que carregue do cimo distante a paz mais incômoda. Que chegue como sorriso tatuado na testa, a desconstruir espíritos, a apagar velas, a torcer orelhas, a beber-lhes da carne. Assim, verei aquele Menino se ir, veloz, mas marcando em definitivo a única coisa que nos pertence realmente nesta vida: o mais que imperfeito e impaciente agora!
Raymundo Netto que vez ou outra se lembra do mundo grande. Contato: raymundo.netto@uol.com.br blogue: http://raymundo-netto.blogspot.com