quinta-feira, 15 de setembro de 2022

"Vida Linda de Morrer", de Raymundo Netto para O POVO

 


A dona Morte estava triste. Tirante uns diligentes suicidas – muitos deles querem se matar, mas não querem morrer –, era mesmo a indesejada das gentes.

Há zilhanos, desde que o mundo é mundo vasto mundo, transitava ela por aqui, sempre à espera do instante solene de sua existência. Sim, existência, porque vida mesmo a Morte não tinha. Seria quase uma condição sine qua non para ela, declinar de qualquer estertor de vidas, não se apegar a nenhuma delas, ser no mundo a grande cultora de cascas vazias. Assim, pensava-se, fora ela criada e experimentada na mais suprema incompreensão, sem possibilidade sequer de curtir seus frios seguidores e sem nunca se permitir prazer nenhum. Afinal, o prazer, assim como a alegria e o amor, dizem, é condição de vida. Entretanto, no nada absoluto do mundo, mantinha ela um segredo: morrera de amores uma única vez na vida – pelo poeta Dante, que conseguiu convencê-la, numa promessa de Vita Nova, que o amor seria o prelúdio da morte, estratagema depois revelado para aproximar-se da sua amada Beatrice. Daí, sepultou de vez todas as afeições e o seu coração traído com Dante foi-se. E a foice com Dante!

É raro que as pessoas dediquem seu tempo – de vida, porque o tempo da morte é o silêncio – em aprender a morrer. Já dizia Sêneca, o moço desafeto de Messalina, “quem não souber morrer bem, terá vivido mal”.

Aliás, a dona Vida, sua irmã, ao contrário, vivia em regalos, quase uma parteira, celebrada e lembrada em festejos, desejada e aplaudida por todos em sopros de velinhas e de línguas de sogra, estampada em camisetas de feira e panos de prato. Sucesso de público e de crítica – mais desta, pois criticar a vida alheia é quase um exercício, sabido que a língua é um músculo.

A pobre dona Morte, não negava, colhia invejas da irmã. Com os pés calejados de tanto acompanhar despojos, sem qualidade de vida ou autoestima, vista com temor e desconfiança, a Morte naquele dia rebelou-se. Plantou o pé e bradou ao infinito: “Nem morta!” E nós sabemos que juramento de morte sempre foi coisa que deu certo – ou muito errado – por aqui.

O fato é que durante esse tempo o sofrimento do mundo aumentou. Ora, a imortalidade é um inferno! Foi quando ela percebeu que, mesmo contra a sua vontade, sua presença inda seria sentida por todos. Pessoas sofriam a perda de amores, de amigos, de afetos, das horas e de outros bem-quereres na distração eterna de todos os dias. Sim, ela seria o que há de mais presente e definitivo na rotina mundana. Pôs-se a sentir na carne a dor mortal dos corações feridos a suspirar diante de porta-retratos, de reflexos em espelhos, do convite para o café que não chegou, na audição daquela música da juventude, no ecoar das gargalhadas daqueles filhos, agora adultos, que não moram mais ali.

Perder é a morte em prestações. A Vida, chama breve, uma sala de estar das tintas pálidas da Morte, servindo-lhe aos poucos – às vezes, aos montes.

O que fica é a dor. E a dor que não passa nunca se chama saudade, e como sussurrou em seu ouvido o cronista, “é na morte onde ela mora”!

Foi quando a Morte despertou e se viu, em essência, tão igual a todos os mortais, no vagar aprendiz do cortejo a caminho da solidão.

 

Publicada originalmente em Quando o Amor é de Graça! (EDD, 2019), de Raymundo Netto (para adquirir o livro, WhatsApp da editora: 85 99183.8515)


quinta-feira, 1 de setembro de 2022

"Liberdade é Não Mentir!", de Raymundo Netto para O POVO

 


Parece mentira, mas não gosto de mentir.

E o quanto não gosto de mentir, gosto em igual volume de dizer “Eu não minto!”. Isso irradia em mim uma sensação de liberdade incrível, comparável até ao quinto, não digo o mesmo para o sexto, mas ao exato quinto dia útil do mês.

Minha mãe, que já herdara esse defeito da mãe dela, detestava a mentira. Para ela, a maior traição. “Quem mente engana a si mesmo!”, repetia com bravura adolescente a quem quisesse ouvir, muitos até, de berço, praticantes do exercício fraudulento da palavra, que ficavam boquiabertos – principalmente se fossem pacientes dela, que era dentista – diante daquele monumento humano de honestidade e inocência. No mínimo, pensavam: “Aí mente...” ou, os mais crédulos, “Ah, coitada...”

Decerto que mentir socialmente pode ser considerado um treino da criatividade e/ou da diplomacia, muito útil para calar aqueles instantes de incômodo silêncio nos quais não é saudável trocar palpites sobre política, futebol ou religião, restando pouco a fazer com a língua. Há quem diga, inclusive, que mentira boa é aquela mais convincente, mais verdadeira do que a duvidosa verdade – muitas vezes, por razões morais, preferem chamá-la de “alegoria” ou “retórica”. 

Ah, e por falar em língua, os bons escritores, verdadeiros canhões da lorota, não pagam por ela, mas por sua pena falaciosa. Isso, quando não transferem o seu talento para a vida prática, mais especificamente para alcova, sede do imaginário ultrarromântico, gastando uma torrente que, melhor aplicada, daria para forjar romances épicos, em vez de crises conjugais ou crimes passionais sob a luz do luar.

Alguém pode confessar, saramagueando o próprio, que seria muito violento viver se não existisse a mentira. Pessoas que, a Milli Vanilli, fingem tão completamente ser o que não são que acabam por perder a identidade e a confiança, tal qual aquele pastel mineiro sem recheio, cujo nome popular é “mentira”. E por falar em Minas Gerais, foi de lá que se iniciou no Brasil o Dia da Mentira, quando em 1º de abril de 1848 publicaram um periódico denominado, acredite: “A Mentira”.

Eu, por aqui, optei por não mentir em troca dessa tal desejada e imensurável liberdade. E quando falo em liberdade, me refiro à tentativa de poder ser nesse mundo, mesmo que apenas no (ray)mundo, o mais verdadeiro possível. Que possa pensar e me expressar como e quando quiser. Quedar-me, ao máximo, ao lado das pessoas das quais mais gosto e/ou amo. Vestir-me, ler, ouvir o que me interessa ou ir apenas a lugares que me fazem sentir bem. Poder viver o luxo de não ter nada e isso ser tudo que eu preciso para me sentir vivo, nem melhor nem pior do que sou. Ter a certeza de que não podem falar de mim, pois ninguém paga as minhas contas. Ora, se às vezes nem eu as pago!

Tudo isso, pois entendo que minha mesmo, apenas a efêmera vida, esta que se abriga nesse corpinho meia boca de cinquentinha, minha única, verdadeira e intransferível morada, quase um trailer riponga, modelo Sgt. Pepper’s.., de pneus recauchutados, mas a quem devo respeito e alguma atenção.

Sim, poderia até jurar, mas minha mãe também me dizia: “quem jura mente”. Então, fico por aqui, de verdade.