Publicado em Quando o Amor é de Graça! (EDD, 2019)
Anavã! Chegamos a junho, mês em que
aconteci neste mundo, no meio do caminho, feito Pedro, ligeiro e cianótico,
fugido de Natal, dependurado no bico de cegonha trapalhã e berrando: “Eu quero
nascer é no Ceará!”
Por isso, de não conhecer na Terra nada que me papoque mais
as lembranças do que festas juninas, balõezinhos chineses, barraquinhas de
palha de coqueiro, o cravo tinindo na castanha do pé-de-moleque ou a voz ecoada
do Gonzagão em pagode russo na boate Cossacou: “Foi numa noite/igual a esta/que
tu me deste o teu coração./ O céu estava/todinho em festa/ pois era noite de
São João.”
Hoje, a cultura invasiva da sociedade
do espetáculo sapucaicou as nossas festas, que deperecem ao afetado glamour e
ao som de axé ou forró de plástico, que nem de longe imita o que nos fere a
saudade.
Por outro lado, dia desses, ao me
encostar em mesinha de plástico, numa praça em areias na rua do Sabão, onde se
dava uma quermesse de igreja, olhava para o céu estrelado de bandeirinhas
coloridas de papel, e recordava a animação dos bairros de uma Fortaleza
interior, quando os jovens se aproveitavam das festividades para escolher como
par de quadrilha aquele ou aquela a quem o peito devotava gemidos de paixão,
mas era desencorajado de se achegar.
Nos dias de ensaio e de preparação, porém,
estariam juntos, mesmo que disfarçando o ribombar da emoção e o desafino típico
de primeiro amor, mas de nunca sentir tanta alegria, cortando papel de seda de
cor, colando com grude de panela bandeirinhas no barbante de corda, pedindo
pelamordedeus que a mamãe não esquecesse de emendar aqueles retalhos na calça e
na camisa ou mesmo de costurar o vestido florido de chita.
Afinal, o dia da festa, foguetório no
ar: a rua de pedras toscas tomada de barraquinhas de jogos e tabuleiros de
paçocas, baião de dois, espetinhos, vatapá, bolos, refrescos e aluá. A fogueira
de lenha estalava faíscas nos olhos curiosos da meninada, enquanto os quadrilheiros
chegavam: as “damas” com vestidos de babados e tranças caídas em laços de fita nos
ombros, empunhando uma peneira de palha. Os “cavalheiros”, sob chapéus também de palha, ao pescoço lenço de cor, em
camisas e calças rotas, bainhas tortas e alpercatas de couro. Encontravam-se os
pares a ensaiar um passo diferente de “motocicleta”, “cavalo” ou “aleijado”. A
moça, mais ousada, pintava a lápis o bigode, a costeleta, o cavanhaque no par
desajeitado. Ele, a pretexto de lhe tocar o rosto, ali pintava uns três ou
quatro pontos negros, deitando o olhar já cativo àquele sorriso que lhe parecia
feito de luar.
Vinha lá o pai Francisco tocando o
seu violão bi-rim-rim-bão-bão e o seu delegado. Após o
casório, a quadrilha começava com anavãs, anarriês, balanceio, serrote, túnel,
parafuso e passeio: “Lá vem a chuva!” “Olha a cobra!”
As senhoras alimentavam
de gás os candeeiros, enquanto o sanfoneiro, no resfolego do seu fole de oito
baixos, convidava para o rapapé no salão, que ameaçava ir até amanhecer e a
palha voar. Enquanto isso, o cavalheiro, com o coração molinho, molinho, despontava
um inocente “Olha pro céu, meu amor, veja como ele está lindo...”, sendo
acolhido por um beijo de assalto “tão bonito e tão sincero feito festa de S.
João”.