Pronto.
Apenas isso na estampa da pequena capa do livro. Nem indicação do autor nem da tipografia
de origem. Como se lançado ao vento, o romance, de título curioso, Traços e Troças: crônica vermelha – leitura
quente, veio ao mundo, mais especificamente ao mundo maceioense das
Alagoas.
Mais tarde,
a partir de “pistas” em sua literatura, em sua atitude política e ideológica, o
jornalista Pedro Nolasco Maciel passou a ser considerado, por historiadores e
críticos, o “responsável pela criança” que, nesse caso, já nasceu andando,
melhor, dançando.
Mas,
afinal, o que nos traz de novo esse autor? Para tentar saciar a curiosidade dos
seus novos leitores, irei me valer dos “Traços Biobliográficos”, assinado por
Moacir Medeiros de Sant’Ana, historiador, membro da Academia Alagoana de Letras
e do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, publicados como introdução à
segunda edição da obra, pelo Departamento Estadual da Cultura, cujo diretor, à
época, 1964, era o jornalista Arnoldo Jambo, que também assina o texto que
antecede a referida edição, pela qual nos guiamos na condução editorial desta
nova edição.
Pedro
Nolasco Maciel nasceu em Maceió, Alagoas, em 1861. Filho de Raimundo José de
Sant’Ana e de d.ª Silvina Ferreira Guimarães, iniciou-se no trabalho de tipógrafo
no Diário das Alagoas.
Jornalista,
um dos mais atuantes de seu tempo, conforme pode-se observar pelas diversas atividades
exercidas e pelo seu legado literário e jornalístico, foi um dos fundadores e
redatores de Gutenberg, órgão da
Associação Tipográfica de Socorros Mútuos, veículo mais veemente na difusão das
ideias republicanas, que surgiu, pela primeira vez em janeiro de 1881, e,
posteriormente, administrador do Gazeta
de Notícias, surgido em 1879.
Em
fevereiro de 1886, Nolasco Maciel publicou, em volume único, pela Tipografia
Mercantil, o romance A Filha do Barão – com o também curioso subtítulo “estudos
românticos e históricos” –,
que, segundo estudiosos de sua obra, a estética, peculiaridades e estilo, trazem
semelhanças que confirmam-lhe a autoria de Traços
e Troças. A Filha do Barão,
considerado o primeiro romance de costumes da sociedade alagoana, foi escrito, originalmente, em
folhetins, ou seja, em fragmentos veiculados no Diário das Alagoas, a partir de 20 de novembro de 1885, sob a
assinatura de iniciais “M.P.N.”
Em 1887, ano
em que era redator do Tribuna do Povo,
outra produção: Estilhaços: produções
literárias e sobre política. Em 1888, ano de publicação de Conferência Pública, colaborava com o
semanário Lâmpada.
Nos últimos
anos da monarquia, os movimentos abolicionista e republicano chegaram a Alagoas.
Grassavam entre os membros, entre eles, entusiasticamente o Pedro Nolasco, da
Sociedade Libertadora Alagoana, fundada em 28 de setembro de 1881, e pelos
jornais Gutenberg – já
citado – e Lincoln.
Jornalistas, intelectuais, professores influenciavam a adesão de jovens
à campanha da abolição e da república, campanha esta divulgada pelo Centro Republicano Federalista, o Clube
Federal Republicano e o Clube Centro Popular Republicano Maceioense.
Era também
afiliado do Club Literário José Bonifácio, onde exerceu a função de
vice-presidente. Além dessas, participou de outras associações e, dentre elas,
foi orador do Montepio dos Artistas Alagoanos, o que comprova a sua tendência
gregária.
Em 3 de
janeiro de 1889 foi nomeado carteiro interino no Departamento de Correios e
Telégrafos e, em abril, é efetivado. Em 1890 seria promovido a 2º oficial,
sendo, entretanto, exonerado das funções em 1903.
Em 1891,
publicou Galeria de Alagoanos Ilustres
ou Subsídios à História das Alagoas, e, em 1892, o Indicador Postal. Em 1893, sob o pseudônimo de “Maceiolino”,
escreveu para O Momento.
Em 1899
colaborou com Constelação, e, em
1908, com O Popular.
Foi em 1899
que publicou Traços e Troças. O
motivo do anonimato do autor, assim como de sua origem tipográfica pode ser
compreendida, a priori, pelo viés da segurança, embora essa seja uma hipótese.
O fato é que, devido às características de seu estilo, entre eles o uso de
descrições de lugares e citação de personagens reais em meio a sua ficção,
atribuíram-lhe a autoria da obra. E do que trata Traços e Troças?
Arnoldo Jambo supõe que o subtítulo “crônica vermelha” foi “concebido
como com o propósito de caracterizar o livro como coisa não recomendável para
certo gênero de pessoas puras ou ainda em formação”. Continua, sobre a obra:
“Um quadro de costumes onde o bulício preguiçoso e os preconceitos provincianos
se fixam como estereotipando figuras de ‘croizé’, fraques pintalgados de caspas, barbas e bigodes hirsutos percorrendo velhas e incertas ruas maceioenses,
sob casas de biqueiras e sobre calçadas irregulares, cruzando de quando em
quando com matronas severas, tímidas ou mexeriqueiras, todas atufadas de panos
desde o queixo até a ponta dos borzeguins de camurça. E por entre vestes e
bisonhas aparências, em cada figura, um tipo popular daqueles dias: o
português que tocava cavaquinho – e de cujo instrumento tomou o nome toda a sua descendência –, um barbeiro, um livreiro, um jogador de bilhar, um mestre de banda de
música, um leiloeiro, um comerciante de tecidos, um alferes, um coronel
comandante, um veterano do Paraguai, um condutor de trens, carteiros, amanuenses,
engraxates, magistrados, sacerdotes, médicos, jornalistas, tribunos, vivendo
todos aquela vidinha miúda, imposta pelo acanhado do meio, pelo atraso e
pobreza material e, sobretudo, policiada pela rígida moral do catecismo
dominante.”
Afirma
Félix Lima Júnior, na apresentação à segunda edição de Traços e Troças, que Arnoldo Jambo escrevera, no Jornal de Alagoas, em 1962, sob o título
“Romance apócrifo em Maceió do passado”, o desconhecimento por parte dos que
fizeram e dos que fazem a literatura alagoana dessa experiência de romance em
Maceió.
De fato, o núcleo principal da história é composto pela trama romântica
de Manoel, jovem trabalhador, ingênuo e sério, completamente apaixonado – “estava
no céu” – e
iludido pelos “dentes alvos e as faces rosadas, levemente caiadas a
‘poudre-riz’” de Zulmira, na verdade uma “pimenta, menina quente, irrequieta e
mal-educada”. Ao paralelo, Juquinha, um ex-namorado e amante, homem forte, sem-modos
– o que
atraía Zulmira –, caixeiro do Centro Comercial; a d.ª Maria, mãe de Zulmira, mulher
ambiciosa e alcoviteira, “cínica [...] que arreganhava a boca sem dentes como
um buraco de morcegos nas catacumbas do cemitério velho da Viçosa”, atenta a
encontrar um futuro de segurança para si, por meio de bom compromisso da filha,
sendo cúmplice de diversas artimanhas polvilhadas no enredo de encontros e
desencontros de Traços e Troças.
Um dia, após passar por
desventuras, “achado dentro do mangue, roído de mosquitos”, encontra Serafim,
amigo do Juquinha, a revelar com galhofa a triste sina do noivo de uma
“criatura endiabrada e tentadora”, muito bela, que exibia desrespeitosamente em
uma fotografia. No momento, Manoel, tomado de vergonha e de ira, reconhecera na
fotografia a sua amada Zulmira. A princípio, como todo apaixonado, procurou
motivos para entendê-la e passou a delegar toda a culpa da moça àquela mãe
horrorosa da menina. Conclui: “A sociedade é corrupta. Não pergunta onde se foi
ver a riqueza, inda mesmo que tenha certeza de sua má procedência”. Mais tarde,
acorda: “Zulmira, embora formosa, não era mais do que uma caveira bem vestida”.
Aparentemente, a dúvida plantada
no coração de Manoel é o estopim da trama que passa a desenrolar-se mais rápida
e conflituosamente, e é em suas mãos que se coloca o destino da história. Por
outro lado, o personagem Zulmira cresce, evolui no texto de forma
surpreendente, podendo se equiparar às heroínas de nossos grandes clássicos da
literatura.
A história
carrega uma crítica à sociedade da época, passeando pelos cantos mais
esquecidos do meretrício, do brejo, da podridão, passando pela falácia e pelos
joguinhos de faz de conta da vida real, geralmente, denominados de “novelescos”.
O final é envolvente.
Nolasco Maciel descreve, como em fotografia, cada detalhe de sua cidade:
os bondes, os estabelecimentos comerciais, as repartições, os prédios, bilhares,
logradouros, as ruas, as travessas, os arrabaldes, as igrejas, os quartéis, os
hábitos, os modos de linguagem, fatos históricos – como a
deposição do governador Besouro, a Cabanada, a varíola que dizimou os
“escravizados” em 1888 –, os toilettes, os costumes provincianos – saraus, pastoris, festas, serenatas,
comemorações, etc. – e, envolvidos na trama, personagens reais, políticos, intelectuais,
abolicionistas, tipos populares, comerciantes, artistas, inclusive o próprio
Nolasco, identificados com precisão em centenas de notas do historiador Félix
Lima Júnior, que tivemos o prazer de apresentar nessa edição graças à gentileza
da autorização de seu filho, Cláudio Fernando Oiticica de Lima.
Em A Tribuna, em outubro de 1908, Nolasco publicaria seu Resumo da História de Alagoas
para Uso dos Incipientes, e, ao final de abril de 1909, publicou a novela Japy-Açara. Também em forma de folhetins deixou a novela Os Camunhenques e o História
de Alagoas, compêndio de cunho histórico. Colaborava com A Tribuna desde 1896,
inclusive com uma seção “A Lápis”.
Afirma Moacir Medeiros de Sant’Ana que, na sua última fase de
existência, Nolasco “entregou-se a boêmia”.
Parecia calar-se, então, nas Alagoas, aos seis dias de dezembro de
1909, e com apenas 48 anos, a voz de Pedro Nolasco Maciel. Sua literatura
quente, a sua crônica vermelha, entretanto, rompe as barreiras da mortalidade
comum aos comuns, e rasgou o verbo, entre traços e troças, e persiste no
clássico da literatura que hoje nos apresenta sua Maceió, ainda cidade-tempo
acanhada, a rebolir e a borboletear muito graciosa entre séculos.
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