Geórgia Cavalcante, Raymundo Netto e Carlos Carvalho
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As segundas-feiras costumam ser
dias horríveis para muitas pessoas. Principalmente para aquelas que adorariam
que os domingos fossem mais longos e que o fim da noite jamais chegasse. Entre
essas pessoas talvez esteja a figura do cronista de jornal, aquele que deve
estar com seu texto prontinho para que, já no café da manhã da segunda-feira, o
leitor possa se deleitar com as notícias trazidas pelo jornal. É claro que me
refiro aqui, especificamente, àqueles leitores que ainda não abandonaram de
todo sua relação com o folhetim impresso, não desconsiderando que o mesmo
ocorre com o leitor que lê o jornal em outro tipo de suporte. Esse, assim como
eu, provavelmente lê o que lhe interessa já na noite anterior.
O leitor, certamente, não sabe
das peripécias e malabarismos que o cronista às vezes precisa fazer para
entregar seu texto, mesmo em tempos de Internet. E, convenhamos, o leitor não
dá a mínima pra isso. O cronista que se vire, pois para o leitor, é o resultado
final que realmente interessa. Mas o jornal. Ah! O jornal! Houve um tempo em
que o jornal que trazia a crônica de hoje, estaria embrulhando peixe amanhã. Os
tempos mudaram e, hoje, poucas são as pessoas que comeriam peixe embrulhado em
jornal. Mas para onde vai o jornal que carrega aquela crônica que levou um bom
tempo para ser escrita? Vai para os confins da rede e, provavelmente, para as
nuvens. E, como se diz no interior, a nuvem é bem aí!
Como nem todo mundo
acessa a web e nem sabe o que é essa tal de nuvem, é sempre bom registrar o que
se escreve naquele negócio chamado livro. E é exatamente isso que fez o
escritor Raymundo Netto ao publicar uma seleção das crônicas que, entre os anos
de 2007 e 2010, escreveu para o jornal O
POVO. Conforme o próprio autor: “A maior parte dessas crônicas se
desenvolvem a partir de “encontros” com escritores e personalidades cearenses
vivos ou mortos – em literatura isso não faz muita diferença –, em um exercício
intertextual, contextualizados com acontecimentos na cidade de Fortaleza, palco
que serve de frigideira para a maioria dessa omelete”.
A ideia de Raymundo
Netto em escrever suas crônicas a partir de “encontros” com escritores e
personalidades vivos ou mortos da cena fortalezense, faz com que o leitor,
juntamente com o narrador, revisite a Fortaleza, essa cidade que tanto assombra
quanto seduz. Essa mesma cidade quase engolida pelos milhares de buracos que
invadem suas ruas, devido a incompetência de seus gestores e pelo seu povo
entregue à própria sorte. A cidade vista pelos olhos (verdes?) de Raymundo
Netto é a “prima pobre” da Paris vista pelos olhos miúdos de Woody Allen, em
seu filme Meia-noite em Paris (2011).
E aqui tomo a liberdade de apontar uma aproximação da obra de Netto com a de Allen,
no que concerne a uma observável exaltação do passado em relação ao presente.
Sobre a comédia romântica de Allen, observemos uma das sinopses
disponibilizadas na Internet:
Gil (Owen Wilson) é um escritor e
roteirista americano que vai com a noiva Inez e a família dela à Paris, cidade
que idolatra. Ele realiza vários passeios noturnos e sozinho, quando descobre
que, surpreendentemente, ao badalar da meia-noite, é transportado para a Paris
de 1920, época e lugar que considera os melhores de todos. Nessas
"viagens", Gil vai a várias festas onde conhece inúmeros intelectuais
e artistas que admira e que frequentavam a cidade-luz naquela época. Scott
Fitzgerald, Gertrude Stein, Ernest Hemingway, Salvador Dali dentre outros. Até
que tenta acabar o seu romance com Inez, pois se apaixonou por Adriana (Marion
Cotillard), uma bela moça do passado, e é forçado a confrontar a ilusão de que
uma vida diferente (a "época de ouro" francesa) é melhor do que a
atualidade.
O
narrador de Raymundo Netto seria o nosso Gil, um flâneur a
caminhar com atenção pelos mais inusitados espaços da cidade. Nas caminhadas, o
narrador encontra e conversa com Rachel de Queiroz, Francisco Carvalho (Que
poeta maravilhoso!), Ana Miranda e Mário Gomes; entre inúmeros outros. O
resultado dessas conversas e andanças é o livro Crônicas absurdas de
segunda (2015), uma vez que o referido cronista escrevia para o jornal
exatamente às segundas. Trata-se de uma belíssima edição, publicada pelas Edições
Demócrito Rocha, composta de trinta e nove crônicas, sendo três inéditas. Há
três textos introdutórios, sendo “Crônicas absurdas”, de Ana Miranda,
“Crônicas”, de Sânzio de Azevedo e “Duas palavras”, do próprio Raymundo Netto
explicando a origem, a construção e os resultados do projeto que acabou por
gerar a obra em questão. O livro traz ainda um “posfácio” escrito por Pedro
salgueiro, denominado de “Um dândi pós-moderno”, além da biografia do autor,
bem como as referências bibliográficas.
A
lexia “absurda”, no título da obra de Raymundo Netto, acaba por nos remeter ao Mito
de Sísifo: ensaio sobre o absurdo (1941), de Albert Camus (1913-1960);
bem como ao teatro do absurdo, de Samuel Beckett (1906-1989); especificamente
sua peça Esperando Godot, de 1952. Embora sejam “absurdos”
diferentes, as crônicas de Raymundo Netto acabam por dialogar entre si e com o
outro, quando, de uma forma ou outra, discorrem sobre a própria condição
humana, tal qual ocorre em Camus e Beckett. A série de crônicas que Netto aqui
apresenta, afirma Ana Miranda, tem uma linha mestra, ou seja, é uma agenda de
encontros com fantasmas. De repente o cronista se depara com algum autor de
livros que ele mesmo leu, e não esqueceu. Os seus fantasmas literários tomam
corpo e vida, conversam, zombam, tresvariam, surpreendem e nos fazem rir, mas às
vezes de olhos marejados. Há algo mais humano, pergunto, e ao mesmo tempo mais
absurdo?
Sobre
o narrador de Crônicas absurdas de segunda (2015), Ana Miranda
diz:
O narrador me faz lembrar um
senhor de chapéu coco e fraque, muito elegante, cortês. Entusiasmado e
fervoroso, vaga pelas ruas a olhar tudo e conversar com quem aparece ali. Gosta
de conversa. Um narrador carregado de sentimentos, uma afetividade à flor da
pele, e um pouquinho de malícia. Fala num tom de certo gracejo inocente,
aproveitando todos os momentos para chistes e improvisos. É quase o mesmo
narrador do primeiro livro de Netto, Um conto do passado: cadeiras na
calçada, romance preciso e admirável, com jeito de crônica, no qual,
enquanto se passa uma história de amor, a cidade vai se mostrando e se
transformando.
O
“se mostrar” e o “se transformar” da cidade, observados pela autora de Semíramis (2014),
no romance de Raymundo Netto, também é facilmente identificável na sua crônica.
Essa transformação que se dá com a cidade, também se dá com seus
habitantes-personagens em uma espécie de simbiose. E assim também o é na
relação da personagem de Owen Wilson com a Paris dos anos 20, no Meia-noite
em Paris.
Revisitar
Fortaleza é sempre um convite irrecusável. Mais uma vez, e com bastante esmero,
o escritor Raymundo Netto nos lança o convite a partir das suas Crônicas
absurdas de segunda (a nosso ver, crônicas de primeira), tomando ruas,
abrindo portas e apresentando gente.
Que
a cidade nos seja tão leve quanto uma crônica 'absurda', de Raymundo Netto!
(*) Carlos
Carvalho é professor de Literatura e de Língua Inglesa na Uece/Feclesc, autor
do livro de crônicas Memória de Peixe,
ganhador do Prêmio de Literatura da Unifor (2009), e mantenedor do excelente blog
que leva o seu nome.
(*) Crônicas
Absurdas de Segunda, de Raymundo Netto, pode ser adquirido na livraria do Espaço O POVO de Cultura & Arte,
mas também por meio da Livraria Virtual da FDR: livraria.fdr.com.br