Raymundo Netto descansando com a adormecida Ariadne,
filha do rei e esquecida por Teseu num jardim francês.
Veio-lhe a carta. Poderia ser qualquer
uma, mas não, era cansada. Uma carta cansada, exaurida de lágrimas, qualquer
resto delas, de fadiga ou de tédio, em desalinho, opressa a batidas de coração.
Ele, nem mesmo para si guardava a dúvida:
de nada sabia do amor. Numa arrazoada assertiva o teria como um horizonte
distante e inalcançável, como mentira, eternamente paralelo à vida, pelo menos
a dele.
Não por isso negasse dias ter pela
remetente sacrificado a palavra inda quente entre os dentes, nem sabia o porquê.
Seria de mais grado a ambos deixar-se vomitar o “eu te amo”. Mas qual.
Fitava-lhe os olhos de âmbar e o sorriso de menina. Guardava na polpa dos dedos aquele desejo,
quase em súplices joelhos, em forma de impressões e ardor da pele dourada.
Buscava no lóbulo da orelha sob o cabelos furiosos o corpo que se expandia num
abraço de acolhê-lo todo e inteiro – carne, alma e algo mais indescrito – em
noites intermináveis de sempre ter fim. Agarrava-se aos cabelos como a tomá-la
para si, para dentro de si, e beijando-lhe os olhos para não cair de sua
lembrança.
No escuro, sua voz ainda corria nos seus
olhos e ouvidos: “Eu tentei... Morri no ano passado, mas nesse ano eu não
morro. Talvez eu tenha entendido ter chegado a hora de não querer mais
entender. Seja feliz e adeus.”
“Adeus”, repetia, desbastando em
retalhos as memórias que lhe vinham uma a uma, atravessando o peito e saltando do
trampolim para o malogrado esquecimento.
Noutros dias, ao beijar outra mulher,
sua boca estranhou a ausência doutra boca. Seus dedos, como se perdidos na
multidão, procuravam reconhecer em novo corpo as mesmas e aquelas impressões e
ardores que repousavam à pele dourada. Entretanto, nada encontraram e a noite
volveu-se escura e fria. A sua ausência materializou-se e desabou em chuva,
revelando no espelho que o seu pior castigo nem era ser ele mesmo, mas o risco de viver sem o perigo daquele abraço.
Do vizinho, uma radiola arranhava em long-play
antigo: “entre os defeitos que tenho um é gostar de você.”
“Conte-me uma história...”, indicava no
silêncio delicado dos olhos, enquanto na fúria dos azuis do luar ela despediu-se
num abraço calcado em morte, em solidariedade de vazios e de saudades, num frouxe
rompante:
“Eu te amei, eu te amo, não te amarei nunca mais!”