Rua Barão do Rio Branco.
Era 6 de maio de 1917. De repente, a fisgada e o entreolhar: Acho que é agora!”
E foi. De sete meses nascia a caçula. Sem aviso, sem banheirinha, sem fraldas
ou sapatinhos. Seria Maria da Glória, como a vó, dependesse de Demócrito, mas
Creuza quem decidiu: Maria Lúcia! Sim, Lúcia, a “iluminada”, ainda nos braços
da mãe. Nada tinha, mas nada lhe faltaria. Logo os amigos, parentes e vizinhos
fizeram-lhe o enxoval.
Lúcia cresceu aos olhos
dos pais e da irmã companheira, Izinha. Cresceu como criança pequena num mundo
de imaginário colorido daqueles tempos. Gostava de ler, enquanto a irmã, de
cantar. Vivia no encanto de casa pequena, também atenta aquele pai que entrava
e saía sempre com novidades e muitas falas, o timbre alto, seguro, e o sorriso
marcando o rosto. No entanto, a família comemorou quando se mudou ao sobradinho
da Major Facundo, pois enquanto moravam em cima, estavam perto do papai, que
atendia em seu consultório dentário no andar de baixo. A situação financeira da
família era precária, mas criança não liga para isso, e os pais de Lúcia
estavam sempre por perto.
Quando Demócrito sofreu a
sua famosa agressão, em 1927, ela assistiu a tudo sem entender. Aquela multidão
gritando pelo nome do pai, e ele, ali, sentado em frente a casa, cheio de
machucados e olhos diferentes. A mãe chorava e um senhor tocava violino com
tanta graça de fazer o tempo parar.
Durante algum tempo, a
pequena Lúcia, que sabia o pai valente como o quê, temia que ele saísse e não
mais voltasse. Mas ele voltava, sim, e lhe parecia cada vez mais forte.
Mais cedo do que tarde,
Demócrito não esperou: mudou-se para novo endereço, na General Bezerril, mais
simples, para juntar dinheiro e equipar O
POVO, o seu próprio jornal. Não muito depois, mudou-se para a Floriano
Peixoto.
Lúcia e Albaniza
estudavam no Imaculada Conceição, mas, por desejo do pai, foram transferidas
para a Escola Normal Pedro II. Não de estranhar, Lúcia gostava de Português e
de Literatura. Estudava Francês na escola, enquanto em casa aprendia Inglês,
com professor particular, e Esperanto com o pai.
Em junho de 1934,
diversos estudantes de escolas de Fortaleza lançariam um manifesto com
abaixo-assinados (dentre eles o jovem Américo Barreira) de apoio à sua candidatura
para “Rainha dos Estudantes Cearenses”: “Lúcia apresenta a formosura do seu
talento peregrino e a beleza moral, abraçadas, em contubérnio feliz, à
graciosidade do seu porte de mulher cearense”. Do Colégio Militar, em sua
revista Pátria, em 28 de julho, mais
apoio: “Lúcia, a normalista que edificou no coração da mocidade cearense um
trono de ouro que diz amor, sabedoria e justiça [...]” Havia passeata e
panfletagem para ela. Foi quando Demócrito soube do movimento e disse à filha:
“Rainha e rei só na Inglaterra. Desista da candidatura!” E ela o fez.
Entretanto, Lúcia, como o pai, era teimosa, e continuou atuando no Conselho de
Honra do Centro Estudantal Cearense, nomeada que foi em novembro daquele ano. Faz-nos
pensar, ser mesmo ela portadora de alguma luz candente, a ponto de num Natal, o
poeta e romancista Antônio Sales, um seu admirador confesso, dedicava-lhe um
poema, de onde recortamos os versos: “Mas a flor, seja qual for, /Há de
sentir-se humilhada,/ Ficar de inveja ralada/ De não ser Lúcia e sim flor.”
Em 11 de agosto de 1935,
era presidente do Centro Cultural das Normalistas quando sua voz tomou conta do
microfone da PRE-9, a Ceará Rádio Clube,
onde proferiu algumas palavras sobre o dia do estudante e convocou-os a
participarem de uma parada comemorativa e de programação no Theatro José de
Alencar.
Em 5 de dezembro de 1935,
finalmente, a formatura de Lúcia e Albaniza. Diante o governador Menezes
Pimentel, prefeito Álvaro Weyne, Filgueiras Lima, paraninfo da turma, Hugo
Catunda, diretor interino da instrução, e Monsenhor Quinderé, representando o
arcebispo, a jovem diplomanda Lúcia, oradora da turma, proferiu seu discurso,
no qual: “[...] A professora que obedece ao seu dever cultiva planta cheia de
espinhos. Acha-se, porém, em condições de colher, em qualquer tempo, os frutos
reais do seu trabalho e a flor com que o coração costuma premiar o espírito em
mútuo reconhecimento”.
Durante dois anos, 1938 e
1939, lecionou no Instituto Lourenço Filho, entretanto, com a chegada da
guerra, seu pai, que firmara contrato com as agências internacionais Havas Telmondial e Reuters, precisava de sua ajuda na tradução (francês e inglês) e
decodificação das notícias — vinham em código para evitar que outros se
apropriassem de suas matérias exclusivas —, o que ela fazia, inicialmente, com
o jornalista francês Jean Bazin. Além disso, as datilografava e as encaminhava ao
jornal. Mais um pioneirismo de O POVO.
Durante esse período,
moravam na Gentilândia, na casa do “cajueiro torto”. Gostava de participar das
tertúlias promovidas por sua mãe. Lúcia declamava seus poetas e, às vezes,
puxava do pinho umas canções salpicadas de estrelas: “Nossas roupas comuns
dependuradas/ Na corda, qual bandeiras agitadas/ Pareciam estranho festival!/
Festa dos nossos trapos coloridos/ A mostrar que nos morros mal vestidos/ É
sempre feriado nacional.”
Um dia, João Dummar,
empresário e dono da PRE-9, promoveu uma festa no Cine-Teatro Majestic.
Convidou o Demócrito, que por não poder comparecer, enviou, em seu lugar, a
filha Lúcia. Mas ela esqueceu os convites e foi barrada, voltando para casa.
Quando João soube do ocorrido, foi imediatamente à casa do amigo para pedir-lhe
desculpas. Foi assim que a conheceu e soube ser dela a voz que ouvira em sua
rádio, há alguns anos. Passou, desde então, a frequentar regularmente a casa
dos Rocha. Demócrito já era muito próximo de João e aprovou o namoro. Noivaram.
Daí, era comum a família toda ou parte dela, visitar o sítio “Granja Castelo”,
residência de João (adquirido do genro de Pierina, musa de Plácido de Carvalho),
às margens da lagoa de Messejana.
Mas Demócrito adoeceu e
Lúcia decidiu que não sairia de perto do pai. Ele, deitado na rede, e ela ao
lado: tomando-lhe notas, medicando-lhe, cantando modinhas, esticando cuidadosa
a coberta, balançando-lhe a rede, acompanhando de perto seu sono asfixiante. De
perto, sempre.
Em novembro de 1943,
aconteceu o falecimento do pai. Difícil segurar tanta dor no peito. À noite,
para piorar, choveu muito. Pensou no pai que, por não ter um túmulo de família,
foi colocado em cova comum. Lembrou-se e sofreu: Chuva, frio e o pai “à flor da
terra”.
No início de janeiro de
1944, soube da negociação da PRE-9 para Chateaubriand. Correu para a Casa
Dummar, mas era tarde: negócio feito! Sabia que seu pai não deixaria João fazer
aquilo. Tarde. Dias depois, em 27 de janeiro, data de aniversário de João, eles
se casam e partem para o Rio, onde o marido, cumprindo promessa, envia material
para construção do túmulo de Demócrito Rocha.
O casal voltou a
Fortaleza — residiam no Benfica por desejo de João — e aqui tiveram seus 6
filhos — “o sexteto”, como chamava o
pai. Havia um acordo: o nome dos filhos seria escolhido por Lúcia (Demócrito e
João Dummar Filho) e o das filhas o seria por João, que decidira que todas
seriam “Lúcias” (Lúcia Maria, Lúcia Helena, Carmen Lúcia e Albanisa Lúcia),
homenagem de marido apaixonado.
Mas o casamento durou apenas
10 anos. Doente, João Dummar faleceu em julho de 1955, deixando Lúcia viúva,
com apenas 36 anos. Época muito difícil de sua vida. Com a morte de João,
transferiu a família de uma vez por todas, até hoje, para a “Mansão Castelo”.
Mais tarde, Lúcia encontrou-se
acolhida por um novo amor, o oficial militar amazonense Jerônimo Alberto
Montenegro, o Giruca, ex-membro, na juventude, do “Bando da Lua” (do qual fazia
parte Zenon Barreto), que foi seu grande companheiro, por muitos anos, na
missão de protegê-la e colaborar na educação de seus filhos ainda muito
pequenos. Em casa, a visita permanente dos amigos, como: Braga Montenegro,
Otacílio Colares, Milton Dias, Fran Martins, Lustosa da Costa, Lúcio
Brasileiro, dentre outros.
Giruca, um dia, foi
surpreendido por uma grave doença nos rins que o levou a sessões de
hemodiálises, assistidas regularmente, rente à vidraça, pela companheira. E,
por meio dessa vidraça, Lúcia o viu partir, lentamente, em 10 de junho de 1986.
Mas isso não a fez
descrer na vida, ao contrário, fortaleceu-a. Dotada de prodigiosa memória, vontade
e alegria de viver, adora receber visitas, conhecer gente nova. Curiosa, gosta
de aprender. Lê O POVO todos os dias.
Discute os acontecimentos com a família e amigos que a cercam na varanda de seu
sítio ou a acompanham na imensa mesa de toalha branca . Passeia com eles entre
as árvores e plantas identificadas por tabuletas. Apresenta o memorial da
família, a coleção histórica do jornal de seu pai, o gabinete de João Dummar e os
equipamentos da PRE-9, os livros de sua biblioteca particular, as aves
coloridas, o céu sempre azul e o livre bordado de nuvens francas que repousam
pertinho do brilhume da lagoa aos pés de Iracema. Ao conversar com ela,
tentamos com muito esforço enxergar através de seus olhos toda uma galeria de
imagens raras e remotas que dizem dela, em tantas histórias, mas também de
todos nós. E é assim que d. Lúcia pinta seus dias: “Com alegria, pelo dia
afora, sempre sonhando”.