"Depois de te perder, te encontro, com certeza,
talvez num tempo da delicadeza,
onde não diremos nada; nada aconteceu.
Apenas seguirei, como encantado, ao lado teu." (Chico)
A primeira
garota a me despertar o sentimento de esquecer de mim tinha nome de flor,
entretanto, nada de peitos, nem bunda, as pernas eram finas e os cabelos
escureciam o rosto alvo, decorado em sardas, de quase não ver os olhos
acastanhados. Ora, ela contentava apenas 9 anos! Nem sei como se deu, nem como
começou. Lembro apenas de seu sorriso e do inocente desinteresse pela minha
figura esquálida, repleta de apelidos, protegida dos colegas moleques pela irmã
mais velha.
No ano seguinte,
mudando de escola, encantei-me por outra garota, mais madura, com 10 anos, que
habituava cobrir as mechas negras em gorro de crochê azul. Eu, nos finais de
semana, por não suportar-me em saudades, ia ao mercadinho em frente à sua casa,
com a desculpa de comprar biscoitos, mastigados com a lentidão da espera de a
qualquer momento vê-la — e apenas isso — passar por trás do muro baixo.
Com o fiar dos
anos, a adolescência, percebi: passava à calçada uma, apaixonava-me. Cruzava
por ali outra, também. E assim se movia a torcicolos o coração de menino para
lá e para cá, enamorando-se intensamente, sempre de súbito, por estranhas das
quais nunca foi merecedor sequer de descuidoso olhar.
Aos 13, num
esboço de reflexão prematura, pensei: alguma coisa está errada! Desconfiei se
não constatava ali a promessa de um tarado, um pervertido. Promessa essa,
decerto, não cumprida ao longo de uma vida sempre muito solitária, ensimesmada
e pensativa. Na época, ironicamente, o desejo de seguir a carreira sacerdotal,
a Bernardo Guimarães — eu gênio e a cidade proibida, Margarida —, nada de
envolvimentos que pudessem atrapalhar o destino já escolhido. Ainda assim,
entre os intervalos dos serviços de igreja, passava horas infindas da mais pura
adolescência ouvindo músicas melosas, gastando-me em sinceras e bizarras
quadrinhas apaixonadas. Que sacrilégio, hoje sei, com tanto que já se disse em
completude sobre o amor... Talvez, por isso, quando um candidato a poeta
mostra-me seus versos, dá-me logo a vontade de dizer-lhe: “Desista enquanto há
tempo! A boa poesia é sempre muito difícil. O descuido, assim como ao violino,
é imperdoável”.
Não surpreende
então que meu primeiro beijo tenha chegado em uma tarda noite aos 20 anos — por
iniciativa de uma garota de ideias cacheadas e com nome de pintura —, e durado
dois anos de um tempo que no próprio se encerrou, deixando-me largo
ensinamento: a melhor coisa do fim de um primeiro amor é descobrir ser possível
ter início um segundo, assim como também concluí-lo e partir para um terceiro
ou a um quarto. Tudo é questão de decisão. Para os mais românticos, os quase
religiosos, isso é demasiadamente herético, cabendo um protesto megatômico de
eu não saber de fato o que é amar ou ser amado. Sim, considero a possibilidade
de me caber tal maldição do egoísmo, do desamor profundo e da esterilidade de
um coração ateu, embora compreenda que grande fosse esse amor não caberia nele
a vaidade ou afetação. Sabe-se lá se “l'amour n'est pas pour moi”, como
apontava-me uma amiga aos gritos de uma canção. É-se possível o maior amor do
mundo ser aquele do momento, sem tempo de mágoa, remorso ou ressentimento,
apenas brilho no peito livre de um tudo, mesmo de não caber na memória o rosto
da amada, posto que chama viniciana, a levar, como sonho, por poucas horas, um
dia ou dois, ou tão contrário a si mesmo, como amor camoniano, por uma vida
inteira. Para mim, o amor anda de mãos dadas e é no beijo perfeito que devora o
seu espírito. Agora, sentado à janela a emoldurar um imenso céu estrelado que
não existe em minha vida, trago na pele o que vem de Drummond, o mesmo que me matou
em desastre: “Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas
pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha
vazia do amor à procura medrosa, paciente, de mais e mais amor. Amar a nossa
falta mesma de amor, e na secura nossa, amar a água implícita, e o beijo
tácito, e a sede infinita.”