segunda-feira, 1 de abril de 2024

"Luzeiros", de Raymundo Netto para O POVO


Publicado originalmente em Os Acangapebas

 

Estacara a hora, e pensamentos ondeados de recordações saudadejavam de distâncias o horizonte.

Silêncio.

Os búzios urdiam o colorido da imensa solidão apresentada.

Os pés firmes, artelhos tortos, unhas pretas, entranhavam-se na areia ao lamber das águas brumaceiras. À mão em concha, proteção do Sol, o velho pescador sorria em seu peito as fantasias de um menino de um dia, firme, garantir: “eu quero ser é pescador!” E foi. Se foi. Lembrava.

Nas vigílias das noites, o silêncio num manto azul de luzeiros cintilantes, a fogueirinha no mar, a harmônica tristíssima e o marulhar a balouçar-lhe os pés.

Ademanhãzinha, via lá do mais alto mar, os magros coqueiros a silhuetarem acenos aos ventos, como os negrinhos correntes em felizes mantos de areias brancas.

Sentia-se um deus, enquanto jangadeava; em casa, porém, a figura magra dos filhos, a mulher maltratada, a comida quase posta à mesa, o entristecia. Deus morto era o que era!

De enquanto fora do mar, para engolir as mágoas, tornava-as com uma branquinha, senão não dava... Francisco, filho mais velho, sempre de ir buscá-lo no bar: “De novo, pai? Bora, a mãe tá chamando pra janta!” e o carregava nos ombros. Ele, não muito mais do que uma criança, faltava de só chorar a vergonha diante do seu Francisco.

Ah, mas quando de chegada a hora da lida, era todo habilidade de mestre! Entanto, devido às doenças a vir de idade e da má sorte, teve que parar. Desde então, fazia a canivetes jangadinhas de vender aos turistas. Alguns zombavam do infeliz:

– Ah, desse tamanhinho é fácil. Quero ver é fazer jangada de verdade!

– Eu faço, doutô! – orgulhava. – Não duvide, faço, sim, e das boa!

Mas não havia de venda quase nada; bom de prosa, tempo gasto no leriado nas rodas de rapazes e moças, era de sua volta à noite da vila umas poucas migalhas e muitas, quase todas, jangadinhas.

Francisco crescera na dificuldade e, mesmo tanto, um dia chegou ao pai: queria ser pescador! De susto o velho logo se inquietou. Enfim, haveria de voltar em braços jovens de filho ao mar, donde nunca de haver saído na vida. Pôs-se a trabalhar a empenho:

– Olhe, meu filho, escute: quem faz um cesto, tendo tempo e cipó, faz um cento! – ria-se, remoçado. O filho iria ao mar!

Naquele dia Francisco partiu. Partiu e voltou não. E mais nada. O mestre enlouqueceu. Todos os dias, tomava as areias madrugueiras a divisar o vasto vazio de nada e coisa alguma. Silêncio.

A sua mulher, por outro lado, inda servia a mesa. Rezava. Estranhava-lhe os modos do marido. Acostumara-se, ora. Quantas noites cruzadas ao claro? Quantas de silêncio?

Mais dias e, então, Francisco voltou. Havia um acontecido. Nem importa qual: voltou!

Depois, por se esquecendo, pediu ao pai, a bênção de nova chance. Queria mesmo era ser pescador bom como ele; não se dobrar a oceano algum, adestrar-lhe as vagas e saber-lhe os cicios e segredos; queria, pois seu querer era tão mais forte quanto ele.

O velho pescador alucinou. Apertou o arrugamento da testa e coçou, sob o chapéu de palha, pés de confusão. Ondas quebravam no dorso das pedras desabrolhadas ao veludo frio do mar. A folgada sucessão de águas reconstruía memórias. Poesia gritava aos seus ouvidos em voz rouca dos corais, e foi assim que respondeu.