segunda-feira, 17 de novembro de 2025

"Almir Mota: um menino a contar histórias", de Raymundo Netto para O POVO


No sertão cearense dos Inhamuns, abençoado por Nossa Senhora da Purificação, encontra-se hoje a ainda pequena Saboeiro do Ceará.

Cruzando o pátio rústico da igreja matriz, com detalhes coloniais, cercada de coloridas casas geminadas e beirando o mercado municipal, Almir Mota, um menino falante de olhos miúdos, aos seis anos, impressionava o populacho a já contar causos que ouvira de seu pai Osmir e de sua vó Canela, a dona do sítio Cabeça do Boi.

Com pouco, partiria de sua terra natal para residir em Iguatu, onde aos 16 anos estrearia no jornal literário O Tostão com o poema “Pai Democrático”, uma homenagem a Tancredo Neves. Aquela simples publicação “ficou para a vida toda”, e ele não parou mais.

Logo, reuniria um grupo de amigos e juntos produziriam folhetos de poesia mimeografados. Mais tarde, saraus itinerantes, vendendo os seus folhetos, então, impressos em gráficas, o que continuou mesmo quando Almir deixou o interior para aventurar-se na capital.

Em Fortaleza, ingressou no grupo Metamorfose de teatro amador, seria um dos criadores da Cia. Estripulia de Teatro de Bonecos (no futuro, também dirigiria o grupo Garunjos), criaria a Fundação Terra e trabalharia como gestor cultural. Até que, em 1999, publicaria a sua primeira obra literária para crianças: O Cavalinho Amarelo.

Ele acredita: “Para escrever para criança, você tem que se divertir como criança” e que a criança “é um leitor mais exigente, porém, mais honesto”.

Após “O Cavalinho...” publicaria mais de 25 livros para esse público que adora ler e vê-lo a contar as suas histórias, sendo muitas dessas obras publicadas por diversas editoras e adotadas em escolas de muitos estados brasileiros há anos.

Em 2009, iniciou as atividades da Casa da Prosa, sua editora e produtora cultural, no mesmo ano em que seu livro A Fera do Canavial (para jovens e adultos) recebeu o prêmio nacional “Literatura Para Todos” do Ministério da Educação.

O Almir, que não se restringia a escrever e a contar suas histórias, cresceu ainda mais como produtor cultural e militante das causas do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas, desenvolvendo projetos reconhecidos pelos seus resultados e seu poder de agregar artistas, professores e leitores. Entre eles: a Escola da Natureza, A Casa do Conto, a Feira do Livro Infantil de Fortaleza (em 7 edições) e a Feira da Literatura Cearense, a Bolsa de Letrinhas (Bolsa Funarte de Circulação Literária), Lamparinas de Histórias e o Baú de Leitura – ação que já beneficiou, com doações de livros, mais de 500 bibliotecas e espaços de leitura no Ceará, Piauí, Bahia e Minas Gerais.

Todos esses projetos são marcados pela sua liderança, competência e com muito humor, mesmo quando diante das adversidades que os artistas são obrigados a enfrentar se quiserem continuar no ramo, no qual ele traz 40 anos de contínua atuação.

Contudo, como é apaixonado por paisagens, é um viajante incansável, ao lado da esposa, Júlia Barros, uma excelente contadora de histórias (a melhor), já tendo divulgado o seu trabalho também no exterior, como no México, Colômbia, Costa Rica e Portugal.

Em 2025, Almir Mota chega aos 58 anos trazendo consigo uma marca e um currículo admirável de produções e de muita resistência, além de reforçar as visitas às escolas para divulgação de sua extensa obra, agora também reimpressa.

Assim, durante a celebração do Dia da Literatura Cearense, 17 de novembro, dedico minha homenagem a Almir Mota, um menino grande que cedo descobriu na vida o encanto das palavras e a esperança de mundo melhor em uma sociedade leitora.





 

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

"Nariz", de Raymundo Netto para O POVO


Como uma princesa, quiçá rainha, assim era tratada Rosânia, filha única do respeitado empresário Cirano Ventes. Aliás, o sobrenome do pai lhe dava salvo-conduto, laissez-passer, como diziam nas colunas sociais, a qualquer local daquela cidade, mesmo os inatingíveis. Para ela não havia “depois”, “não pode”, “não dá”, coberta que era por uma certa vaidade deificada. Assim, não seria possível supor que ela, a filha, tivesse uma ojeriza tão medonha daquele pai.

Nunca a revelara a ninguém, mas via no narigão do pai um não sei o quê de repulsivo, asqueroso, com ares de legítima bruxa da Branca de Neve. Tinha tamanho pavor que assegurava: era aquela “coisa” a responsável por seus piores temores infantis. Tanta doçura e dengos de seu pai não conseguira apagar a imensa sombra que pairava maldita no imaginário virgem da garota.  

O sr. Ventes, coitado, já lhe percebia há muito essa reserva e distância, mas pensava ser natural pela sua condição feminina: “Se fosse homem, seria diferente...”

A mãe, entretanto, via com anormalidade a incompreensível aversão, que a fazia inventar desculpas para sequer cearem juntos, ou desviar o rosto com náuseas quando ele a acarinhava em aniversários e natais. Aliás, em seus álbuns de festa, as fotos ao lado do pai eram sumariamente descartadas. Quem os visse, pensaria ser Rosânia filha só de mãe.

Um dia, já moça, decidira casar. O noivo, bom rapaz e de família, era um príncipe, dizia.

Algumas horas antes da cerimônia, porém, no mais prestigiado salão de beleza da capital, o maquiador Paulinho lhe chegou cheio de mimos, afagando-lhe as madeixas e tocando-lhe o rosto com suavidade quase que sagrada. Ela, como uma rosa de jardim, vaporava alegrias, até que, inesperado, Paulinho pôs uma mão na cintura e com a outra tamborilou a escova no queixo. Silenciado, fitou a moça ao espelho e disse: “Mulher, nós teremos que usar sombra e pontos de luz para suavizar e disfarçar o volume...”

— O volume de quê? O que você quer dizer?

Diante da mudez repentina e geral, Paulinho torceu o canto da boca e disfarçou: “Eu? Nada, meu bem. Nadinha... só...”

— Você insinuou alguma coisa, sim... Diga. Repete!

O rapaz, desafeiçoado a frescuras e achaques, olhou para as colegas que acenavam súplices com as cabeças e indicadores e, num êxtase, rodou a cadeira de Rosânia e berrou numa impiedade carrasca: “Olhe aqui, minha filha, nós vamos ter que dar um jeito para o seu nariz não aparecer mais do que você na filmagem. É isso. Pronto. Falei!”

A noiva encheu-se de lágrimas e tornou ao espelho, como se numa primeira vez. Sim, estava lá, o tempo todo, bem diante do seu... nariz: era o narigão do pai! Sem tirar nem pôr, o mesmo fantástico monstrengo!

Correu pelo salão um brado megaestratosférico jamais ouvido. Há quem nos conte que não ficou um único espelho ou copo em pé. Rosânia saiu correndo à rua, destroçando o penteado e escondendo a sua vergonha entre as mãos, seguido por Paulinho, a equipe do salão, a mãe e o gordo pai: “A culpa é sua! É sua!”

Naquele dia, o casamento não aconteceu e ela não poria mais o nariz fora de casa. Da rua, por muitos anos, quem olhasse a janela triste do primeiro andar, poderia acompanhar o seu perfil generoso, a caminhar de um lado para outro, rodeado de pesadelos num quarto onde não entraria jamais um novo amor, muito menos outro espelho.