segunda-feira, 20 de outubro de 2025

"No Canto da Sereia", de Raymundo Netto para O POVO


“Cavalo-Marinho, mãe. Ele pegou um cavalo-marinho”, apontava a menina para o irmão Zenor, que chegara da praia naquele momento, esbaforido e delirante, agarrado suspeitamente a uma garrafa velha cheia d’água do mar.

Correu ao seu quarto ainda ouvindo a irmã resmungar, após a desatenção da mãe: “Deixa seu irmão, menina! O bichinho...”

No quarto, Zenor botaria a garrafa em cima da cômoda, abriria a janela e passaria o resto da manhã apreciando o seu achado: uma sereia! Ainda pequena, uns 10 cm. A criatura estava naturalmente incomodada, debatia-se contra o plástico e, por vezes, parecia sufocar. “Muita areia...”, pensou Zenor, que logo daria um jeito de pedir ao pai para comprar um aquário de verdade.

Anos se passaram e muitos aquários quebraram enquanto a sereia crescia, sempre aos olhos atentos e obsessivos de Zenor. Os seus pais achavam ótimo que o rapazinho tivesse encontrado um hobby, pois não saía de casa, portanto não tinha amigos, não falava com ninguém, era absolutamente alheio a tudo e a todos, menos à sua sereia.

Enquanto tratava seu aquário, como em um pacto de silêncio eterno entre ambos, passava horas a observar fascinado, quase babando, a sua presa. Os compridos e encrespados cabelos esverdeados, como algas, oscilando lentamente ao movimento do corpo muito alvo, pele aparentemente de bebê, embora áspera. Os seios salientes e sem aréolas, o majestoso pescoço, a ausência de lábios, pequenas brânquias atrás das orelhas, a cauda longa de escamas denteadas e brilhantes. A irmã, quando criança, gostava de ajudá-lo nessa tarefa – tinha afeição pela criatura. Porém, adolescente e feminista, tornou-se contrária ao absurdo cativeiro. O pai, interessado apenas nas coisas do mundo, pensava em como aquilo um dia poderia contribuir nas finanças domésticas. A mãe apenas a julgava pálida e magra demais.

Por curiosidade, vez ou outra algum dos vizinhos adentrava o quarto. Também fotógrafos de revistas científicas e da imprensa local buscavam frestas de janelas para captar imagens da curiosa fêmea marinha. Todos eram violentamente enxotados pelo rapaz grandalhão, obeso e de fala pouco compreensível que se tornara o Zenor.

Tinha ele outro segredo. À noite, nunca conseguia dormir. Ao travesseiro, percebia os olhos dela muito abertos – naturalmente, não tinha pálpebras. Aquele olhar fixo em sua direção trazia o mesmo ar acusador e odioso de todos os dias. Estaria acordada? Estaria dormindo? Não sabia. Contudo, a brilhância do olhar amarelado, no negrume do quarto, parecia a de um farol. Pela manhã, estava em ruínas à mesa do café, preocupando os pais pela sua saúde precocemente debilitada.

Quando adulto, morava apenas com a mãe – o pai falecera e a irmã comprou um apartamento.

Nesse tempo, guardava a sua sereia numa caixa d'água no quintal. 

Era meio-dia. Sua irmã veio visitá-lo e almoçar com ele, a pedido da mãe em viagem. Ele já estava à mesa, quando ela dirigiu-se ao quintal para dar um “oi” à sereia. Não a encontrou: a caixa d’água vazia, encostada ao muro. Voltou à cozinha, muito bagunçada, e perguntou ao irmão por ela, o que acontecera com ela. 

Esfregando a manga do suéter na boca oleosa e garfando o prato, ele apenas respondeu: “Tem gosto de salmão... Adoro salmão”.

E desde esse dia, Zenor dorme um sono formidável, sonhando sempre com outras sereias.

 

 


 

"Maravilhamento: ler é isso!", de Armando Lucas


“Temos direito à fabulação é uma necessidade humana, parte constitutiva da sua realidade.”

 

Árvores centenárias desenham no chão da praça oásis de frescor. Nessas manchas temperadas, mesas se alinham ao longo do passar da gente.  Variam em quantidade de segunda a sexta.  Mas todas têm o mesmo tamanho.  E todas têm duas cadeiras que se entreolham por sobre toalhas de diferentes estampas, de bordas rendilhadas, que colorem os dias do amanhecer ao entardecer.

Agora, as cadeiras esperam e as mesas descansam. Elas, como as pombas da praça, saíram em revoada na busca das mãos que erram neste lugar de passagem.

Ele chega.  Puxa a cadeira.  Senta-se à mesa que tem um vaso ao centro, a única. 

Ela chega. Afasta o vaso para um lado, ajusta-se na cadeira e pede-lhe as mãos.  Ele pousa as mãos com a palma voltada para a estampa da toalha, acendendo-lhe as cores que se refletem em arco-íris nos olhos dela. Ela toma uma das mãos, a que está à sua direita; desemborca.

Suas costas caem no encosto da cadeira.  Logo seu tronco se volta pra frente e ela toma a outra mão. A cadeira cai de pernas pro ar.

De pé, ela anuncia:

- Ele voltou!

As outras acorrem. “A palma das mãos dele", ela aponta.

Todas olham; e todas veem; e todas leem; e todas exclamam com olhos acendidos de maravilhamento arco-íris; e todas anunciam, em regozijo:

- Ele voltou!




 

sábado, 4 de outubro de 2025

"A Capital Cearense dos Quadrinhos: Pacoti", de Raymundo Netto para O POVO

Pôster da Mostra. Autoria: João Belo Jr.
Clique na imagem para ampliar!

Pacoti, a “Capital Cearense dos Quadrinhos”, em 2025, recebeu, entre os dias 2 a 4 de outubro, a terceira edição da Mostra Sesc HQ.

Como nas edições anteriores, a equipe técnica do Sesc preparou uma série de atividades para o público presente. Entre elas: lançamento de livros, palestras (com a participação de Paulo Monteiro, responsável pelo Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, em Portugal), oficinas (quadrinhos em sala de aula, desenho para quadrinhos, zine, roteiro para histórias em quadrinhos e desenho de personagens de mangá), feira de quadrinhos (Reboot Comics, editoras Avoante e Riso), teatro de bonecos (Grupo Formosura de Teatro, Bricoleiros e Companhia de Teatro Epidemia de Bonecos), apresentações musicais (Escola de Música de Guaramiranga, Escola de Artes BCA de Pacoti, banda Dona Zefinha, Batuta Nordestina e DJ Ada Porã), oficina de brinquedos ópticos (J. Cambé), disponibilização do serviço da Biblioteca Móvel do Sesc e a Exposição do Mendez (1907-1996), cartunista e caricaturista cearense de grande renome nacional.

A Mostra, desde sua primeira edição, lança a coleção DISCOnversando, álbuns em referência a LPs de artistas cearenses, adaptando as suas faixas em formato de HQs. Foram agraciados: “Além das Frentes”, de Eugênio Leandro, “Avallon”, de Abidoral Jamacaru, e, este ano, “Retrato”, de Luiz Fidelis. O artista, que é um dos maiores compositores e intérpretes de forró da atualidade, esteve na Mostra e apresentou-se no “Concerto Desenhado”, show musical no qual as HQs criadas para o álbum são projetadas em grandes telões de LED durante a apresentação. A maioria dos quadrinistas (desenhistas, roteiristas, coloristas) que participaram do álbum também se apresentaram durantes esses dias, falando sobre a sua carreira e o seu processo criativo.

Além das esculturas gigantes e coloridas de “Reco-Reco, Bolão e Azeitona”, personagens do quadrinista cearense Luiz Sá (1907-1979), desenvolvidas por Dim Brinquedim para receber os moradores e visitantes de Pacoti ao lado do arco de Nossa Senhora de Fátima, o município recebeu a do “Jumento Wanderley”, criação do quadrinista J.J. Marreiro.

Dez anos depois da criação da sua primeira sede, O Ecomuseu de Pacoti, parceiro do Sesc na Mostra, sob a direção do historiador Levi Jucá, recebe uma nova sede, conseguindo o grande feito de conservação e preservação do patrimônio arquitetônico da cidade, ao transformar a antiga sede da Delegacia e Cadeia Pública de Pacoti em um riquíssimo equipamento cultural, no qual, entre outros, receberá o acervo de Mário Mendez.

Desde a sua primeira edição, a Mostra reconhece, por meio do Troféu Luiz Sá, profissionais que têm relevância na história dos quadrinhos cearenses. Este ano, a comenda foi entregue com toda justiça ao quadrinista e professor Daniel Brandão, fundador em Fortaleza do Estúdio Daniel Brandão, escola de desenho, quadrinhos, mangá e outras artes gráficas que, há 23 anos, promove a Nona Arte e forma não apenas quadrinistas, mas desenhistas e profissionais de artes visuais.

Nas edições anteriores, receberam o troféu o professor e historiador Levi Jucá e o quadrinista e cordelista Klévisson Viana.

Por tudo isso e muito mais que sabemos vir por aí, a arte dos quadrinhos no Ceará está em festa. Parabéns ao Sesc, nas pessoas de Luiz Gastão, Henrique Javi, Alemberg Quindins e Sofia Dantas.

Vivas a Nona Arte e a Mostra Sesc HQ de Pacoti!




 

"O Nelson Rodrigues que Habita em Nós", por Beny Barbosa


Quando concluí a leitura de Coisas Engraçadas de Não se Rir, de Raymundo Netto, uma frase de Nelson Rodrigues me veio à cabeça, meio destroçada, é certo, mas o sentido estava ali dentro daquelas histórias. Fui me certificar com a IA se a autoria era dele e pimba! Era mesmo: “o moralista é um cínico disfarçado”.

O título, muito bem elaborado, já indica que teremos leituras paradoxais entre o que vem a ser engraçado e a desgraça humana. Aquilo que culturalmente não é aceito pela sociedade conservadora é disfarçadamente aceito sob olhos com espasmos de miopia. Desse modo, Raymundo Netto, de modo muito peculiar, à Nelson Rodrigues, nos joga na cara estruturas sociais que, apesar das transformações ocorridas ao longo do tempo, ainda permanecem lá, sólidas, resistentes e, muitas vezes, violentas.

Dadivosa, Bigode, Eudócia e Ozires Filho são personagens fictícios, mas que andam por aí: em bares, em mercados, em igrejas, em escolas e em...prostíbulos. Caso a gente frequente um desses lugares criados pela civilização burguesa, certamente nos deparamos com eles e elas, mesmo usando nomes diferentes para se disfarçarem e andarem por aí, impunemente, alheios às críticas dos hipócritas de plantão. E sorvendo os seus desejos mais íntimos, daqueles que a gente não admite nem diante do espelho.

Assim como em Nelson Rodrigues, Raymundo Netto tem a coragem de colocar as mulheres em papel de protagonistas, sem medo e dispostas a arcar com as consequências de suas escolhas diante de homens abobalhados, como aqueles criados pela avó. Não vou negar que torci por elas, entre risos e franzir de testa.

“Nerds” me tocou profundamente, quando ele faz uma narrativa forte, utilizando-se, de certa forma, do realismo fantástico. Muito me lembrou de um conto meu (“O Super Kaká”), mas com final diferente. Trouxe à cena, o sofrimento daqueles e daquelas alcunhados de esquisitos por uma sociedade que teima em ser linear.

Coisas Engraçadas de Não se Rir é uma obra que não tem marcação de tempo, mas de modus vivendi de pessoas reais, que vagam entre o aprisionamento e a liberdade de ser o que se é, sem as máscaras sociais que comumente usamos para poder sobreviver.

“A arte é a mentira que nos ajuda a ver a verdade.”  (Nelson Rodrigues)