segunda-feira, 15 de agosto de 2022

"Sonho que não se Sonha Só", de Raymundo Netto para O POVO


Ela passa ao lado de um botequim de mercado, um daqueles cheirando à gordura, a caldo de cana e a suor farto de carregadores, agricultores, caminhoneiros. Vinha com sede, muita sede. Cria coragem, entra e pede um copo de água.

Diante de olhares lascivos ao seu colo branco de estudante, toma à mão o copo americano, limpa o bordo com a ponta dos dedos compridos e o leva à boca vermelha. Enquanto bebe, vê a imagem dele no fundo do copo. A imagem também a reconhece e a abraça com saudade plena. Juntos, de mãos dadas, saem do botequim, sem se importar com o mundo ao redor, mesmo se havia mundo, e caminham se expressando apenas por sentimentos.

Assim, atravessam a cidade. As casas e edifícios se curvam ao seu rastro, deitando telhas e segredos nas ruas e por cima de seus moradores de calçada. No meio do caminho, um portal os devora. Lá dentro, descobrem o teto marchetado em cristais coloridos e espelhados. Olhando para cima, eles se veem, se encontram e se encantam de novo. Ele, subitamente, sente sua mão reclamar uma dor. Ela se preocupa. Toma a mão dele e a coloca entre as suas, quentes e febris: “Vou tirar essa dor de você... para sempre”. Então, como se o mundo fosse de vidro e o tempo coubesse num único ponteiro, eles trocam olhares, se emprestam e se amam.

Depois, ela diz ter que ir embora, não lembra o porquê, mas se fazia hora: “Eu vou esquecer você”. Pede um táxi, que logo chega, todo envolto em néon. Ela acena um beijo para o amante. É quando percebe o rosto embaçado, como uma digital. Entra e senta na poltrona de trás, pois aquela ao lado do motorista está ocupada por uma pessoa morta, coberta por um lençol, com quem o motorista conversa.

No meio do caminho, sem lhe perguntar, o táxi toma outro destino. Ela chama pelo motorista, mas ele só tem ouvidos para o morto. Param em uma travessa e o taxista começa a gritar com ela: “Saia do meu carro! Saia, vamos, e não me procure mais!”

Apavorada, desce e escorre pela primeira porta. Ali, encontra quatro mulheres negras e mudas, cobertas de sal, expostas em uma vitrine escura. Por detrás dela, surge um homem, arranca a sua roupa, cobre de sal o seu corpo e a coloca na vitrine junto com as outras.

Dias-há, o silêncio e o incômodo de uma luz intensa e amarela sobre elas. Então, não se lembra como nem quando, quebram o vidro e todas saem correndo confusas e peladas pelas ruas desertas.

Ela chega a um hotel, sendo recebida pela gerente a falar por um idioma estranho – que mais parecia desenho – a recender no ar. A anfitriã pega-lhe pela mão e a deita em uma banheira de louça, transbordando lágrimas. Esponja seu corpo demoradamente, penteia as ondas de seus cabelos e a veste um robe de celofane revestido de estrelas. Ela, quase adormecida, fita e pergunta ao espelho: “E ele?” “Ainda está aqui em seu quarto”, reponde. Seu coração distraído exulta: “Preciso vê-lo agora!”

Sem sentir o chão em que pisa, acompanha a gerente por desvãos escuros, úmidos e cheio de escadas. Nas paredes, o papel ressoa o som de asas coloridas por borboletas. Entretanto, à porta do aposento, enquanto a mulher bate, ela prevê: “Não é ele quem está por trás dessa porta, mas a esposa dele. É ela!” Começa a chorar... e a rir... a puxar os cabelos por trás do pescoço comprido. Sente uma intensa dor nos olhos e esfrega-os. Eles descem pelo dorso de suas mãos e ela se vê completamente cega.

Tem sede, pede um copo de água. Olha para o fundo e não vê mais nada: “Ela o esqueceu? Mas se o esqueceu, por que ainda de tanta sede?”

Sai do botequim e traz a imagem do morto envolto em lençol pelo resto de seus dias.

(*) escrito a partir de uma narração de sonho que ouvi.


 

terça-feira, 2 de agosto de 2022

"Enlutada", de Raymundo Netto para O POVO


Safira seguia a passo vago ao lado do caixão do marido. Olhava Edmundo de cima a baixo, de baixo para cima, como se a qualquer momento fosse de sua providência acertar o véu, recompor um detalhe, apertar os cadarços, ajeitar-lhe as mãos pesadas no peito mudo. Como se ele, dali a pouco, pudesse lhe pedir qualquer coisa, qualquer uma. Ela o faria, certamente, o faria como sempre.

No mesmo passo, desviava a atenção dos olhos úmidos para as paredes nuas, às imagens de um Cristo triste e rendido a esvair-se em sangue, enquanto a mocinha da funerária, que interrompia o silêncio com irritantes saltos ligeiros, trazia os copos descartáveis e o café para as visitas:

"Não tem ninguém, senhora?"

"Ninguém, por quê?"

O casal se bastava em si, nem filhos, orgulhavam-se, lembrou. Foram morar longe: "Família só serve para dar pitaco!" O amor lhes era tudo. Era o teto, o chão e o cobertor do casal. O que poderia faltar diante do amor de duas almas tão sinceras?

Durante algumas horas, apenas uns poucos, menos de dez, colegas do trabalho, passariam por ali. Alguns deles, cerrados em óculos escuríssimos, mal emitiriam palavras, apenas grunhiam. Poderia ser qualquer coisa, de "lamento" a "demorou”. Perguntariam: "Como foi que aconteceu? Tão jovem...":

"Não sei. Ele estava tão bem, feliz, e de repente... Foi-se." Não demorariam. Teriam outros compromissos, qualquer um, senão ficariam, mas ligasse — se tivesse deles sequer algum número. Entretanto, trariam a mais bela e única coroa de flores. Nela, uma cor clichê: "Saudades".

Ficaria por horas novamente só, imutável, sentada numa incômoda poltrona de viúva a rememorar o sorriso elevado que ora jazia ali, sepultado em algum lugar daquele cadáver, objeto repulsivo a caminho dos vermes que conduzem à desintegração terrena.

Por vezes, tomava coragem, levantava-se e parava diante do corpo do marido. Espalmava a mão na testa lânguida e uma ânsia lhe tomava o corpo em arrepios lancinantes. Como seria possível amá-lo assim? Como poderia guardar na lembrança aquele homem? "Morto!" Punha-se em soluços de agonia. O peito arfava em espasmos sucessivos e ela tremia, esfregando as mãos na saia: "Que nojo! Nojo! Nojo!"

Mais tarde da noite apareceu da penumbra outra mulher. Chegou ao portal do salão e estacou. Vestia o negro na corrente de profundo abatimento. Olharam-se. Não se conheciam decerto, mas era como se se soubessem. Aproximou-se, margeou o esquife, como chegasse aos pés de um precipício, e deitou a mão levemente na perna esquerda do falecido. Com breve, seu olhar transmudou de grave a enlouquecido, desesperado. Deitava lágrimas convulsas, num choro pesaroso e inconsolável de encontrar eco nas demais cabinas mortuárias. Mais um pouco, até seria possível invejar Edmundo na sua condição de morto.

Safira assistia passiva, comovida e atônita. Por um momento, não se sentia mais só. Na verdade, não sentia nem o próprio corpo, nem a mesma dor.

Aproximou-se da outra, tocou-lhe os dedos e pronunciou-lhe um beijo na testa. Voltou à poltrona, tomou a bolsa e, num suspiro profundo e sem olhar para trás, se foi, enquanto a enlutada subia, ainda trêmula, no caixão de Edmundo, aninhando a face saudosa sobre o seu peito e, como uma jura imortal, morreu com ele.